A Liturgia como Celebração
Pe. Cristiano Marmelo Pinto
“As ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja,
que é o ‘sacramento da unidade’, isto é,
o povo santo, unido e ordenado sob a direção dos bispos” (SC 26).
1. O conceito de Celebração
Para a Teologia e Antropologia Litúrgica, o conceito de celebração é de suma importância. Esta palavra tem sido muito usada ultimamente pela linguagem litúrgica. Embora as palavras liturgia e celebração tem sido usada indiscriminadamente, elas não se correspondem. Possuem concepções diferentes e importantes para a compreensão da Teologia Litúrgica.
Liturgia é o culto cristão concebido em termos da teologia bíblica, como expressão de uma atitude vital. Celebração é o momento em que essa atitude vital se torna ato simbólico, ritual e festivo.
A liturgia como culto cristão é uma atitude de uma vida de escuta fiel e de adesão a Palavra de Deus, no seio da aliança estabelecida por Cristo e realizada na Igreja sob a ação do Espírito Santo.
A celebração é o aspecto celebrativo da liturgia, essencial e destinado a inserir o homem no Mistério de Cristo e da Igreja, ou seja, na Salvação.
A liturgia é uma realidade mistérica, ou seja, continuação, prolongamento da obra da salvação na história. Mas ela é também ação, no tempo e no espaço, lugar do exercício sacerdotal que Cristo confiou a Igreja para a santificação do homem e glorificação (culto) de Deus.
A liturgia abarca toda a vida da Igreja, como culto a Deus. A celebração é a sacramentalização dessa vida oferecida como culto espiritual da Deus.
A celebração se dá num momento histórico, num determinado tempo e espaço, expressivo, ritual e simbólico. Na celebração a oferenda se torna eficaz, agradável e aceita por Deus pela mediação de Jesus Cristo no Espírito Santo. Para que o culto cristão seja sacramentalmente eficaz, a celebração é imprescindível.
Os atores da celebração são a Assembléia Litúrgica e os Ministros que nela desempenham papéis e funções.
“A celebração é a forma característica que reveste toda ação litúrgica”.
Celebrar ou celebração está imerso na vida do homem e na história da humanidade. Celebramos tudo aquilo que nos toca profundamente. O sujeito da celebração não é uma só pessoa, mas um grupo, uma comunidade, uma assembléia. Celebrar e celebração correspondem a uma noção de liturgia como ação de toda a Igreja (cf. SC 26).
2. Celebrar e celebração
Devido a importância que a categoria celebração adquiriu para a liturgia, precisamos compreender melhor o significado do conceito. Vamos partir da etimologia da palavra celebrar e de seus derivados.
Celebrar e celebração vem do latim celebrare e celebratio. Estes termos se completam com o adjetivo célebre (celeber). Célebre (celeber) – se aplica ao lugar freqüentado por muitas pessoas. Celebrare – significa o mesmo que freqüentar, que designa a ação de reunir-se. Etimologicamente celebrar equivale a reunir-se num lugar, juntar-se, acorrer em massa. Celebração – é a reunião numerosa, o ato de reunir-se e o momento de estar congregados. Célebre – designa o lugar da reunião ou o lugar freqüentado, e o tempo ou momento da reunião.
Num segundo momento da ação de reunir-se, passa-se ao objeto (motivo) da reunião. Este objeto pode ser uma festa, os mistérios, o culto, etc. Cada um desses objetos da celebração tornam-se celebritas, ou seja, celebridade, um momento solene.
Num terceiro momento passa-se para o nível das manifestações externas ou do ritual desenvolvido na reunião.
3. O uso do termo no latim cristão
No final do século II, o latim começa a ser cristianizado. Ela passa a ser usado na tradução da Bíblia, na catequese e na liturgia. Esta cristianização do latim provoca um alargamento no significado do termo, de modo que celebrare e celebratio adquire novos matizes. O uso do latim no cristianismo facilitou sua comunicação e a liturgia no mundo greco-romano.
Nas traduções latinas da Bíblia, celebrar e celebração estão ligados a termos muitos variados.
1. Traduzindo o verbo poeio (fazer) – tem sentido exclusivamente cultual e se refere aos diferentes objetos designados - páscoa, rito dos ázimos, etc. (cf. Ex 12,48; 13,5; Dt 16,10-13).
2. Traduzindo eortázo (fazer festa) – alude a popularidade da festa. Neste sentido celebrar é sempre uma ação comunitária (cf. Ex 12,14; 23,14; Lv 23,39.41).
Traduzindo caléo (convocar) – acentua o aspecto do chamado de Deus para que o povo se reúna a fim de celebrar (cf. Lv 23,24).
