quinta-feira, 28 de abril de 2011

Ecologia e Páscoa


O próprio Espírito intercede em nosso favor, com gemidos inefáveis.


Diversas pessoas têm manifestado certa perplexidade com o lema da Campanha da Fraternidade deste ano: “a criação geme em dores de parto”. Acham a frase inconveniente, pessimista, exagerada. Há também fiéis que consideram inadequado à Igreja meter-se nesses assuntos muito científicos, políticos e econômicos. A meu ver, uns e outros não percebem a relação entre a fé cristã em Deus criador e as atuais questões ecológicas.


AS DORES DO PARTO

A citação da Carta aos Romanos tem um fundo pascal. Depois das dores do parto, vem a alegria pelo nascimento da criança. Depois da tempestade, a bonança. Da cruz vem a ressurreição. Jesus consolou os discípulos ante a aproximação de sua Páscoa, lembrando as dores do parto: “Ficareis tristes, mas a vossa tristeza se transformará em alegria. A mulher, quando vai dar à luz, fica angustiada, porque chegou a sua hora. Mas depois que a criança nasceu, já não se lembra mais das dores, pela alegria de um ser humano ter vindo ao mundo” (Jo 16,20-21).

A expressão bíblica dores do parto, citada em diversas passagens (por ex.: Gl 4,19; 1 Tes 5,3; Ap 12,2; Gl 4,27, citando Is 54,1; Jr 13,21; Is 66,7-8) designa, ao mesmo tempo, um doloroso estado atual e a espera de um futuro estado glorioso. Enquanto estivermos neste mundo, morte e vida caminham juntas. Mas a esperança da vida plena é sempre maior. Na Carta aos Romanos 8,19-22, Paulo faz uma profissão de fé pascal e afirma que o mundo material será associado à glorificação do corpo humano no Cristo ressuscitado. Ele ensina que, como o ser humano passa pela morte para ressuscitar em Cristo, também a natureza, que sofre as dores de parto, ressuscitará, será transfigurada e glorificada no corpo cósmico de Cristo. A natureza participa da páscoa de Cristo e do ser humano. Enquanto a filosofia grega queria libertar o espírito da relação com a matéria, considerada má, o cristianismo prega a libertação da própria matéria. Não só o espírito, mas também o corpo humano e, com ele, a natureza, são chamados à participação da glória de Cristo. Todo o universo, criado pela Palavra de Deus (Jo 1,3) que em Jesus Cristo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14), é chamado a participar da reconciliação final de todas as coisas em Cristo (Col 1,20).


OS GEMIDOS DA NATUREZA

O mundo material, criado para o ser humano, participa do nosso destino. Amaldiçoada por causa do pecado humano (“maldito será o solo por tua causa”: Gn 3,17), a natureza se encontra em estado de tensão: “submetida à vaidade”, espera ser liberta da “escravidão da corrupção” (Rm 8,20-21). A fé cristã entende que a origem para os males no mundo se concentra em duas vertentes, entre si indissociáveis: a dimensão frágil de nossa criaturidade, e o pecado humano. Como criaturas, o ser humano e as coisas que existem são frágeis, mortais. Não é preciso muita atenção para perceber os gemidos de dor da criação: terremotos, enchentes, furacões, tsunamis etc. A criação sofre e, com ela, também o ser humano, a começar com os mais pobres, os primeiros a padecer com os flagelos da natureza. É claro que muitos desses gemidos e sofrimentos não têm causa direta na ação humana; fazem parte da própria condição criatural, frágil e caduca do mundo; explicam-se pelas leis internas da própria condição natural: surgir e desaparecer. Mas também é claro que muitos gemidos vêm, sim, de causas humanas, da ganância, do consumismo, do desrespeito e da depredação da natureza. O pecado humano introduziu em nossa condição criatural o vírus da violência e da agressão. O ser humano passa a usar e abusar da natureza, que lhe foi dada para ser transformada; em vez de acolhê-la como um ninho em que o Criador o colocou, a degrada e depreda; em vez de ser co-criador, julga-se dono prepotente, excluindo Deus das decisões no que concerne ao conhecimento e ao uso dos bens do mundo.

A natureza espera ser libertada desse uso egoísta e consumista e predatório que dela fazemos, a fim de ser partilhada e colocada ao serviço de todos. Criada por Deus para o bem comum dos seres humanos, a natureza geme esperando que aconteça o parto pascal da vida para todos. Há uma relação intersubjetiva entre o ser humano e os outros seres vivos e inanimados. Somos feitos da mesma matéria do mundo. Os mesmos elementos químicos e leis físicas compõem e regem a natureza e o corpo humano. Por isso, na concepção cristã, assim como o pecado humano teve como consequência a maldição da terra, também a libertação e glorificação do ser humano se dão em conjunto com a libertação e glorificação da natureza.


OS GEMIDOS DO ESPÍRITO

Mas não é só a criação que geme. Também nós “gememos em nosso íntimo, esperando a condição filial e a redenção de nosso corpo” (Rm 8,23). A criação geme à espera de ser libertada do cativeiro em que o ser humano a colocou. O ser humano geme à espera de sua redenção física, de sua salvação espiritual e sua confirmação como filho de Deus em Cristo. Mas os gemidos da criação e do ser humano não fariam sentido e se perderiam em lamentações infindas e sem solução, se não fosse o próprio Deus a gemer conosco, em nós e por nós. Por isso, mais adiante, São Paulo diz: “é o próprio Espírito que intercede em nosso favor, com gemidos inenarráveis” (Rm 8,26). Gemer é um verbo atribuído ao Espírito Santo, que tudo cria e renova a face da terra (Sl 104,30), que geme e sofre, em todo o percurso da evolução, a fim de que as coisas venham à existência. E agora, geme ainda mais, à espera de que o ser humano se converta e não destrua a obra que ele criou.

O Espírito Santo, que geme dentro de nós e pelo qual clamamos Abbá, Pai (Rm 8,15), nos deu uma nova lei: a lei do amor e da partilha. O próprio Espírito, derramado em nossos corações, habita em nós e nos impede de seguir instintos egoístas (Rm 8,9). O Espírito Santo é o grande dom da Páscoa de Cristo. Ao morrer, “inclinando a cabeça, Jesus entregou o Espírito” (Jo 19,30) e como ressuscitado soprou sobre os discípulos e lhes deu o Espírito Santo (Jo 20,22).

Os cristãos não vivem na lei dos instintos, segundo a carne e os ídolos do mundo, na preocupação de ter mais, poder mais, gastar mais, comprar mais e, com isso, depredar mais a natureza. Ao contrário, a partir da Páscoa de Cristo, vivem na lei do Espírito que dá vida, vivem na sobriedade e na solidariedade. Assim, na vida segundo o Espírito não só são refeitas as relações sociais entre as pessoas e classes, mas também as relações ecológicas entre o ser humano e a natureza.

Pe. Vitor Galdino Feller
Coord. Arquidiocesano de Pastoral da Arquidiocese de Florianópolis
Prof. de Teologia e Diretor do ITESC


Fonte:
http://www.arquifln.org.br