sábado, 26 de dezembro de 2009


A inculturação da liturgia romana
na história da Igreja (I Parte)

Pedro Boléo Tomé

1. A Antiguidade apostólica e o nascimento da liturgia romana

A liturgia cristã nasce e desenvolve-se em estreita ligação e dependência da tradição judaica. Não são abolidos os antigos ritos, ao menos em totalidade, mas outorga-se-lhes um novo significado. O próprio estilo e modo de rezar sofre uma forma de inculturação 1.

A liturgia cristã não nasce, portanto, como algo totalmente novo, mas, sob a orientação do Espírito Santo, desenvolve-se sobre matrizes preexistentes mediante um discernimento: de acolhimento de tudo aquilo que está em harmonia com a tradição apostólica e fiel à história da salvação; de exclusão (ou de purificação) de aquilo que é contrário ao Evangelho e à prática cristã; de reinterpretação, dando aos sinais, ritos e modelos, novos conteúdos e novos significados 2.

Pouco a pouco, fez-se sentir uma certa influência helênica. Com a paz de Constantino (édito de Milão, 313), dá-se um mais aberto contacto com a cultura helênica, atenua-se a oposição aos ritos pagãos e alguns elementos desta tradição são assumidos na liturgia.

Mas olhemos para Roma, pois o presente artigo pretende tratar da inculturação da liturgia romana. A Igreja localizada no território romano começa a ser Igreja Romana. Assumem-se na liturgia e, particularmente, no cerimonial pontifical certos elementos provenientes da corte imperial. A linguagem e os sinais são, no entanto, espiritualizados à luz da Sagrada Escritura e referidos ao mistério de Cristo 3.

Posteriormente, a sociedade sofrerá profundas transformações, no entanto estas insígnias e elementos permanecerão tal como foram assumidos. São institucionalizados e estilizados. Tornam-se, assim, sinais de uma cultura que já não é civil, profana, mas puramente simbólica, «sacra» 4.

Foi tradicional durante muito tempo considerar a existência de uma única liturgia para toda a Igreja, que depois viria a dar lugar às restantes tradições litúrgicas. Atualmente, alguns autores começam a pôr em dúvida essa uniformidade litúrgica dos primórdios da Igreja. No entanto, derivada de uma única liturgia ou não, com o tempo, nas sedes das grandes metrópoles antigas (Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Constantinopla, Roma, Milão, Ravena, Aquileia, etc.) nascem tradições litúrgicas, ou também chamadas famílias litúrgicas. A estas sedes estava ligada a memória e a voz autorizada de santos bispos, e deve-se tanto à necessidade de uma adequação a diversas culturas, como à busca de diferentes formas e fórmulas que permitissem conservar inalterada, mais facilmente, a vitalidade da tradição litúrgica 5. Este fenômeno pode ser descrito como sendo simultaneamente de desenvolvimento, adaptação e inculturação.

Tanto a Oriente como no Ocidente, depois de um período de gestação caracterizado por uma incipiente criatividade de textos e da estruturação do tempo litúrgico, passa-se, na tentativa de se adaptar aos novos contextos culturais, a um período de verdadeira e própria criatividade litúrgica, tanto no que diz respeito aos textos, como às estruturas para os ciclos litúrgicos ou para a celebração dos sacramentos, de modo a alcançar a codificação ou cristalização dos tipos de famílias litúrgicas.

Encontramo-nos, portanto, hoje em dia numa situação diferente daquela da antiguidade apostólica. A inculturação que tratamos neste artigo, e que é impulsionada pela Igreja, a partir do Vaticano II, é a inculturação da liturgia romana, e é neste sentido que deve ser entendida. Não tem por objetivo a criação de novas famílias rituais. Por isso, para responder às necessidades de uma cultura determinada, o Concílio Vaticano II abre a possibilidade de adaptar o Rito romano 6, partindo das edições típicas estabelecidas 7. Nesta época inicial começa a desenvolver-se a liturgia romana ou o Rito romano. Foi opinião generalizada durante o século XX por parte dos estudiosos a existência de uma liturgia romana «pura», que teria existido entre os séculos V e VII. Alguns falam especificamente dessa liturgia «pura» e procuram analisá-la 8. Outros, ao tratar a história da liturgia parecem, de alguma forma, partir dessa pressuposição 9. Por fim, surgem ainda autores que preferem falar, mais do que de um momento estático e bem delimitado no qual se formou a «essência» do Rito romano, de um desenvolvimento orgânico de enriquecimento e crescimento progressivo. Neste sentido, a liturgia romana pura nunca teria existido e, se alguma vez existiu, nunca foi igual a si mesma. Isto é, preferem falar de uma liturgia romana em evolução, de uma liturgia que se encontra continua e simultaneamente desenvolvida e em fase de desenvolvimento 10.

