A FORMAÇÃO LITÚRGICA[1]
Ione Buyst
1. Formação litúrgica integral
De 11 a 15 de fevereiro deste ano, a CNBB organizou um seminário sobre pastoral litúrgica. Participaram umas sessenta pessoas (bispos, padres, leigos e leigas, músicos e compositores, arquitetos e arquitetas...) representando vários regionais do Brasil. Aprofundamos os três aspectos da pastoral litúrgica: a celebração, a formação e a articulação (organização). No final do seminário, o ‘grito geral’ foi por mais formação litúrgica em todos os níveis da vida eclesial: do povo, das equipes de liturgia, dos compositores, cantores e instrumentistas, dos arquitetos e outros responsáveis pela organização do espaço litúrgico, das/dos catequistas, das religiosas e dos religiosos, dos diáconos, presbíteros e bispos, dos professores nos institutos de teologia e casas de formação... Ninguém escapa!
Mas, afinal, como devemos entender a ‘formação litúrgica’ e qual o objetivo da mesma? Na ‘carta magna’ da liturgia, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia do Concílio Vaticano II, nos nn. 14-18, a formação litúrgica é apontada como uma necessidade para que o povo cristão, povo santo e sacerdotal, possa participar da liturgia. Na liturgia não pode haver ninguém na platéia ou na arquibancada! Liturgia não é espetáculo! A comunidade toda é ‘atora’, ‘jogadora’, agente, sujeito ativo da ação litúrgica! Participar significa tomar parte, atuar na liturgia: reunir-se com os irmãos e irmãs da comunidade para fazer memória de Jesus, ouvindo e meditando a Palavra de Deus, orando, louvando e agradecendo, experimentando a ação de Deus e respondendo a ele, tudo isso com gestos e sinais sensíveis, sinais simbólicos.
Portanto, liturgia tem a ver com ação. Só que o ser humano não é uma máquina! Não pode fazer as coisas mecanicamente, sem pensar, sem sentir! Uma ação humana de verdade envolve o ser humano ‘integral’: corpo, mente, coração. Na liturgia, não basta fazer o sinal da cruz, cantar, entrar na procissão, ‘tomar a hóstia’... É preciso agir e acompanhar esta ação com a mente e o coração; é preciso entender e sentir o que se está fazendo. Como diz o texto da SC: trata-se de uma participação ativa, externa e interna, consciente, plena, frutuosa. Daí a necessidade de uma formação litúrgica ‘integral’, envolvendo todas as dimensões do ser humano e envolvendo todas as dimensões da liturgia: a ação ritual, seu sentido teológico, sua espiritualidade.
Há muita gente formada, muita gente engajada na pastoral litúrgica; há muitos cursos e encontros de estudo sobre a liturgia, mas o resultado não está sendo de todo satisfatório. Em muitos lugares, há muita insatisfação com a maneira como celebramos e com os resultados de tantos cursos e encontros. Por que? Talvez porque na maior parte das vezes ficamos na teoria. Falta-nos integrar na formação a dimensão teologal e espiritual da liturgia. Falta-nos aprender a fazer liturgia, integrando corpo, mente e coração nesta ação. É uma questão de método! Ninguém aprende a cozinhar ou conduzir um carro, ou tocar um instrumento musical, ou jogar futebol sentado num banco de escola, assistindo somente aulas teóricas; assim também com a liturgia! Daí a necessidade urgente de se rever a maneira de ‘dar’ formação litúrgica. Somente com o esforço conjugado de todas as pessoas envolvidas poderemos dar a volta por cima e modificar a ‘cara’ da liturgia. E é bom lembrar: quando falamos de liturgia e formação litúrgica, estamos incluindo a música e a organização do espaço litúrgico.
2. Formação litúrgica autêntica
Os primeiros cristãos eram considerados ateus, gente sem religião, porque não tinham templo, nem altar, nem sacerdócio. Entendiam que era preciso fazer de sua própria vida uma liturgia, da qual eles mesmos/as eram, em Cristo e no Espírito, o templo, o altar, o sacerdócio. Assim, a liturgia cristã autêntica é a vida vivida no amor e no Espírito de Cristo, em todos os momentos de nossa vida, no serviço (‘leiturgia’!) a Deus e aos irmãos e irmãs, no trabalho incansável pelo Reino, até a doação da própria vida se for preciso, tendo como exemplo o próprio Jesus. “Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão...” (Cf. Jo 15,13).
Mas, como fica, então, a celebração litúrgica? Não serve para nada? Claro que sim. Mas é preciso equilibrar as duas coisas. Liturgia-celebração e liturgia-vida se relacionam como a última ceia de Jesus de um lado e de outro lado sua missão messiânica no meio do povo e sua morte de cruz como conseqüência desta missão. Uma não existe sem a outra. A última ceia foi um gesto simbólico no qual Jesus nos faz compreender o sentido de sua vida e de sua morte. Sem sua vida de doação e sua morte real, a ceia perderia seu sentido. Assim também a nossa liturgia: se não vivermos no dia-a-dia aquilo que celebramos, de nada vale a celebração. A liturgia-celebração sem a liturgia-vida é como aquela casa construída sobre a areia: ‘caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos (...) e a casa caiu. E foi grande sua ruína” ). De nada adianta chamar ‘Senhor, Senhor!’ É preciso por em prática a palavra do Senhor. (Cf. Mt 7,21-27; Lc 6,46-49).
