segunda-feira, 4 de maio de 2009

Liturgia da Palavra: Estrutura da Liturgia da Palavra na Missa

Pe. Cristiano Marmelo Pinto[1]


A Igreja não inventou a liturgia da Palavra. Ela a herdou da liturgia sinagogal judaica. A estrutura da liturgia das sinagogas estava centrada nas leituras bíblicas. Tanto a liturgia cristã como a liturgia judaica atribui à Palavra uma função toda especial e própria, diferentemente de outras religiões que também têm a palavra em seu culto. Não é difícil perceber a passagem da estrutura da liturgia da Palavra da sinagoga para a liturgia cristã, pois Cristo, Palavra viva do Pai, dá, à palavra celebrada, um maior valor.

O testemunho mais antigo de como a liturgia da Palavra estava estruturada em ambiente cristão é de São Justino, por volta do ano 150. “Lêem-se as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas, quando o permite o tempo... Aquele que preside toma a palavra para exortar... Em seguida, levantamo-nos todos e elevamos nossas orações” (S. Justino, Apologia I, 67).

A liturgia da sinagoga dava-se da seguinte forma: “comportava ela a dupla leitura da Lei e dos profetas, acompanhada de salmos; depois das leituras, situava-se uma explicação ou exortação homilética; finalmente, eram feitas orações para o povo da Aliança (Gelineau, J. Em vossas assembléias, p. 160).

É fácil perceber que apenas se acrescentou a leitura dos apóstolos na liturgia cristã e o evangelho, conservando todos os elementos da liturgia judaica. A liturgia da Palavra vai aparecer de maneira mais elaborada na comunidade cristã por volta do século IV. Nesta época já aparecem quatro elementos constitutivos: as leituras das Escrituras, com a explicação na homilia; o cântico do salmo e hinos; a oração do povo e a oração do presidente. Percebe-se aí dois eixos: o anúncio da Palavra e a oração da comunidade.

A estrutura da liturgia da Palavra é formada dos seguintes elementos: leituras bíblicas (Primeiro e Segundo Testamento), salmo responsorial, aclamação ao evangelho, homilia, profissão de fé e preces da comunidade. “As leituras bíblicas da Sagrada Escritura, com os cânticos que se intercalam, constituem a parte principal da liturgia da Palavra: a homilia, a profissão de fé e a oração universal ou oração dos fiéis a desenvolvem e concluem” (cf. Ordo Lectionum Missae, 11).

A Primeira Leitura (Primeiro Testamento): geralmente a primeira leitura é tirada do Antigo Testamento. No tempo pascal a leitura é extraída dos Atos dos Apóstolos, que trata do início da comunidade cristã iluminada pela ressurreição de Jesus. Elas prefiguram e anunciam a plenitude dos tempos. A primeira leitura é sempre lida na perspectiva da vinda de Cristo.

O Salmo Responsorial: em primeiro lugar é preciso ter consciência que o salmo é Palavra de Deus, e, assim como as demais leituras, “é parte integrante da liturgia” (cf. IGMR – Instrução Geral do Missal Romano, 61). Tem a finalidade de favorecer a meditação da Palavra de Deus. É uma resposta orante da comunidade a esta Palavra. Desta maneira ele prolonga, de forma contemplativa, a primeira leitura. Ele é um dos elementos mais antigos da liturgia da Palavra. Por ter relação com as leituras – mais especificamente com a primeira –, nunca deve ser trocado por outro ou um canto qualquer.

A Segunda Leitura (Segundo Testamento): esta leitura é tirada dos escritos dos apóstolos, dos Atos dos Apóstolos, das Cartas e do Apocalipse. Ela atualiza na comunidade cristã a experiência dos apóstolos e das primeiras comunidades, a experiência do Cristo Ressuscitado e do seu Espírito que move a Igreja para a missão e o testemunho. Ela não precisa, necessariamente, ter relação com as demais leituras. Mas, como via de regra, ela mostra como as primeiras comunidades cristãs colocaram na prática os ensinamentos de Jesus.

Aclamação ao Evangelho: antes da proclamação do Evangelho, faz-se uma aclamação. Esta aclamação tem origem na liturgia judaica e ocupa um lugar de destaque na liturgia cristã. Ela é expressão de acolhimento do Cristo que agora vem nos falar. Ao mesmo tempo é manifestação de nossa fé na presença real de Cristo em sua Palavra. Consta de “aleluias” e um versículo, geralmente tirado do próprio evangelho do dia (cf. Estudo 79 da CNBB, p. 128). Durante a quaresma o aleluia é omitido, mas a aclamação ao Evangelho permanece .

Proclamação do Evangelho: o Evangelho é o ápice da liturgia da Palavra. Não é por menos que, para ele, cantamos “aleluias” e nos colocamos de pé. O Evangelho, por exemplo, é quem determina a escolha das outras leituras. A palavra “evangelho” significa boa notícia, mensagem importante, boa nova. É o próprio Cristo que vem nos falar.