Este rito, que talvez nunca tenha existido numa forma «pura», era a liturgia vigente na metrópole de Roma e nas dioceses sufragâneas. Havia substituído uma liturgia em língua grega e comum à cristandade dos primeiros dois ou três séculos. Os Papas Dâmaso (366-384), Inocêncio I (401-461), Gelásio I (492-496), Vigílio (537-555) e Gregório Magno (590-604), são os grandes responsáveis da sua implantação e formação. Com Gregório Magno promove-se a codificação da liturgia e alcança-se uma estrutura fixa em que a criatividade litúrgica é mínima.

2. Período franco-alemão: de Gregório Magno (590) a Gregório VII (1073)

Os livros da liturgia romana passam com relativa rapidez ao território franco-germano e aqui entram em contacto com a liturgia galicana (que existia e florescia já há vários séculos). Inicia-se assim uma múltipla e recíproca penetração.

Já com Pipino difunde-se o sacramentário gelasiano e verifica-se um início de reforma litúrgica. Posteriormente, no séc. IX, o imperador Carlos Magno, com a intenção de unificar o império, recorre à unidade da fé e da liturgia. Para tal, manda trazer os livros da liturgia romana e adapta-os à cultura galicana e, concretamente, à liturgia vigente nesse ambiente. Este período em questão constitui a época da liturgia romana sujeita ao influxo franco-germano. Confrontando tanto com os Ordines Romani originais como com o Pontifical Romano posterior, é fácil reconhecer o tipo de liturgia preferida por estes povos: desenvolvimento riquíssimo, material variado e abundante, estilo novo (mais longo, verboso, e dramático por vezes). O resultado é, portanto, uma combinação harmônica da herança romana antiga (caracterizada pelo equilíbrio, simplicidade, sobriedade, expressão estática) com o vigor dos novos povos (mais dinâmico, expansivo, vital, com tendência por vezes a uma espécie de anarquia) 11.

Por volta do século X sucede um processo similar com os imperadores da Germânia. Neste período Roma está em forte decadência litúrgica e a cúria está sem controlo. Os próprios imperadores, nas suas visitas a Roma, impõem o uso destes livros litúrgicos, outrora romanos, mas agora romano-germanos 12. O caráter simples, sóbrio e prático da liturgia romana cede lugar a uma nova cultura com outro tipo de mentalidade.

Vemos então como, sobre a base da liturgia romana, se adicionaram tradições tanto galicanas como germânicas que, posteriormente, foram introduzidas em Roma como próprias.

Parece conveniente salientar que, durante esta continua evolução, se realizaram inculturações erradas, que foram corrigidas ou eliminadas, em conjunto com as legítimas e verdadeiras, que perduraram 13.

Como a história demonstra, são casos pontuais de inculturações abusivas movidas por finalidades pastorais desviadas que a Igreja corrigiu e rejeitou.



3. De Gregório VII (1073) ao Concílio de Trento (1545)

No século X a vida litúrgica em Roma encontrava-se bastante degenerada e sofre uma influência muito positiva da obra litúrgica dos mosteiros franceses e germanos que, entretanto, tinham chegado a Roma graças aos imperadores. Efetivamente, Cluny, com a sua reforma, constituiu um fundamento seguro para a reforma da Igreja e da liturgia. A liturgia volta a florescer sob o influxo dos Papas da reforma: Gregório VII e Inocêncio III.

Gregório VII protesta contra a destruição da velha liturgia romana e procura restaurá-la. No entanto, ao não conhecer a real situação histórica, instaura e consolida a liturgia romano - franco - germana.

Os Papas ao retomarem o controlo da liturgia romana, põem fim às ingerências imperiais, e é imposto a todos os bispos da Igreja o uso dos livros litúrgicos de Roma. A partir de então, o nascente centralismo romano apenas permite a coexistência das liturgias de Milão e de Espanha. Para tal, a ordem mendicante de S. Francisco de Assis desempenhou um importante papel. Efetivamente, centrada, desde o segundo decênio do séc. XIII, num tipo de apostolado itinerante, constituiu-se em propagadora involuntária de uma forma muito concreta de liturgia romana: a liturgia da cúria romana. A razão é simples, tratava-se de uma liturgia adaptada às exigências dos capelães do Papa, que necessitavam de um ofício mais simples e prático 14, e que, portanto, possuía livros de transporte mais cômodo e de fácil manuseamento. Desta forma, por obra dos frades franciscanos, estas redações práticas e, especialmente, o «Missal» e o «Breviário da cúria romana», correram por todo o mundo, conseguiram uma boa aceitação e, evidentemente, foram copiadas. Assim, os discípulos de S. Francisco, facilitaram à liturgia ocidental uma standartização não só teórico - jurídica, mas sim efetiva.