De outro lado, a liturgia-vida sem a liturgia-celebração carece de referências. É na liturgia-celebração que a comunidade reunida encontra o sentido atual para sua ação. Alimenta-se no encontro com o Cristo Ressuscitado, na escuta e interpretação da Palavra, no memorial da celebração eucarística; no louvor e na intercessão da liturgia das horas. Em cada celebração litúrgica une-se mais profundamente a Cristo, no Espírito Santo, renovando seu compromisso de viver a serviço do Reino de Deus, de organizar de uma sociedade justa, fraterna, igualitária de modo a eliminar a fome, a miséria, a exclusão, o ódio, a vingança, as guerras...; de fazer valer a lei do amor e do serviço, incluir os excluídos, salvar vidas, salvar o planeta; impregnar nossa própria vida e a sociedade com os valores evangélicos, tão contrários a certos ‘valores’ apregoados pelo mundo dos negócios, da política, da propaganda comercial.
Celebrações litúrgicas que não tem por base e fundamento este compromisso, não é liturgia cristã de verdade, não é liturgia autêntica. Uma formação litúrgica que se preocupa apenas com o aspecto celebrativo, sem a referência à vida vivida como liturgia, não é uma formação litúrgica cristã autêntica.
3. Formação litúrgica teologal
Para conhecer e compreender a liturgia, é preciso saber ver para além daquilo que se vê, ouvir para além daquilo que é falado e cantado, saborear além daquilo que é servido. É que ‘liturgia’ é um acontecimento teologal: Deus vem ao nosso encontro e nos atinge de cheio com sua palavra e sua ação transformadora, por meio das ações rituais, simbólico-sacramentais. Olhemos hoje mais de perto este lado ‘escondido’ da liturgia, o ‘mistério’ que nela celebramos, aquilo que Deus - Pai, Filho, Espírito Santo - realiza em nós, conforme nos ensinam os textos litúrgicos, tirados das sagradas escrituras ou nelas inspiradas.
Fomos batizados/as na água da fonte batismal. São Paulo nos fala do sentido ‘escondido’ deste nosso batismo: “Fomos sepultados com ele [Cristo] na sua morte, para que, como Cristo ressurgiu dos mortos para a glória do Pai, assim também nós vivamos uma vida nova. Se nos tornamos o mesmo ser com ele por uma morte semelhante à sua, o seremos igualmente por uma comum ressurreição” (Rm 6). Somos assim, para sempre, destinados/as a carregar em nós as marcas da morte e da ressurreição de Cristo e de viver de acordo com esta realidade.
Fomos confirmados/as com o óleo do santo crisma e a imposição das mãos do bispo. As palavras que acompanham esta ação nos ensinam a realidade ‘escondida’ que acontece conosco: “Receba, por este sinal, o Espírito Santo, dom de Deus.” A partir deste momento, somos destinados/as a viver de acordo com este Espírito.
Celebramos juntos e juntas a liturgia eucarística em volta da mesa com pão e vinho; e, bem no coração desta liturgia, depois da narrativa da última ceia, cantamos: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte, e proclamamos vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!” Eis, de fato, o ‘mistério de nossa fé’, o sentido escondido, a realidade sacramental. Pela ‘memória’ litúrgica, pela ação do Espírito Santo, acontece em nós aquilo que celebramos: juntos participamos da morte e ressurreição de Jesus, enquanto esperamos a plena realização de seu Reino entre nós. Comungando do Pão e do Vinho sobre a qual foi pronunciada a ação de graças e invocado o Espírito Santo, somos feitos um só Corpo em Cristo morto e ressuscitado.
‘Mistério da fé!’ Em que consiste, pois, ‘nossa fé’? Não se trata simplesmente de uma atitude religiosa, reverente, para com o mistério da vida. Isso é importante, mas não basta. O ‘mistério da fé’ proclamado na liturgia cristã, refere-se à ‘fé’ recebida dos apóstolos e transmitida de geração em geração. É sintetizada no ‘Creio...’. Expressa nossa aceitação, nossa adesão à pessoa de Jesus, reconhecido com o revelador de Deus, e adesão ao projeto do Reino de Deus que ele veio proclamar e inaugurar, como relatam os evangelhos. E isso só é possível, porque o Espírito de Deus, que nos foi dado, nos ajuda a compreender e viver aquilo que cremos. Ele nos transforma gradativamente em gente renovada, gente que sabe interpretar os sinais da presença de Deus no dia-a-dia e que dá testemunho do amor de Deus pelo seu modo de viver e atuar na sociedade.
Liturgia é uma ação ritual, expressão simbólico-sacramental de nossa fé. É o ‘mistério de nossa fé’ como que ‘escondido’ nos ‘sinais sensíveis’ da celebração litúrgica. Não basta participar ‘exteriormente’, é preciso deixar-se transformar interiormente pela ação do Espírito do Cristo Ressuscitado, que atua nas ações litúrgicas.