Traduzindo sabbatízo (guardar o sábado) – indica reinteração e continuidade na ação celebrativa, para que o povo se lembre de tudo o que foi feito e ordenado pelo Senhor (cf. Lv 23,32; 2Cr 36,21).
Traduzindo ágo (levar a efeito) – significa a ação celebrativa, o ritual, a conduta dos participantes (cf. 2Mc 2,12; 6,11).
Nos Padres latinos da Igreja, as palavras celebrare e celebratio são usadas algumas vezes para se referir às festas e aos espetáculos, sempre em sentido coletivo e popular, e outras aplicando-as aos atos próprios dos cristãos.
Tertuliano transfere esse vocabulário aos sacramentos cristãos e Santo Ambrósio atribui um conteúdo mais especificamente litúrgico ao verbo celebrare.
São Cromácio de Aquiléia, oferece uma idéia da celebração como representação aqui e agora de toda a salvação anunciada no Primeiro Testamento e realizada por Cristo.
4. Aproximação do conceito de celebração
Para alguns antropólogos, celebração é um meio interpessoal de relação e de encontro, ou seja, uma manifestação comunitária. A celebração congrega os indivíduos constituindo-os num organismo, numa comunidade. A celebração afeta as pessoas e seus sentimentos, de modo que o acontecimento celebrado se transforma numa expressão religiosa. A celebração polariza a totalidade da pessoa em torno de um determinado valor religioso.
A celebração, ao transformar o significado de todos os elementos integrantes (espaço, tempo, símbolos, etc.), transmite a mensagem religiosa. Ela tem o poder de unificar um grupo, de formar uma comunidade com as pessoas que se reúnem para compartilhar a experiência religiosa. A celebração pode atuar como um catalisador moral do grupo, como instrumento educativo.
Ainda na linha antropológica, outros põem ênfase na linguagem celebrativa e definem a celebração pela linguagem e pela expressão.
“Celebração é uma linguagem onde pulsa uma misteriosa expressão,
dificilmente explicável”. - V. Martín Pindado (1979)
Isto significa que a celebração é uma realidade não reduzível a conceitos, a termos racionais, a normas lógicas, mas é fundamentalmente ação, vida. Quando a ênfase é conceitual, lógica e racional, temos como resultado uma celebração fria, verbalista, apagada e sem expressividade.
Dentro desta linha antropológica, há autores que afirmam que celebrar é brincar, folgar, fazer festa.
1. Celebrar é brincar, ou seja, atividade lúdica do cristão;
2. Celebrar é folgar, é lazer, é intuição, gozo, antecipado da eternidade;
3. Celebrar é fazer festa, com tudo o que festa significa, é deleite do espírito, é liberdade, é contemplação da beleza, etc.
A celebração é uma categoria que pertence à dimensão sensível e visível da liturgia cristã.
Odo Casel, primeiro teólogo da liturgia, diz que a celebração é uma epifania, uma manifestação do divino na ação ritual.
Para a fenomenologia, a celebração é uma hierofania, ou seja, uma mediação que torna possível a comunicação entre o mistério e o homem, e a participação deste na energia salvadora que se faz presente.
Para O. Casel, o elemento principal da celebração é a presença-atualização da salvação na ação ritual.
Na celebração cristã o ato sacramental é sempre o mesmo, ainda que o aspecto do mistério comemorado seja diferente. A celebração é atualização a obra da nossa Redenção (cf. SC 2). O hoje da celebração e da presença renovadora do mistério da salvação confere à liturgia cristã um valor escatológico, ou seja, põe o homem em contato com a eternidade.
5. O que é uma celebração?
Devemos antes afastar duas eventuais confusões: a primeira que identifica liturgia com celebração, sem mais nem menos, e a segunda que confunde celebração com cerimônia.
Liturgia é o culto da vida inteira dos crentes, e celebração é o momento simbólico, ritual e festivo. Celebração é um acontecimento sacramental. Não é a mesma coisa que cerimônia. Cerimônia é um elemento da celebração, uma ação externa sujeita a uma norma ou costume. Infelizmente por muito tempo se identificou liturgia com rubrica e com cerimônia a tal ponto, de bastar que se saiba apenas as rubricas da cerimônia liturgia.
Podemos definir a celebração como o momento expressivo, simbólico, ritual e sacramental, ou seja, um ato que evoca e torna presente, mediante palavras e gestos, a salvação realizada por Deus em Jesus Cristo, com o poder do Espírito Santo. A celebração tem o caráter de ato, ação expressiva, ritual, torna presente a salvação. Na celebração produz-se um diálogo entre Deus e o homem, entre Cristo e a Igreja.
