quinta-feira, 30 de junho de 2011


“Admiração Eucarística”
a prática litúrgica como fonte para a teologia


Para o jesuíta Cesare Giraudo, a teologia também pode nascer à luz das celebrações litúrgicas. Segundo ele, é preciso desfazer a divisão milenar entre liturgia e reflexão teológica

Por: Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin
Tradução: Alessandra Gusatto


“Quando celebramos a santa missa, vamos ao Calvário com os pés da alma e os pés da fé, subimos todos o Calvário naquela primeira Sexta-feira Santa e retornamos ao túmulo do ressuscitado naquele primeiro Domingo da história”. Em outras palavras, “a Igreja vive a partir da Eucaristia”. Esse “estupor eucarístico” é que estimula a pesquisa e a obra do italiano Cesare Giraudo, considerado uma das maiores autoridades em liturgia na atualidade. Padre jesuíta, Giraudo esteve na Unisinos em março, participando da programação da Páscoa IHU 2010, com o curso “Eucaristia: da liturgia à vida”, entre os dias 22 e 25, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Nesta entrevista, concedida, pessoalmente, à IHU On-Line, Giraudo abordou alguns pontos centrais de sua reflexão – como epiclese, a importância da oração dos fiéis e o valor da expressão litúrgica “Kyrie eleyson” –, além de comentar os aspectos mais importantes da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. Segundo ele, a reforma serviu para aliviar o “edifício” da liturgia e restaurar a sua fisionomia, depois de tantos séculos, para revelar o seu “esplendor”.

Giraudo também defende a dimensão sacrifical da missa. Para ele, é preciso “não ignorar a dimensão sacrifical da missa, porque esta significa o evento pascal”. Na missa, “somos remetidos ao evento pascal para voltar a emergir na morte do Senhor Jesus e morrer ao nosso pecado, ao nosso egoísmo, e voltar a renascer na sua ressurreição”. Por isso, defende que a Igreja deveria encontrar “um caminho de misericórdia” para que todos os cristãos participem dos sacramentos, referindo-se a casais de segunda união e homossexuais. “O sacerdote deve dar a comunhão a todos aqueles que se apresentam para recebê-la. Quem se apresenta à comunhão recebe a comunhão. Depois, cada um, na sua consciência, estabelece o seu comportamento”, resume.

Sacerdote jesuíta italiano e doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Cesare Giraudo viveu muitos anos em Madagascar, na África, desenvolvendo seu ministério pastoral. Regressando à Europa, lecionou teologia dogmática e liturgia na Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional, em Nápoles. Atualmente, é professor do Pontifício Instituto Oriental, na Pontifícia Faculdade Teológica de Nápoles e na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Tem diversos livros publicados sobre liturgia. Aqui citamos os traduzidos para o português: Num só corpo. Tratado mistagógico sobre a eucaristia (Ed. Loyola, 2001), Redescobrindo a eucaristia (Ed. Loyola, 2002) e Admiração eucarística. Para uma mistagogia da missa (Ed. Loyola, 2008).

Giraudo é autor da Edição 50 dos Cadernos Teologia Pública, intitulado Ite, missa est! A Eucaristia como compromisso para a missão.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que significou a renovação litúrgica do Concílio Vaticano II e de Paulo VI?

Cesare Giraudo A reforma litúrgica do Vaticano II foi um evento muito importante. É um pouco como restaurar edifícios: um edifício que atravessou os séculos, que partiu de um original iluminado, com uma arquitetura original muito clara, ao qual sucessivamente foram adicionados novos elementos que, no fim, deixaram o edifício original mais pesado. Basta observar a fachada de nossas igrejas ou prédios. Então, às vezes, quando se vê que aquele edifício não possui mais uma fisionomia precisa e que pertence a estilos diversos, em um certo ponto se faz uma restauração e se tenta, na medida do possível, retirar tudo aquilo que há de pesado e que foi adicionado durante os séculos. E se a operação é bem feita, no fim nos deparamos com o edifício em todo o seu esplendor.