4. Formação litúrgica espiritual.
Todas as celebrações litúrgicas são 'ações rituais', simbólico-sacramentais, que vem carregadas de uma profunda realidade teologal. Por isso, a formação litúrgica deve se preocupar com a ritualidade e com teologia litúrgica. Mas não basta. Devemos abrir caminhos para que as pessoas aprendam a 'beber' da liturgia como sendo fonte da vida espiritual cristã. Por que? Para nós, cristãos, 'vida espiritual' é 'vida no Espírito de Jesus Cristo'. E este Espírito nos é dado, ele é dom do Pai. Mas, onde nos é dado o Espírito de Jesus Cristo? O lugar principal, a fonte 'primeira e necessária' (SC 14), são as celebrações litúrgicas: o batismo, a confirmação, a eucaristia, a celebração da palavra, o ofício divino, o ano litúrgico, as bênçãos, etc... (contanto que sejam, de fato, celebradas com qualidade espiritual, e não como puro formalismo!). E como funciona isso? De que forma temos acesso a este dom do Pai? Não basta simplesmente 'assistir' às celebrações litúrgicas; é preciso abrir nosso próprio espírito para receber o Espírito de Jesus Cristo, o Espírito de Deus. É preciso prestar atenção a cada gesto, cada palavra..., participar corporal e espiritualmente. Pois é! Esta é a característica da espiritualidade litúrgica: ela passa pelo corpo, atento e sensível. As ações litúrgicas são ações do próprio Cristo e de seu Espírito para nos fazer parte de sua vida, para vivermos constantemente em comunhão com ele e com o Pai. Voltando à imagem da fonte: pela participação corporal-espiritual na liturgia, 'bebemos' o jeito de ser de Jesus, sua relação com o Pai e com o povo, sua entrega radical a serviço do Reino e nos deixamos 'moldar' por ele mediante o encontro com os irmãos e irmãs, os salmos, as orações, a escuta e interpretação das leituras bíblicas, as ações simbólicas, a música ritual, o espaço litúrgico... Somos assim como que 'encharcados' pelo Espírito de amor que nos leva a viver em união com Jesus, continuando em nossa história atual a missão dele, abrindo espaço para a vinda do Reino de Deus em todas as realidades de nossa vida pessoal e social. Portanto, nada de confundir 'Espírito Santo' e 'espiritualidade' com intimismo ou sentimentalismo. Interioridade, sim; intimismo, não. Afeto e sentimento, sim; sentimentalismo, não.
E por falar em interioridade: é uma dimensão do ser humano muito esquecida hoje em dia. Muita gente perdeu (ou nunca teve) contato com seu 'eu' mais genuíno, mais profundo, onde nos aguarda Deus, o Mistério. O que podemos fazer para crescer em interioridade? Algumas coisas bem simples podem ser um bom começo: 1- Aprenda a respirar conscientemente, profundamente, prestando atenção a cada inspiração e expiração, 'conectando' com Deus, lembrando que nosso 'sopro' é símbolo do próprio Espírito de Deus que anima todo o nosso ser. 2- Sempre que puder (no ônibus, no metrô, antes de levantar ou se deitar, nos intervalos...), pare, fique em silêncio, olhe para dentro de si e 'pense na vida', sinta-se em comunhão com as outras pessoas, com as árvores, as flores, os pássaros, as estrelas... e com Deus! 3- Adquira o hábito de fazer um ou dois momentos de meditação a cada dia, com um texto bíblico (leitura orante) ou simplesmente repetindo, de coração, uma invocação bíblica, como por exemplo, Maranatha (Vem, Senhor Jesus!), ou Senhor Jesus, tem compaixão... Fazendo assim, o Espírito Santo encontrará a porta aberto para nos atingir profundamente, em nossa interioridade, como discípulos/as, para depois nos 'lançar' como missionários/as, para fora, na sociedade, no mundo, na busca de uma maneira mais solidária e igualitária de se organizar a sociedade.
5. Formação litúrgica mistagógica
'Mistagogia' vem de uma composição de duas palavras gregas: 'myst- ' e 'agogein'. É uma palavra que indica uma prática muito antiga, redescoberta recentemente: guiar para dentro do mistério.
Antes de tudo, é a própria liturgia que nos guia para dentro do mistério que celebramos. Pela participação na ação ritual somos introduzidos/as, iniciados/as, mergulhados/a no mistério. A liturgia nos leva à experiência da fé através da participação nos 'ritos e preces' (Cf. SC 48). Todos os elementos e o dinamismo das celebrações (eucaristia e outros sacramentos, palavra, ofício divino...) nos levam à participação no mistério da vida, morte e glorificação de Jesus, o Cristo. Ajudam-nos a nos identificar com ele nas inúmeras atividades do dia-a-dia, nas escolhas decisivas que temos de fazer em determinados momentos, nas encruzilhadas da vida em que tudo nos parece obscuro e incompreensível, sem saída, sem perspectivas, assim como nos momentos de certeza, de júbilo, de paz, de alegria, de doação, de entrega. Uma palavra das escrituras, um aperto de mão ou um abraço, o versículo de um salmo, um gesto de oração, a água benta respingando em nós, a luz de uma vela acesa, o cheiro do incenso e sua subida para o alto, a luz do sol que passa persistente por uma fresta da porta ou da janela, as palavras ou o gesto da bênção, um profundo silêncio, uma aclamação vigorosa, um abraço verdadeiro de reconciliação, o Pão e o Vinho partilhados, a unção com o crisma ou com o óleo dos enfermos... tudo isto pode se tornar para nós um momento de descoberta, de revelação da profundidade do amor de Deus e do sentido de nossa vida e de nossa morte, de nossos encontros e desencontros, de nossas alegrias e tristezas, de nossas esperanças e desilusões... Tudo isso pode aprofundar nossa opção por ele, pelo caminho do seguimento e da missão em seu nome, na fidelidade a todo custo.