A celebração possui três dimensões:
a) Dimensão mistérica;
b) Dimensão ritual;
c) Dimensão existencial.
A dimensão mistérica: é intervenção, presença e atuação de Deus na vida de seu povo e na vida pessoal de cada participante da ação litúrgica. É o mistério de Cristo, núcleo da liturgia cristã. A dimensão ritual: a celebração é ação de uma assembléia reunida, que através de ritos e de fórmulas manifestam e realizam aquilo que se está celebrando.
A celebração consiste na evocação e no anúncio de um fato de salvação e na atualização desse fato aqui e agora. Nela a Igreja atua como intercessora e mediadora da salvação.
A celebração como ação concreta de uma assembléia, compreende quatro elementos:
1) Um acontecimento que motiva a celebração;
2) Uma comunidade que se faz assembléia;
3) Uma situação festiva que envolve a todos;
4) Um ritual que é executado.
A comunidade, no ato de se reunir, se converte em assembléia cultual – Igreja corpo de Cristo. A situação festiva é algo mais que o momento em que se celebra o acontecimento – o dia festivo, é, antes de tudo, um ambiente que impregna e caracteriza tanto a comunidade que celebra como os atos rituais da ação comum e que se exterioriza nos gestos, nos cantos, nas vestes...
O ritual é o conjunto de gestos, palavras, ações e objetos que intervém na ação celebrativa tendo em vista a evocação e a atualização do acontecimento celebrado. O que está em jogo no ritual celebrativo da liturgia não é a expressividade ou a mensagem de alguns ritos e gestos, mas a correspondência do ritual com o acontecimento que se está celebrando.
O acontecimento celebrado é sempre Cristo, sua vida e sua obra, especialmente sua morte e ressurreição; a comunidade é sempre a Igreja; a situação festiva é a alegria de saber que o Senhor está presente e atuante, o ritual é sempre uma ação sacramental.
A dimensão existencial: a celebração não apenas leva a comunidade reunida a participar do acontecimento salvífico, mas se torna um programa de vida, manifesta-se como um motivo de compromisso de vida. Os crentes devem viver o que celebram. A celebração deve fazer com que a Igreja e seus fiéis continuem sendo no mundo um sinal sagrado. A liturgia se caracteriza por fazer da vida cristã um ato permanente de culto ao Pai, cujo momento culminante é o momento celebrativo.
6. Estrutura da celebração
A celebração é uma ação e uma possibilidade de encontro com o mistério da salvação. Ela deverá reunir uma série de condições espirituais e funcionais que possibilitem a participação no mistério e no fruto da celebração. A estas condições estão: o ritmo da ação, a participação ativa e consciente de toda a assembléia, o exercício de todas as funções e ministérios no interior da celebração.
De todas as condições, vamos nos ater no ritmo da celebração enquanto expressão da estrutura interna da ação celebrativa. Chamamos de ritmo da celebração a organização dinâmica e harmoniosa de todos os elementos que intervêm na celebração, o que dá unidade, equilíbrio de todas as partes e progressão dos diferentes momentos.
Os livros litúrgicos se limitam a assinalar os diferentes passos da celebração no ordo ou ritual. Porém o ritmo não depende dos livros, mas sim dos que celebram, seguindo fielmente o ritual, com todas as indicações e rubricas. A estrutura da celebração sustenta todo o conjunto da ação celebrativa e coordena os diferentes elementos e partes. O ritmo da celebração deve deixar evidente a estrutura prévia que é dada pelo ritual.
7. Estrutura lógico-teológica da celebração
Vamos agora destacar os principais elementos que estão entranhados em toda ação litúrgica cristã e que vêm à tona em determinados momentos da celebração. São eles:
a) Anamnese;
b) Epiclese permanente;
c) Doxologia;
d) Mistagogia contínua.
A) ANAMNESE
Toda celebração é uma lembrança sagrada do acontecimento salvífico. Neste sentido é anamnese permanente.
• É anamnese de Deus para com seus filhos, porque lembrou-se da sua misericórdia (cf. Lc 1,54);
• É anamnese de Cristo para com o Pai, porque intercede em nosso favor (cf. Hb 7,25);
• É anamnese do Espírito Santo, que nos recorda todas as coisas ditas pelo Senhor (cf. Jo 14,26).
A Igreja, na celebração, faz o memorial e recorda os principais fatos salvíficos que culminam no mistério pascal. O acontecimento da páscoa do Senhor, objeto da anamnese recíproca entre Deus e os homens, ocorreu uma vez para sempre. O ritmo da celebração permite apreciar os momentos com intensidade da anamnese. A celebração, por outro lado, situa-se no centro do tempo litúrgico.