Se este período se caracteriza pela adesão das dioceses ocidentais à liturgia romana e na progressiva unificação litúrgica, também se adverte que a atitude dos fiéis diante da liturgia se modifica profundamente. A liturgia, ação comum de sacerdotes e povo, parece reduzir-se agora a uma incumbência quase exclusivamente clerical. O povo assiste à missa, mas atento às suas devoções subjetivas, extra-litúrgicas. A assistência contenta-se com «ver», sem participar verdadeiramente, e produz-se uma distancia cada vez maior entre o celebrante e os fiéis 15.
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NOTAS
1. Cf. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, pp. 15-22.
2. Cf. Ibíd., p. 41; A. TRIACCA, Sviluppo - Evoluzione - Adattamento - Inculturazione?, em I. SCICOLONE (ed.), L’adattamento culturale della liturgia, Roma 1993, p. 85.
3. Cf. A. CHUPUNGCO, Liturgia e inculturazione, em A. CHUPUNGCO (ed.), Scienzia liturgica, II, Casale Monferrato 1998, pp. 363 ss.
4. Cf. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, p. 50.
5. No entanto, através destas variadas manifestações continua, no seio dos povos que aderem ao cristianismo, sem variações através dos tempos e dos testemunhos humanos, a única e comum (católica) tradição litúrgica. Da unidade primordial (judaico-cristã) passa-se à pluralidade expressivo-litúrgica. Por outras palavras, a universalidade da tradição litúrgica encarna-se na lei do particularismo das diversas tradições litúrgicas. Cf. A. TRIACCA, Liturgia e tradizione, em A. BERNARDINO (ed.), Dizionario patristico e di antichità cristiane, II, Casale Monferrato 1983, pp. 1980 ss.
6. Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS, Instrução Varietates legitimae (25.I.94), 36: AAS 87 (1995) 302.
7. Cf. SC, 38-39. Deve-se respeitar “a unidade substancial do Rito romano” (SC, 38) e partir das edições típicas estabelecidas (SC, 39).
8. Cf. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, pp. 57-74. Este autor descreve desta forma os elementos formais característicos do génio da liturgia romana: “(...) notiamo subito la loro semplicità precisa, sobria, breve, non verbosa, poco sentimentale; la loro disposizione chiara e lucida; la loro grandeza sacra e umana insieme, spirituale e di gran valore letterario” (Ibíd., p. 67).
9. Cf. E. CATTANEO, Il culto cristiano in occidente, Roma 1984, pp. 97-123; M. RIGHETTI, Manuale di storia liturgica, I, Milano 1964, pp. 187-696; T. KLAUSER, Breve historia de la liturgia occidental, Barcelona 1968, pp. 28 ss.
10. Cf. A. TRIACCA, Sviluppo - Evoluzione - Adattamento - Inculturazione?, em I. SCICOLONE (ed.), L’adattamento culturale della liturgia, Roma 1993, p. 73-75.
11. Cf. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, pp. 80 e 84.
12. Cf. T. KLAUSER, Breve historia de la liturgia occidental, Barcelona 1968, pp. 60 s
13. Citamos por exemplo, os casos enunciados por Vogel, como é o caso das missas secas (sem ofertório, nem comunhão, nem cânon), as missas bi-, tri-, quadrifacciatas (vários formulários de missa com apenas um cânon e uma só comunhão), etc. (cfr. C. VOGEL, Introduction aux sources de l’histoire du culte chrétien au moyen âge, Spoleto 1966, p. 136). Neunheuser explica estes abusos como consequência de uma evolução na espiritualidade e na prática pastoral. Começam a celebrar-se muitas missas nas Igrejas, capelas e santuários que se vão construindo. Esta multiplicação parece dever-se a facilitar uma maior participação dos fiéis, no entanto, posteriormente, esta diversificação verifica-se por razões puramente devocionais, privadas, especialmente pelo sufrágio dos defuntos. São necessárias, assim, uma maior quantidade de missas e começa-se a celebrar mais de uma vez por dia. As autoridades eclesiásticas reagem proibindo a binação que, nos séculos X-XI, desaparece. Então, para satisfazer a piedade de muitos que requerem missas por intenções pessoais surgem os abusos antes referidos.
14. Cf. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, p. 104.
15. Ibidem, p. 107.