A Homilia (atualização da Palavra): a palavra “homilia” significa “conversa familiar”. Não é uma conferência, nem um sermão, muito menos um discurso e nem aula de catequese ou de teologia. Ela é um serviço à Palavra. A homilia procura explicar e atualizar a Palavra na vida concreta da comunidade. A atualização é o coração da homilia. Ela não pode reduzir-se a uma explicação dos dados históricos ou/e teológicos da Palavra de Deus. Isto pode ser muito útil. Mas a comunidade deve perceber de modo claro e preciso a conexão entre Palavra de Deus e sua vida. Ela deve levar os corações à conversão sincera e radical ao Evangelho. É claro que uma homilia não pode tratar de tudo, por isso, ela deve centrar-se em um elemento da Palavra proclamada e aplicá-lo na vida da comunidade.

Profissão de fé (credo): o credo ou profissão de fé tem como objetivo levar toda a assembléia reunida a responder à Palavra que foi proclamada e atualizada pela homilia (cf. IGMR, 67). Recorda e professa o mistério da fé. Tem eixo cristológico, pois nele professamos que “Cristo é o Senhor”. Ele expressa nossa adesão a Cristo de modo que nossa vida seja centrada nele. Inicialmente, a profissão de fé era usada na celebração do batismo. Foi introduzida na liturgia da missa no Oriente.

Oração da comunidade (preces): é uma das práticas mais antigas da nossa liturgia. Ela responde a Palavra de Deus acolhida na fé. É também chamada “oração universal” porque ela expressa a universalidade da Igreja que deve elevar suas preces por toda a humanidade. Há uma ordem na oração da comunidade: pelas necessidades da Igreja; pelos poderes públicos e pela salvação do mundo; pelos que sofrem e pela comunidade reunida (cf. IGMR, 70).

Procurei tratar da estrutura da liturgia da Palavra de maneira breve e objetiva. Fica evidente que, para podermos compreender melhor o seu valor sacramental, precisaríamos de um maior aprofundamento. Porém, não é esta a nossa proposta neste breve texto. Ele quer sim, suscitar nos leitores o desejo de buscar este aprofundamento. Somente assim participaremos ativa e conscientemente da liturgia da Palavra e permitiremos que ela seja eficaz em nossa vida, produzindo aquilo que ela significa e a transformação de nossas vidas.


Para refletir:
1. Qual a origem da liturgia da Palavra?
2. Quais as partes integrantes da liturgia da Palavra?
3. Como perceber Cristo presente na Palavra mediante a estrutura ritual da liturgia da Palavra?

Referências bibliográficas:
ALDAZÁBAL, J. A Mesa da Palavra I: elenco das leituras da missa. São Paulo: Paulinas, 2007.
FARNÉS, Pedro. A Mesa da Palavra II: leitura da Bíblia no ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2007.
DEISS, Lucien. A Palavra de Deus celebrada. Petrópolis: Vozes, 1998.
CELAM. Manual de Liturgia II: a celebração do mistério pascal fundamentos teológicos e elementos constitutivos. São Paulo: Paulus, 2005.
[1] Pároco da Paróquia São João Batista, em Santo André, é mestrando em Liturgia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo.


“Presente está pela Palavra”
A Palavra de Deus
proclamada na celebração litúrgica



Pe. Cristiano Marmelo Pinto
Mestrando em Liturgia



Estamos em pleno mês da Bíblia, da Palavra de Deus! Creio que esta é uma oportunidade ótima para refletirmos sobre a Palavra de Deus na liturgia. A constituição Sacrosanctum Concilium, além de promover uma ampla reforma da liturgia, também resgatou a importância da Palavra de Deus em nossas celebrações. A liturgia num período de deslocamento de eixo, muitas vezes substituiu a leitura da Bíblia pela vida de santos, privilegiando uma religiosidade devocional. O mesmo aconteceu com a Eucaristia, dando margem as diversas devoções eucarísticas, por exemplo, a adoração ao santíssimo, ao invés de reforçar a própria comunhão do Corpo do Senhor. Estas tendências foram superadas pela reforma litúrgica, preparada pelo movimento litúrgico e bíblico do século passado.

Porém, precisamos abrir nossos corações para acolher a Palavra proclamada em nossas liturgias e podermos comungar do “Pão da Palavra”, que é o mesmo Cristo presente no “Pão da Eucaristia”.


Com efeito, o concílio na constituição dogmática Dei Verbum afirma que “A Igreja sempre venerou a Sagrada Escritura da mesma forma como o próprio Corpo do Senhor” (DV 21). O concílio pretendeu resgatar a relação com a Palavra de Deus que os cristãos tinham no início da Igreja. Aliás, toda a tentativa da reforma litúrgica foi de resgatar a liturgia original da Igreja romana, chamada “liturgia romana pura”, ou seja, a liturgia celebrada pelas primeiras comunidades da Igreja de Roma, da qual somos herdeiros.