B) EPICLESE PERMANENTE
Em toda celebração litúrgica está presente o Espírito Santo, enviado por Cristo. Toda celebração é epiclese, isto é, invocação da presença santificadora da Santíssima Trindade e não somente do Espírito Santo. O momento cume da epiclese é a invocação da oração eucarística ou das demais orações sacramentais.
A epiclese é:
a) A invocação trinitária que abre a celebração;
b) A proclamação da Palavra de Deus acompanhada de aclamações e orações;
c) A súplica da assembléia (oração dos fiéis);
d) A invocação sacerdotal da oração eucarística e de outras fórmulas;
e) O gesto da paz;
f) Os gestos sacramentais (imposição das mãos, a unção, etc.).
B) DOXOLOGIA
A celebração é doxológica, ou seja, é louvor, culto, adoração, glorificação,reconhecimento e ação de graças, resposta de fé. A doxologia como elemento estrutural e básico está presente em toda e qualquer ação litúrgica. A doxologia é sempre proclamação da glória do Pai mediante Jesus Cristo no Espírito Santo. Toda celebração é louvor ao Pai por Jesus Cristo no Espírito.
A doxologia pode ser notada especialmente:
a) No hino ou canto inicial que abre a celebração, especialmente a Liturgia das Horas;
b) No hino de louvor, ou Glória;
c) No salmo responsorial e em algumas ocasiões no canto do aleluia;
d) Nas aclamações que acompanham as preces ou fórmulas (oração eucarística, bênçãos, etc.);
e) Na grande doxologia que encerra a oração eucarística;
f) Na ação de graças depois da participação eucarística e nas aclamações em alguns ritos (consentimento matrimonial, etc.).
D) MISTAGOGIA CONTÍNUA
A liturgia é iniciadora na ação celebrativa, nas atitudes com as quais é preciso celebrar. Por meio da liturgia a Igreja procura introduzir os fiéis na vivência interior e profunda da salvação. A mistagogia, como já vimos, é a iniciação no mistério celebrado, através dos ritos.
A celebração é toda ela mistagógica, no sentido de que é uma ação que leva todos os participantes a viver o mistério de Cristo. A celebração na perspectiva da mistagogia, possui um ritmo na condução da assembléia ao interior do mistério celebrado. A celebração possui uma dinâmica que leva a comunidade celebrante a vivenciar o mistério por meio dos ritos, dos gestos, das palavras, dos símbolos, etc.
Alguns elementos particulares significativos do ponto de vista mistagógico:
a) As saudações litúrgicas;
b) Os momentos penitenciais;
c) A liturgia da Palavra;
d) A homilia;
e) Bênção da água ou do óleo, etc.;
f) Os cantos que acompanham determinados momentos;
g) As admoestações presidenciais; etc.
A mistagogia ajuda a executar o que o Senhor mandou: “Fazei isto em memória de mim”.
8. Conclusão
A celebração é atualmente um dos conceitos mais ricos da liturgia. Há nos elementos da celebração uma relação que os une:
a) O acontecimento;
b) A reunião da assembléia;
c) O clima festivo;
d) A escuta da Palavra;
e) Os cantos e orações;
f) A ação celebrativa com sinais, gestos e símbolos;
g) O espaço e o tempo.
A celebração se desenvolve seguindo um ritmo de acordo com as estruturas que sustentam toda ação celebrativa. Existe um fio condutor em toda celebração:
1. A memória do acontecimento;
2. A súplica da presença e ação de Deus;
3. O louvor e a ação de graças;
4. E a iniciação ao mistério celebrado.
Foi o que vimos quando tratamos da anamnese, epiclese, doxologia e mistagogia. Dentro dessa estrutura fundamental inserem-se as formas litúrgicas concretas: leituras, cantos, preces, aclamações, gestos, ritos, etc.
O conjunto de todas elas e seu funcionamento, descritos nos rituais, não são mais que um meio ao serviço dos fins da celebração, ou seja, dos fins da própria liturgia.
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Bibliografia Básica:
MARTÍN, Julián López. No espírito e na verdade: introdução teológica à liturgia. Vol. 1. Petrópolis: Vozes, 1996, pp. 178-201.
SODI, Mânlio. Celebração. In: TRIACCA, A. M. e SARTORE, D. Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1992, pp. 183-196.
MARTÍN, Julián López. A liturgia da Igreja: teologia, história, espiritualidade e pastoral. São Paulo: Paulinas, 2006, pp. 137-148.