Mas é preciso que alguém nos ajude a perceber o caminho da participação espiritual, integral, de corpo, mente, coração, rumo ao mergulho no encontro com o Transcendente, com Deus, com o Cristo em sua morte-ressurreição, na profundidade da experiência ritual. A catequese mistagógica nos oferece os elementos para podermos entender, intuir o que acontece conosco na ação ritual. Trata-se de ajudar na simbolização, guiar na passagem do sinal material, ‘significante’ (objeto, gesto, leitura, ação ritual), para a realidade teologal-espiritual significada e realizada pelo sinal, fazendo referência à história da salvação (experiências de vida vividas na fé). Aí entram a familiaridade com a Sagrada Escritura e o aprofundamento teológico, que culmina no encontro pessoal com Jesus Cristo, no momento atual, existencial de nossa vida pessoal, comunitária, social. A mistagogia nos leva a uma conversão da interioridade, uma adesão existencial à pessoa de Jesus Cristo e não apenas intelectual ou moral. E esta adesão nos leva a uma atitude ética, um modo de vida de acordo com o evangelho de Jesus Cristo.
Há pelo menos três instâncias nas quais deveríamos receber uma formação mistagógica: no catecumenato e na catequese, nas reuniões de preparação das celebrações (equipes de liturgia, ensaios dos ministros da música ritual), nos cursos de formação litúrgica. Além disso, não nos esqueçamos da importantíssima dimensão mistagógica da homilia.
6. Educar para a ritualidade.
Toda a vida do ser humano é fortemente marcada por ritos. São ações simbólicas que expressam o sentido da vida. Há ritos para os momentos marcantes da vida: o nascimento, a passagem para a adolescência, o casamento, um aniversário, a doença, a morte... E estes ritos são diferentes de acordo com cada grupo humano ou cada cultura, porque expressam a maneira daquele grupo ou daquela cultura entender a vida, o mundo, a morte... Os ritos servem também para passar este sentido para as novas gerações, garantindo a continuidade. Assim, cada cultura tem suas regras para comer, cumprimentar, se vestir. Cada povo indígena tem sua maneira de caçar, iniciar, dançar, enterrar seus mortos. Cada região do país conserva ritos característicos próprios. Cada time de futebol tem sua bandeira, sua camisa, seus slogans. Cada tradição religiosa tem suas rezas, suas músicas, suas danças que expressam seu senso do sagrado. Também nós, cristãos, temos ritos para expressar nossa fé, nossa relação com o sagrada, com Deus.
Normalmente, as novas gerações recebem a tradição ritual dos ‘velhos’, ‘anciãos e anciãs’, da geração anterior. O problema é que séculos de racionalismo e tecnicismo ‘vacinaram’ contra os símbolos, os mitos e os ritos, por considerá-los ultrapassados, não ‘científicos’. E agora, são poucas as pessoas capazes de realizar e ‘curtir’ um rito, sentir prazer, vivê-lo em profundidade, deixando-se atingir por inteiro. Sobrou um frio ritualismo: liturgias realizadas de modo formal, sem alma, sem coração, sem prazer e até sem entendimento. Daí a necessidade de reaprender, de educar para a ‘ritualidade’ da liturgia, para a capacidade de viver as ações rituais ‘na inteireza do ser’.
Podemos aprender com quem não perdeu ou recuperou a sensibilidade ritual: povos indígenas, grupos de afro-descendentes, devotos da religião popular e até com atitudes espontâneas da vida cotidiana. Um dia observei uma mãe que estava com o filho bem pequeno no braço, diante do crucifixo. Ela apontou o dedo para o crucifixo e disse: ‘Olhe aí! É Jesus!’. A criança olhou, espichou o bracinho, e a mãe se aproximou mais para que ele pudesse tocar na cruz. Depois ela disse: ‘Jesus gosta muito de você, gosta da mamãe, gosta de papai... Jogue um beijinho para Jesus.’ Neste quadro tão familiar, tão simples, encontramos os três ‘ingredientes’ que compõem a receita da formação para a ritualidade: fazer um gesto para alguém, saber o que significa, ser movido/a por um afeto.
Em casa, na catequese, nos encontros e cursos de formação litúrgica, devemos oferecer momentos de aprendizagem, simples e profundos, dos gestos rituais com os quais nos relacionamos com Deus, consciente- e ‘amorosamente’: entrar na igreja, inclinar-se diante do altar, acender uma vela, benzer-se, cruzar as mãos em prece, andar em procissão, cantar, escutar uma leitura bíblica, ficar de pé, beijar a Bíblia, ficar sentado, orar em silêncio, fazer uma prece, acompanhar a oração eucarística, partilhar um pedaço de pão, comer o pão, estender a mão para receber o copo, beber e passar o copo para outra pessoa, abraçar alguém desejando-lhe a paz, inclinar a cabeça para receber a bênção, despedir-se...
[1] Texto extraído de Liturgia em Mutirão II, edições CNBB.