Com esta afirmação da constituição Dei Verbum, podemos dizer que a Palavra de Deus é tão venerada quando o Corpo eucarístico de Cristo. Isto nos leva a outra afirmação do concílio Vaticano II na constituição Sacrosanctum Concilium sobre a presença de Cristo na liturgia: “está presente na Igreja, sobretudo na liturgia... presente está pela sua Palavra, pois é Ele mesmo que fala quando se lêem as Sagradas Escrituras” (SC 7). A Palavra de Deus tem a mesma importância que a Eucaristia para a vida da Igreja e para a liturgia. São Jerônimo diz: “Quanto a mim, penso que o Evangelho é o corpo do Cristo e que a Sagrada Escritura é sua doutrina. Quando o Senhor fala em comer sua carne e beber seu sangue, é certo que fala do mesmo mistério (da eucaristia). Entretanto seu verdadeiro corpo e seu verdadeiro sangue são (também) a Palavra da Escritura e sua doutrina”.

O papa Paulo VI, em sua encíclica Mysterium fidei sobre a Eucaristia, insiste que a presença real de Cristo na Eucaristia não exclui outros modos de presença real. Diz o papa: “Esta presença, chamamo-la de real não a título exclusivo como se as outras presenças não fossem reais, mas, por excelência, porque ela é substancial” (cf. 30). Para ele, a presença na eucaristia é substância porque está ligada a substância do pão. Mas a presença na Palavra é igualmente real.

Na celebração litúrgica as duas mesas estão intimamente unidas: a mesa da Palavra e a mesa da Eucaristia. O concílio Vaticano II retomou o ensinamento da Tradição da Igreja sobre as duas mesas (cf. DV 21). Isto não é novidade na Igreja. Já na metade do século VIII a.C. o profeta Amós falou de uma fome da Palavra que o povo teria semelhante à fome de pão. Assim diz o profeta: “Eis que virão dias, em que enviarei fome à terra, não fome de pão, nem sede de água, mas de ouvir a Palavra do Senhor” (Am 8,11). Marcos nota que antes de Jesus multiplicar os pães, ele multiplica a Palavra (cf. Mc 6,30-44). Para Jesus, pão e palavra se resumem na obediência a vontade do Pai. “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou” (Jo 4,34).

A celebração litúrgica é o lugar privilegiado para a proclamação da Palavra de Deus. Pois ela é o eixo de toda a liturgia. Na liturgia a Palavra é sempre viva e atual. E esta palavra não é destinada a um indivíduo isoladamente, mas ao povo de Deus, a comunidade celebrante. O povo de Deus é convocado por Deus no Espírito Santo para escutar a Palavra e colocá-la em prática.

A Palavra de Deus proclamada na ação litúrgica tem sua eficácia quando: 1) Cristo estiver presente no ato de sua proclamação; 2) quanto mais conteúdo da mensagem implicar sua ação salvífica; 3) quando o leitor estiver compenetrado em seu ministério de proclamação da Palavra. Estes elementos não podem faltar na proclamação da Palavra na liturgia.

A proclamação da Palavra de Deus na liturgia deve provocar na assembléia celebrante uma participação ativa e consciente, ou seja, uma resposta viva e concreta. Os fiéis devem dar uma resposta de fé. Para tornar-se verdadeiramente em “Palavra da Salvação”, ela deve passar de palavra escrita para palavra viva e eficaz que comunica o plano de Deus e atinja os corações de todos os seus ouvintes. Jesus nunca quis ser lido, mas proclamado para atingir o mais íntimo dos ouvintes, transformá-los e convertê-los.

Que ao compreendermos a importância da Palavra de Deus na liturgia, sua função memorial, e principalmente a presença real de Cristo em sua Palavra proclamada, passemos a participar mais ativamente e conscientemente da liturgia da Palavra e deixemos que esta Palavra nos transforme em criaturas novas para implantarmos em nossa sociedade o Reino de Deus.


Pe. Cristiano Marmelo Pinto
Mestrando em Liturgia








Referências bibliográficas:
COMPÊNDIO DO VATICANO II: constituições, decretos, declarações. Petrópolis: Vozes, 1968.
ALDAZÁBAL, J. A Mesa da Palavra I: elenco das leituras da missa. São Paulo: Paulinas, 2007.
FARNÉS, Pedro. A Mesa da Palavra II: leitura da Bíblia no ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2007.
DEISS, Lucien. A Palavra de Deus celebrada. Petrópolis: Vozes, 1998.
CELAM. Manual de Liturgia II: a celebração do mistério pascal fundamentos teológicos e elementos constitutivos. São Paulo: Paulus, 2005.