Pe. Cristiano Marmelo Pinto
“As ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja,
que é o ‘sacramento da unidade’, isto é,
o povo santo, unido e ordenado sob a direção dos bispos” (SC 26).
1. O conceito de Celebração
Para a Teologia e Antropologia Litúrgica, o conceito de celebração é de suma importância. Esta palavra tem sido muito usada ultimamente pela linguagem litúrgica. Embora as palavras liturgia e celebração tem sido usada indiscriminadamente, elas não se correspondem. Possuem concepções diferentes e importantes para a compreensão da Teologia Litúrgica.
Liturgia é o culto cristão concebido em termos da teologia bíblica, como expressão de uma atitude vital. Celebração é o momento em que essa atitude vital se torna ato simbólico, ritual e festivo.
A liturgia como culto cristão é uma atitude de uma vida de escuta fiel e de adesão a Palavra de Deus, no seio da aliança estabelecida por Cristo e realizada na Igreja sob a ação do Espírito Santo.
A celebração é o aspecto celebrativo da liturgia, essencial e destinado a inserir o homem no Mistério de Cristo e da Igreja, ou seja, na Salvação.
A liturgia é uma realidade mistérica, ou seja, continuação, prolongamento da obra da salvação na história. Mas ela é também ação, no tempo e no espaço, lugar do exercício sacerdotal que Cristo confiou a Igreja para a santificação do homem e glorificação (culto) de Deus.
A liturgia abarca toda a vida da Igreja, como culto a Deus. A celebração é a sacramentalização dessa vida oferecida como culto espiritual da Deus.
A celebração se dá num momento histórico, num determinado tempo e espaço, expressivo, ritual e simbólico. Na celebração a oferenda se torna eficaz, agradável e aceita por Deus pela mediação de Jesus Cristo no Espírito Santo. Para que o culto cristão seja sacramentalmente eficaz, a celebração é imprescindível.
Os atores da celebração são a Assembléia Litúrgica e os Ministros que nela desempenham papéis e funções.
“A celebração é a forma característica que reveste toda ação litúrgica”.
Celebrar ou celebração está imerso na vida do homem e na história da humanidade. Celebramos tudo aquilo que nos toca profundamente. O sujeito da celebração não é uma só pessoa, mas um grupo, uma comunidade, uma assembléia. Celebrar e celebração correspondem a uma noção de liturgia como ação de toda a Igreja (cf. SC 26).
2. Celebrar e celebração
Devido a importância que a categoria celebração adquiriu para a liturgia, precisamos compreender melhor o significado do conceito. Vamos partir da etimologia da palavra celebrar e de seus derivados.
Celebrar e celebração vem do latim celebrare e celebratio. Estes termos se completam com o adjetivo célebre (celeber). Célebre (celeber) – se aplica ao lugar freqüentado por muitas pessoas. Celebrare – significa o mesmo que freqüentar, que designa a ação de reunir-se. Etimologicamente celebrar equivale a reunir-se num lugar, juntar-se, acorrer em massa. Celebração – é a reunião numerosa, o ato de reunir-se e o momento de estar congregados. Célebre – designa o lugar da reunião ou o lugar freqüentado, e o tempo ou momento da reunião.
Num segundo momento da ação de reunir-se, passa-se ao objeto (motivo) da reunião. Este objeto pode ser uma festa, os mistérios, o culto, etc. Cada um desses objetos da celebração tornam-se celebritas, ou seja, celebridade, um momento solene.
Num terceiro momento passa-se para o nível das manifestações externas ou do ritual desenvolvido na reunião.
3. O uso do termo no latim cristão
No final do século II, o latim começa a ser cristianizado. Ela passa a ser usado na tradução da Bíblia, na catequese e na liturgia. Esta cristianização do latim provoca um alargamento no significado do termo, de modo que celebrare e celebratio adquire novos matizes. O uso do latim no cristianismo facilitou sua comunicação e a liturgia no mundo greco-romano.
Nas traduções latinas da Bíblia, celebrar e celebração estão ligados a termos muitos variados.
1. Traduzindo o verbo poeio (fazer) – tem sentido exclusivamente cultual e se refere aos diferentes objetos designados - páscoa, rito dos ázimos, etc. (cf. Ex 12,48; 13,5; Dt 16,10-13).
2. Traduzindo eortázo (fazer festa) – alude a popularidade da festa. Neste sentido celebrar é sempre uma ação comunitária (cf. Ex 12,14; 23,14; Lv 23,39.41).
Traduzindo caléo (convocar) – acentua o aspecto do chamado de Deus para que o povo se reúna a fim de celebrar (cf. Lv 23,24).