Ione Buyst
1. Formação litúrgica integral
De 11 a 15 de fevereiro deste ano, a CNBB organizou um seminário sobre pastoral litúrgica. Participaram umas sessenta pessoas (bispos, padres, leigos e leigas, músicos e compositores, arquitetos e arquitetas...) representando vários regionais do Brasil. Aprofundamos os três aspectos da pastoral litúrgica: a celebração, a formação e a articulação (organização). No final do seminário, o ‘grito geral’ foi por mais formação litúrgica em todos os níveis da vida eclesial: do povo, das equipes de liturgia, dos compositores, cantores e instrumentistas, dos arquitetos e outros responsáveis pela organização do espaço litúrgico, das/dos catequistas, das religiosas e dos religiosos, dos diáconos, presbíteros e bispos, dos professores nos institutos de teologia e casas de formação... Ninguém escapa!
Mas, afinal, como devemos entender a ‘formação litúrgica’ e qual o objetivo da mesma? Na ‘carta magna’ da liturgia, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia do Concílio Vaticano II, nos nn. 14-18, a formação litúrgica é apontada como uma necessidade para que o povo cristão, povo santo e sacerdotal, possa participar da liturgia. Na liturgia não pode haver ninguém na platéia ou na arquibancada! Liturgia não é espetáculo! A comunidade toda é ‘atora’, ‘jogadora’, agente, sujeito ativo da ação litúrgica! Participar significa tomar parte, atuar na liturgia: reunir-se com os irmãos e irmãs da comunidade para fazer memória de Jesus, ouvindo e meditando a Palavra de Deus, orando, louvando e agradecendo, experimentando a ação de Deus e respondendo a ele, tudo isso com gestos e sinais sensíveis, sinais simbólicos.
Portanto, liturgia tem a ver com ação. Só que o ser humano não é uma máquina! Não pode fazer as coisas mecanicamente, sem pensar, sem sentir! Uma ação humana de verdade envolve o ser humano ‘integral’: corpo, mente, coração. Na liturgia, não basta fazer o sinal da cruz, cantar, entrar na procissão, ‘tomar a hóstia’... É preciso agir e acompanhar esta ação com a mente e o coração; é preciso entender e sentir o que se está fazendo. Como diz o texto da SC: trata-se de uma participação ativa, externa e interna, consciente, plena, frutuosa. Daí a necessidade de uma formação litúrgica ‘integral’, envolvendo todas as dimensões do ser humano e envolvendo todas as dimensões da liturgia: a ação ritual, seu sentido teológico, sua espiritualidade.
Há muita gente formada, muita gente engajada na pastoral litúrgica; há muitos cursos e encontros de estudo sobre a liturgia, mas o resultado não está sendo de todo satisfatório. Em muitos lugares, há muita insatisfação com a maneira como celebramos e com os resultados de tantos cursos e encontros. Por que? Talvez porque na maior parte das vezes ficamos na teoria. Falta-nos integrar na formação a dimensão teologal e espiritual da liturgia. Falta-nos aprender a fazer liturgia, integrando corpo, mente e coração nesta ação. É uma questão de método! Ninguém aprende a cozinhar ou conduzir um carro, ou tocar um instrumento musical, ou jogar futebol sentado num banco de escola, assistindo somente aulas teóricas; assim também com a liturgia! Daí a necessidade urgente de se rever a maneira de ‘dar’ formação litúrgica. Somente com o esforço conjugado de todas as pessoas envolvidas poderemos dar a volta por cima e modificar a ‘cara’ da liturgia. E é bom lembrar: quando falamos de liturgia e formação litúrgica, estamos incluindo a música e a organização do espaço litúrgico.
2. Formação litúrgica autêntica
Os primeiros cristãos eram considerados ateus, gente sem religião, porque não tinham templo, nem altar, nem sacerdócio. Entendiam que era preciso fazer de sua própria vida uma liturgia, da qual eles mesmos/as eram, em Cristo e no Espírito, o templo, o altar, o sacerdócio. Assim, a liturgia cristã autêntica é a vida vivida no amor e no Espírito de Cristo, em todos os momentos de nossa vida, no serviço (‘leiturgia’!) a Deus e aos irmãos e irmãs, no trabalho incansável pelo Reino, até a doação da própria vida se for preciso, tendo como exemplo o próprio Jesus. “Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão...” (Cf. Jo 15,13).
Mas, como fica, então, a celebração litúrgica? Não serve para nada? Claro que sim. Mas é preciso equilibrar as duas coisas. Liturgia-celebração e liturgia-vida se relacionam como a última ceia de Jesus de um lado e de outro lado sua missão messiânica no meio do povo e sua morte de cruz como conseqüência desta missão. Uma não existe sem a outra. A última ceia foi um gesto simbólico no qual Jesus nos faz compreender o sentido de sua vida e de sua morte. Sem sua vida de doação e sua morte real, a ceia perderia seu sentido. Assim também a nossa liturgia: se não vivermos no dia-a-dia aquilo que celebramos, de nada vale a celebração. A liturgia-celebração sem a liturgia-vida é como aquela casa construída sobre a areia: ‘caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos (...) e a casa caiu. E foi grande sua ruína” ). De nada adianta chamar ‘Senhor, Senhor!’ É preciso por em prática a palavra do Senhor. (Cf. Mt 7,21-27; Lc 6,46-49).