Traduzindo sabbatízo (guardar o sábado) – indica reinteração e continuidade na ação celebrativa, para que o povo se lembre de tudo o que foi feito e ordenado pelo Senhor (cf. Lv 23,32; 2Cr 36,21).
Traduzindo ágo (levar a efeito) – significa a ação celebrativa, o ritual, a conduta dos participantes (cf. 2Mc 2,12; 6,11).
Nos Padres latinos da Igreja, as palavras celebrare e celebratio são usadas algumas vezes para se referir às festas e aos espetáculos, sempre em sentido coletivo e popular, e outras aplicando-as aos atos próprios dos cristãos.
Tertuliano transfere esse vocabulário aos sacramentos cristãos e Santo Ambrósio atribui um conteúdo mais especificamente litúrgico ao verbo celebrare.
São Cromácio de Aquiléia, oferece uma idéia da celebração como representação aqui e agora de toda a salvação anunciada no Primeiro Testamento e realizada por Cristo.
4. Aproximação do conceito de celebração
Para alguns antropólogos, celebração é um meio interpessoal de relação e de encontro, ou seja, uma manifestação comunitária. A celebração congrega os indivíduos constituindo-os num organismo, numa comunidade. A celebração afeta as pessoas e seus sentimentos, de modo que o acontecimento celebrado se transforma numa expressão religiosa. A celebração polariza a totalidade da pessoa em torno de um determinado valor religioso.
A celebração, ao transformar o significado de todos os elementos integrantes (espaço, tempo, símbolos, etc.), transmite a mensagem religiosa. Ela tem o poder de unificar um grupo, de formar uma comunidade com as pessoas que se reúnem para compartilhar a experiência religiosa. A celebração pode atuar como um catalisador moral do grupo, como instrumento educativo.
Ainda na linha antropológica, outros põem ênfase na linguagem celebrativa e definem a celebração pela linguagem e pela expressão.
“Celebração é uma linguagem onde pulsa uma misteriosa expressão,
dificilmente explicável”. - V. Martín Pindado (1979)
Isto significa que a celebração é uma realidade não reduzível a conceitos, a termos racionais, a normas lógicas, mas é fundamentalmente ação, vida. Quando a ênfase é conceitual, lógica e racional, temos como resultado uma celebração fria, verbalista, apagada e sem expressividade.
Dentro desta linha antropológica, há autores que afirmam que celebrar é brincar, folgar, fazer festa.
1. Celebrar é brincar, ou seja, atividade lúdica do cristão;
2. Celebrar é folgar, é lazer, é intuição, gozo, antecipado da eternidade;
3. Celebrar é fazer festa, com tudo o que festa significa, é deleite do espírito, é liberdade, é contemplação da beleza, etc.
A celebração é uma categoria que pertence à dimensão sensível e visível da liturgia cristã.
Odo Casel, primeiro teólogo da liturgia, diz que a celebração é uma epifania, uma manifestação do divino na ação ritual.
Para a fenomenologia, a celebração é uma hierofania, ou seja, uma mediação que torna possível a comunicação entre o mistério e o homem, e a participação deste na energia salvadora que se faz presente.
Para O. Casel, o elemento principal da celebração é a presença-atualização da salvação na ação ritual.
Na celebração cristã o ato sacramental é sempre o mesmo, ainda que o aspecto do mistério comemorado seja diferente. A celebração é atualização a obra da nossa Redenção (cf. SC 2). O hoje da celebração e da presença renovadora do mistério da salvação confere à liturgia cristã um valor escatológico, ou seja, põe o homem em contato com a eternidade.
5. O que é uma celebração?
Devemos antes afastar duas eventuais confusões: a primeira que identifica liturgia com celebração, sem mais nem menos, e a segunda que confunde celebração com cerimônia.
Liturgia é o culto da vida inteira dos crentes, e celebração é o momento simbólico, ritual e festivo. Celebração é um acontecimento sacramental. Não é a mesma coisa que cerimônia. Cerimônia é um elemento da celebração, uma ação externa sujeita a uma norma ou costume. Infelizmente por muito tempo se identificou liturgia com rubrica e com cerimônia a tal ponto, de bastar que se saiba apenas as rubricas da cerimônia liturgia.
Podemos definir a celebração como o momento expressivo, simbólico, ritual e sacramental, ou seja, um ato que evoca e torna presente, mediante palavras e gestos, a salvação realizada por Deus em Jesus Cristo, com o poder do Espírito Santo. A celebração tem o caráter de ato, ação expressiva, ritual, torna presente a salvação. Na celebração produz-se um diálogo entre Deus e o homem, entre Cristo e a Igreja.