De outro lado, a liturgia-vida sem a liturgia-celebração carece de referências. É na liturgia-celebração que a comunidade reunida encontra o sentido atual para sua ação. Alimenta-se no encontro com o Cristo Ressuscitado, na escuta e interpretação da Palavra, no memorial da celebração eucarística; no louvor e na intercessão da liturgia das horas. Em cada celebração litúrgica une-se mais profundamente a Cristo, no Espírito Santo, renovando seu compromisso de viver a serviço do Reino de Deus, de organizar de uma sociedade justa, fraterna, igualitária de modo a eliminar a fome, a miséria, a exclusão, o ódio, a vingança, as guerras...; de fazer valer a lei do amor e do serviço, incluir os excluídos, salvar vidas, salvar o planeta; impregnar nossa própria vida e a sociedade com os valores evangélicos, tão contrários a certos ‘valores’ apregoados pelo mundo dos negócios, da política, da propaganda comercial.
Celebrações litúrgicas que não tem por base e fundamento este compromisso, não é liturgia cristã de verdade, não é liturgia autêntica. Uma formação litúrgica que se preocupa apenas com o aspecto celebrativo, sem a referência à vida vivida como liturgia, não é uma formação litúrgica cristã autêntica.
3. Formação litúrgica teologal
Para conhecer e compreender a liturgia, é preciso saber ver para além daquilo que se vê, ouvir para além daquilo que é falado e cantado, saborear além daquilo que é servido. É que ‘liturgia’ é um acontecimento teologal: Deus vem ao nosso encontro e nos atinge de cheio com sua palavra e sua ação transformadora, por meio das ações rituais, simbólico-sacramentais. Olhemos hoje mais de perto este lado ‘escondido’ da liturgia, o ‘mistério’ que nela celebramos, aquilo que Deus - Pai, Filho, Espírito Santo - realiza em nós, conforme nos ensinam os textos litúrgicos, tirados das sagradas escrituras ou nelas inspiradas.
Fomos batizados/as na água da fonte batismal. São Paulo nos fala do sentido ‘escondido’ deste nosso batismo: “Fomos sepultados com ele [Cristo] na sua morte, para que, como Cristo ressurgiu dos mortos para a glória do Pai, assim também nós vivamos uma vida nova. Se nos tornamos o mesmo ser com ele por uma morte semelhante à sua, o seremos igualmente por uma comum ressurreição” (Rm 6). Somos assim, para sempre, destinados/as a carregar em nós as marcas da morte e da ressurreição de Cristo e de viver de acordo com esta realidade.
Fomos confirmados/as com o óleo do santo crisma e a imposição das mãos do bispo. As palavras que acompanham esta ação nos ensinam a realidade ‘escondida’ que acontece conosco: “Receba, por este sinal, o Espírito Santo, dom de Deus.” A partir deste momento, somos destinados/as a viver de acordo com este Espírito.
Celebramos juntos e juntas a liturgia eucarística em volta da mesa com pão e vinho; e, bem no coração desta liturgia, depois da narrativa da última ceia, cantamos: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte, e proclamamos vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!” Eis, de fato, o ‘mistério de nossa fé’, o sentido escondido, a realidade sacramental. Pela ‘memória’ litúrgica, pela ação do Espírito Santo, acontece em nós aquilo que celebramos: juntos participamos da morte e ressurreição de Jesus, enquanto esperamos a plena realização de seu Reino entre nós. Comungando do Pão e do Vinho sobre a qual foi pronunciada a ação de graças e invocado o Espírito Santo, somos feitos um só Corpo em Cristo morto e ressuscitado.
‘Mistério da fé!’ Em que consiste, pois, ‘nossa fé’? Não se trata simplesmente de uma atitude religiosa, reverente, para com o mistério da vida. Isso é importante, mas não basta. O ‘mistério da fé’ proclamado na liturgia cristã, refere-se à ‘fé’ recebida dos apóstolos e transmitida de geração em geração. É sintetizada no ‘Creio...’. Expressa nossa aceitação, nossa adesão à pessoa de Jesus, reconhecido com o revelador de Deus, e adesão ao projeto do Reino de Deus que ele veio proclamar e inaugurar, como relatam os evangelhos. E isso só é possível, porque o Espírito de Deus, que nos foi dado, nos ajuda a compreender e viver aquilo que cremos. Ele nos transforma gradativamente em gente renovada, gente que sabe interpretar os sinais da presença de Deus no dia-a-dia e que dá testemunho do amor de Deus pelo seu modo de viver e atuar na sociedade.
Liturgia é uma ação ritual, expressão simbólico-sacramental de nossa fé. É o ‘mistério de nossa fé’ como que ‘escondido’ nos ‘sinais sensíveis’ da celebração litúrgica. Não basta participar ‘exteriormente’, é preciso deixar-se transformar interiormente pela ação do Espírito do Cristo Ressuscitado, que atua nas ações litúrgicas.