A celebração possui três dimensões:
a) Dimensão mistérica;
b) Dimensão ritual;
c) Dimensão existencial.
A dimensão mistérica: é intervenção, presença e atuação de Deus na vida de seu povo e na vida pessoal de cada participante da ação litúrgica. É o mistério de Cristo, núcleo da liturgia cristã. A dimensão ritual: a celebração é ação de uma assembléia reunida, que através de ritos e de fórmulas manifestam e realizam aquilo que se está celebrando.
A celebração consiste na evocação e no anúncio de um fato de salvação e na atualização desse fato aqui e agora. Nela a Igreja atua como intercessora e mediadora da salvação.
A celebração como ação concreta de uma assembléia, compreende quatro elementos:
1) Um acontecimento que motiva a celebração;
2) Uma comunidade que se faz assembléia;
3) Uma situação festiva que envolve a todos;
4) Um ritual que é executado.
A comunidade, no ato de se reunir, se converte em assembléia cultual – Igreja corpo de Cristo. A situação festiva é algo mais que o momento em que se celebra o acontecimento – o dia festivo, é, antes de tudo, um ambiente que impregna e caracteriza tanto a comunidade que celebra como os atos rituais da ação comum e que se exterioriza nos gestos, nos cantos, nas vestes...
O ritual é o conjunto de gestos, palavras, ações e objetos que intervém na ação celebrativa tendo em vista a evocação e a atualização do acontecimento celebrado. O que está em jogo no ritual celebrativo da liturgia não é a expressividade ou a mensagem de alguns ritos e gestos, mas a correspondência do ritual com o acontecimento que se está celebrando.
O acontecimento celebrado é sempre Cristo, sua vida e sua obra, especialmente sua morte e ressurreição; a comunidade é sempre a Igreja; a situação festiva é a alegria de saber que o Senhor está presente e atuante, o ritual é sempre uma ação sacramental.
A dimensão existencial: a celebração não apenas leva a comunidade reunida a participar do acontecimento salvífico, mas se torna um programa de vida, manifesta-se como um motivo de compromisso de vida. Os crentes devem viver o que celebram. A celebração deve fazer com que a Igreja e seus fiéis continuem sendo no mundo um sinal sagrado. A liturgia se caracteriza por fazer da vida cristã um ato permanente de culto ao Pai, cujo momento culminante é o momento celebrativo.
6. Estrutura da celebração
A celebração é uma ação e uma possibilidade de encontro com o mistério da salvação. Ela deverá reunir uma série de condições espirituais e funcionais que possibilitem a participação no mistério e no fruto da celebração. A estas condições estão: o ritmo da ação, a participação ativa e consciente de toda a assembléia, o exercício de todas as funções e ministérios no interior da celebração.
De todas as condições, vamos nos ater no ritmo da celebração enquanto expressão da estrutura interna da ação celebrativa. Chamamos de ritmo da celebração a organização dinâmica e harmoniosa de todos os elementos que intervêm na celebração, o que dá unidade, equilíbrio de todas as partes e progressão dos diferentes momentos.
Os livros litúrgicos se limitam a assinalar os diferentes passos da celebração no ordo ou ritual. Porém o ritmo não depende dos livros, mas sim dos que celebram, seguindo fielmente o ritual, com todas as indicações e rubricas. A estrutura da celebração sustenta todo o conjunto da ação celebrativa e coordena os diferentes elementos e partes. O ritmo da celebração deve deixar evidente a estrutura prévia que é dada pelo ritual.
7. Estrutura lógico-teológica da celebração
Vamos agora destacar os principais elementos que estão entranhados em toda ação litúrgica cristã e que vêm à tona em determinados momentos da celebração. São eles:
a) Anamnese;
b) Epiclese permanente;
c) Doxologia;
d) Mistagogia contínua.
A) ANAMNESE
Toda celebração é uma lembrança sagrada do acontecimento salvífico. Neste sentido é anamnese permanente.
• É anamnese de Deus para com seus filhos, porque lembrou-se da sua misericórdia (cf. Lc 1,54);
• É anamnese de Cristo para com o Pai, porque intercede em nosso favor (cf. Hb 7,25);
• É anamnese do Espírito Santo, que nos recorda todas as coisas ditas pelo Senhor (cf. Jo 14,26).
A Igreja, na celebração, faz o memorial e recorda os principais fatos salvíficos que culminam no mistério pascal. O acontecimento da páscoa do Senhor, objeto da anamnese recíproca entre Deus e os homens, ocorreu uma vez para sempre. O ritmo da celebração permite apreciar os momentos com intensidade da anamnese. A celebração, por outro lado, situa-se no centro do tempo litúrgico.