4. Formação litúrgica espiritual.
Todas as celebrações litúrgicas são 'ações rituais', simbólico-sacramentais, que vem carregadas de uma profunda realidade teologal. Por isso, a formação litúrgica deve se preocupar com a ritualidade e com teologia litúrgica. Mas não basta. Devemos abrir caminhos para que as pessoas aprendam a 'beber' da liturgia como sendo fonte da vida espiritual cristã. Por que? Para nós, cristãos, 'vida espiritual' é 'vida no Espírito de Jesus Cristo'. E este Espírito nos é dado, ele é dom do Pai. Mas, onde nos é dado o Espírito de Jesus Cristo? O lugar principal, a fonte 'primeira e necessária' (SC 14), são as celebrações litúrgicas: o batismo, a confirmação, a eucaristia, a celebração da palavra, o ofício divino, o ano litúrgico, as bênçãos, etc... (contanto que sejam, de fato, celebradas com qualidade espiritual, e não como puro formalismo!). E como funciona isso? De que forma temos acesso a este dom do Pai? Não basta simplesmente 'assistir' às celebrações litúrgicas; é preciso abrir nosso próprio espírito para receber o Espírito de Jesus Cristo, o Espírito de Deus. É preciso prestar atenção a cada gesto, cada palavra..., participar corporal e espiritualmente. Pois é! Esta é a característica da espiritualidade litúrgica: ela passa pelo corpo, atento e sensível. As ações litúrgicas são ações do próprio Cristo e de seu Espírito para nos fazer parte de sua vida, para vivermos constantemente em comunhão com ele e com o Pai. Voltando à imagem da fonte: pela participação corporal-espiritual na liturgia, 'bebemos' o jeito de ser de Jesus, sua relação com o Pai e com o povo, sua entrega radical a serviço do Reino e nos deixamos 'moldar' por ele mediante o encontro com os irmãos e irmãs, os salmos, as orações, a escuta e interpretação das leituras bíblicas, as ações simbólicas, a música ritual, o espaço litúrgico... Somos assim como que 'encharcados' pelo Espírito de amor que nos leva a viver em união com Jesus, continuando em nossa história atual a missão dele, abrindo espaço para a vinda do Reino de Deus em todas as realidades de nossa vida pessoal e social. Portanto, nada de confundir 'Espírito Santo' e 'espiritualidade' com intimismo ou sentimentalismo. Interioridade, sim; intimismo, não. Afeto e sentimento, sim; sentimentalismo, não.
E por falar em interioridade: é uma dimensão do ser humano muito esquecida hoje em dia. Muita gente perdeu (ou nunca teve) contato com seu 'eu' mais genuíno, mais profundo, onde nos aguarda Deus, o Mistério. O que podemos fazer para crescer em interioridade? Algumas coisas bem simples podem ser um bom começo: 1- Aprenda a respirar conscientemente, profundamente, prestando atenção a cada inspiração e expiração, 'conectando' com Deus, lembrando que nosso 'sopro' é símbolo do próprio Espírito de Deus que anima todo o nosso ser. 2- Sempre que puder (no ônibus, no metrô, antes de levantar ou se deitar, nos intervalos...), pare, fique em silêncio, olhe para dentro de si e 'pense na vida', sinta-se em comunhão com as outras pessoas, com as árvores, as flores, os pássaros, as estrelas... e com Deus! 3- Adquira o hábito de fazer um ou dois momentos de meditação a cada dia, com um texto bíblico (leitura orante) ou simplesmente repetindo, de coração, uma invocação bíblica, como por exemplo, Maranatha (Vem, Senhor Jesus!), ou Senhor Jesus, tem compaixão... Fazendo assim, o Espírito Santo encontrará a porta aberto para nos atingir profundamente, em nossa interioridade, como discípulos/as, para depois nos 'lançar' como missionários/as, para fora, na sociedade, no mundo, na busca de uma maneira mais solidária e igualitária de se organizar a sociedade.
5. Formação litúrgica mistagógica
'Mistagogia' vem de uma composição de duas palavras gregas: 'myst- ' e 'agogein'. É uma palavra que indica uma prática muito antiga, redescoberta recentemente: guiar para dentro do mistério.
Antes de tudo, é a própria liturgia que nos guia para dentro do mistério que celebramos. Pela participação na ação ritual somos introduzidos/as, iniciados/as, mergulhados/a no mistério. A liturgia nos leva à experiência da fé através da participação nos 'ritos e preces' (Cf. SC 48). Todos os elementos e o dinamismo das celebrações (eucaristia e outros sacramentos, palavra, ofício divino...) nos levam à participação no mistério da vida, morte e glorificação de Jesus, o Cristo. Ajudam-nos a nos identificar com ele nas inúmeras atividades do dia-a-dia, nas escolhas decisivas que temos de fazer em determinados momentos, nas encruzilhadas da vida em que tudo nos parece obscuro e incompreensível, sem saída, sem perspectivas, assim como nos momentos de certeza, de júbilo, de paz, de alegria, de doação, de entrega. Uma palavra das escrituras, um aperto de mão ou um abraço, o versículo de um salmo, um gesto de oração, a água benta respingando em nós, a luz de uma vela acesa, o cheiro do incenso e sua subida para o alto, a luz do sol que passa persistente por uma fresta da porta ou da janela, as palavras ou o gesto da bênção, um profundo silêncio, uma aclamação vigorosa, um abraço verdadeiro de reconciliação, o Pão e o Vinho partilhados, a unção com o crisma ou com o óleo dos enfermos... tudo isto pode se tornar para nós um momento de descoberta, de revelação da profundidade do amor de Deus e do sentido de nossa vida e de nossa morte, de nossos encontros e desencontros, de nossas alegrias e tristezas, de nossas esperanças e desilusões... Tudo isso pode aprofundar nossa opção por ele, pelo caminho do seguimento e da missão em seu nome, na fidelidade a todo custo.
Mas é preciso que alguém nos ajude a perceber o caminho da participação espiritual, integral, de corpo, mente, coração, rumo ao mergulho no encontro com o Transcendente, com Deus, com o Cristo em sua morte-ressurreição, na profundidade da experiência ritual. A catequese mistagógica nos oferece os elementos para podermos entender, intuir o que acontece conosco na ação ritual. Trata-se de ajudar na simbolização, guiar na passagem do sinal material, ‘significante’ (objeto, gesto, leitura, ação ritual), para a realidade teologal-espiritual significada e realizada pelo sinal, fazendo referência à história da salvação (experiências de vida vividas na fé). Aí entram a familiaridade com a Sagrada Escritura e o aprofundamento teológico, que culmina no encontro pessoal com Jesus Cristo, no momento atual, existencial de nossa vida pessoal, comunitária, social. A mistagogia nos leva a uma conversão da interioridade, uma adesão existencial à pessoa de Jesus Cristo e não apenas intelectual ou moral. E esta adesão nos leva a uma atitude ética, um modo de vida de acordo com o evangelho de Jesus Cristo.
Há pelo menos três instâncias nas quais deveríamos receber uma formação mistagógica: no catecumenato e na catequese, nas reuniões de preparação das celebrações (equipes de liturgia, ensaios dos ministros da música ritual), nos cursos de formação litúrgica. Além disso, não nos esqueçamos da importantíssima dimensão mistagógica da homilia.
6. Educar para a ritualidade.
Toda a vida do ser humano é fortemente marcada por ritos. São ações simbólicas que expressam o sentido da vida. Há ritos para os momentos marcantes da vida: o nascimento, a passagem para a adolescência, o casamento, um aniversário, a doença, a morte... E estes ritos são diferentes de acordo com cada grupo humano ou cada cultura, porque expressam a maneira daquele grupo ou daquela cultura entender a vida, o mundo, a morte... Os ritos servem também para passar este sentido para as novas gerações, garantindo a continuidade. Assim, cada cultura tem suas regras para comer, cumprimentar, se vestir. Cada povo indígena tem sua maneira de caçar, iniciar, dançar, enterrar seus mortos. Cada região do país conserva ritos característicos próprios. Cada time de futebol tem sua bandeira, sua camisa, seus slogans. Cada tradição religiosa tem suas rezas, suas músicas, suas danças que expressam seu senso do sagrado. Também nós, cristãos, temos ritos para expressar nossa fé, nossa relação com o sagrada, com Deus.
Normalmente, as novas gerações recebem a tradição ritual dos ‘velhos’, ‘anciãos e anciãs’, da geração anterior. O problema é que séculos de racionalismo e tecnicismo ‘vacinaram’ contra os símbolos, os mitos e os ritos, por considerá-los ultrapassados, não ‘científicos’. E agora, são poucas as pessoas capazes de realizar e ‘curtir’ um rito, sentir prazer, vivê-lo em profundidade, deixando-se atingir por inteiro. Sobrou um frio ritualismo: liturgias realizadas de modo formal, sem alma, sem coração, sem prazer e até sem entendimento. Daí a necessidade de reaprender, de educar para a ‘ritualidade’ da liturgia, para a capacidade de viver as ações rituais ‘na inteireza do ser’.
Podemos aprender com quem não perdeu ou recuperou a sensibilidade ritual: povos indígenas, grupos de afro-descendentes, devotos da religião popular e até com atitudes espontâneas da vida cotidiana. Um dia observei uma mãe que estava com o filho bem pequeno no braço, diante do crucifixo. Ela apontou o dedo para o crucifixo e disse: ‘Olhe aí! É Jesus!’. A criança olhou, espichou o bracinho, e a mãe se aproximou mais para que ele pudesse tocar na cruz. Depois ela disse: ‘Jesus gosta muito de você, gosta da mamãe, gosta de papai... Jogue um beijinho para Jesus.’ Neste quadro tão familiar, tão simples, encontramos os três ‘ingredientes’ que compõem a receita da formação para a ritualidade: fazer um gesto para alguém, saber o que significa, ser movido/a por um afeto.
Em casa, na catequese, nos encontros e cursos de formação litúrgica, devemos oferecer momentos de aprendizagem, simples e profundos, dos gestos rituais com os quais nos relacionamos com Deus, consciente- e ‘amorosamente’: entrar na igreja, inclinar-se diante do altar, acender uma vela, benzer-se, cruzar as mãos em prece, andar em procissão, cantar, escutar uma leitura bíblica, ficar de pé, beijar a Bíblia, ficar sentado, orar em silêncio, fazer uma prece, acompanhar a oração eucarística, partilhar um pedaço de pão, comer o pão, estender a mão para receber o copo, beber e passar o copo para outra pessoa, abraçar alguém desejando-lhe a paz, inclinar a cabeça para receber a bênção, despedir-se...
[1] Texto extraído de Liturgia em Mutirão II, edições CNBB.