B) EPICLESE PERMANENTE
Em toda celebração litúrgica está presente o Espírito Santo, enviado por Cristo. Toda celebração é epiclese, isto é, invocação da presença santificadora da Santíssima Trindade e não somente do Espírito Santo. O momento cume da epiclese é a invocação da oração eucarística ou das demais orações sacramentais.
A epiclese é:
a) A invocação trinitária que abre a celebração;
b) A proclamação da Palavra de Deus acompanhada de aclamações e orações;
c) A súplica da assembléia (oração dos fiéis);
d) A invocação sacerdotal da oração eucarística e de outras fórmulas;
e) O gesto da paz;
f) Os gestos sacramentais (imposição das mãos, a unção, etc.).
B) DOXOLOGIA
A celebração é doxológica, ou seja, é louvor, culto, adoração, glorificação,reconhecimento e ação de graças, resposta de fé. A doxologia como elemento estrutural e básico está presente em toda e qualquer ação litúrgica. A doxologia é sempre proclamação da glória do Pai mediante Jesus Cristo no Espírito Santo. Toda celebração é louvor ao Pai por Jesus Cristo no Espírito.
A doxologia pode ser notada especialmente:
a) No hino ou canto inicial que abre a celebração, especialmente a Liturgia das Horas;
b) No hino de louvor, ou Glória;
c) No salmo responsorial e em algumas ocasiões no canto do aleluia;
d) Nas aclamações que acompanham as preces ou fórmulas (oração eucarística, bênçãos, etc.);
e) Na grande doxologia que encerra a oração eucarística;
f) Na ação de graças depois da participação eucarística e nas aclamações em alguns ritos (consentimento matrimonial, etc.).
D) MISTAGOGIA CONTÍNUA
A liturgia é iniciadora na ação celebrativa, nas atitudes com as quais é preciso celebrar. Por meio da liturgia a Igreja procura introduzir os fiéis na vivência interior e profunda da salvação. A mistagogia, como já vimos, é a iniciação no mistério celebrado, através dos ritos.
A celebração é toda ela mistagógica, no sentido de que é uma ação que leva todos os participantes a viver o mistério de Cristo. A celebração na perspectiva da mistagogia, possui um ritmo na condução da assembléia ao interior do mistério celebrado. A celebração possui uma dinâmica que leva a comunidade celebrante a vivenciar o mistério por meio dos ritos, dos gestos, das palavras, dos símbolos, etc.
Alguns elementos particulares significativos do ponto de vista mistagógico:
a) As saudações litúrgicas;
b) Os momentos penitenciais;
c) A liturgia da Palavra;
d) A homilia;
e) Bênção da água ou do óleo, etc.;
f) Os cantos que acompanham determinados momentos;
g) As admoestações presidenciais; etc.
A mistagogia ajuda a executar o que o Senhor mandou: “Fazei isto em memória de mim”.
8. Conclusão
A celebração é atualmente um dos conceitos mais ricos da liturgia. Há nos elementos da celebração uma relação que os une:
a) O acontecimento;
b) A reunião da assembléia;
c) O clima festivo;
d) A escuta da Palavra;
e) Os cantos e orações;
f) A ação celebrativa com sinais, gestos e símbolos;
g) O espaço e o tempo.
A celebração se desenvolve seguindo um ritmo de acordo com as estruturas que sustentam toda ação celebrativa. Existe um fio condutor em toda celebração:
1. A memória do acontecimento;
2. A súplica da presença e ação de Deus;
3. O louvor e a ação de graças;
4. E a iniciação ao mistério celebrado.
Foi o que vimos quando tratamos da anamnese, epiclese, doxologia e mistagogia. Dentro dessa estrutura fundamental inserem-se as formas litúrgicas concretas: leituras, cantos, preces, aclamações, gestos, ritos, etc.
O conjunto de todas elas e seu funcionamento, descritos nos rituais, não são mais que um meio ao serviço dos fins da celebração, ou seja, dos fins da própria liturgia.
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Bibliografia Básica:
MARTÍN, Julián López. No espírito e na verdade: introdução teológica à liturgia. Vol. 1. Petrópolis: Vozes, 1996, pp. 178-201.
SODI, Mânlio. Celebração. In: TRIACCA, A. M. e SARTORE, D. Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1992, pp. 183-196.
MARTÍN, Julián López. A liturgia da Igreja: teologia, história, espiritualidade e pastoral. São Paulo: Paulinas, 2006, pp. 137-148.