A liturgia vem de longe. A própria liturgia cristã é proveniente da liturgia judaica, do Antigo Testamento e, portanto, atravessou os séculos. Quando lemos sobre a liturgia cristã nos documentos dos Padres da Igreja , começando por Justino , vemos que ela tem uma linearidade perfeita. Por exemplo, a liturgia da missa: o rito introdutório, depois a liturgia da palavra, a liturgia eucarística, com os seus elementos internos, depois o rito conclusivo. Posteriormente, foram sendo adicionados muitos e muitos elementos, sobretudo na parte inicial da missa. A parte essencial foi penalizada, foi reduzida, também foi muito clericalizada, porque os sacerdotes disseram: “Eu faço tudo. Não se preocupem, rezem o terço”. Então, o Concílio Vaticano II disse: “Façamos essa bendita restauração! Tentemos tirar tudo o que foi acrescentado sucessivamente e que fez pesar o rito e veremos surgir uma celebração muito mais simples, mais nítida, mais linear”. Foi essa a operação que Paulo VI fez, e que o Concílio Vaticano II quis.

IHU On-Line – Um exemplo mais concreto?

Cesare Giraudo – Antes, o início da missa comportava muitas orações que não acabavam nunca. O Concílio e a reforma litúrgica reduziram a parte inicial. O “Confiteor” [oração penitencial] era dito duas vezes, e havia muitas outras orações, salmos que não terminavam mais. Reduziu-se essa parte inicial e deu-se espaço novamente às leituras. Antes, as leituras eram feitas rapidamente, pois o sacerdote lia em latim, em voz baixa, para si mesmo. Portanto, a leitura passava num piscar de olhos. Então, o Concílio, reduzindo essas partes que haviam sido acrescentadas, criou espaço para a Liturgia da Palavra, que deve ser proclamada nas línguas faladas de hoje, e não mais pelo sacerdote, mas sim por alguém competente, um leitor. E depois reintroduziram a oração dos fiéis [também conhecida como prece dos fiéis], um elemento importante que, estranha e misteriosamente, havia se perdido com o passar dos séculos. Então, tirando aquilo que tinha sido adicionado abusivamente, redescobriu-se aquilo que realmente conta.

IHU On-Line – O senhor aborda bastante a questão da oração dos fiéis na celebração da missa. Qual a sua importância?

Cesare Giraudo – Eu sou filho de um pedreiro, construtor de casas. Quando eu era menino, sempre ficava atrás do meu pai nos períodos de férias. E meu pai me deu a ideia da estrutura. Pintar uma casa é importante, mas é secundário, pode-se pintar hoje ou amanhã, tanto faz. Mas o que conta é construir bem, uma casa com bons fundamentos. A liturgia também tem a sua estrutura, tem os seus pilares importantes, suas vigas de sustentação. A liturgia se apoia sobre dois pilares. São Justino, mártir no ano 150, era um leigo, nunca celebrou uma liturgia, mas tinha uma compreensão estrutural da liturgia da missa e assim a descreve com base nos dois pilares importantes: discurso descendente da boca de Deus aos nossos ouvidos, e discurso ascendente das nossas bocas ao ouvido de Deus, a oração dos fiéis. O primeiro pilar importante é o discurso descendente, a proclamação das leituras, o momento em que a palavra sai da boca de Deus através da boca ministerial do leitor e chega a nossos ouvidos. Depois de entender a mensagem é que vem o segundo pilar: nós nos levantamos e delegamos as nossas súplicas, é o momento da oração dos fiéis.

Então, é importante falar sobre a liturgia com base na estrutura, pois, muitas vezes, falamos da liturgia enumerando os elementos: na missa se faz isto, aquilo, elenca-se 10, 20, 30 coisas. Mas se enumerarmos as coisas assim, não vemos a diferença: todos os elementos acabam tendo a mesma força. Mas não: existem elementos absolutamente pesados, importantes, que não podem ser deixados de lado, e existem outros que podem estar lá ou não, que têm um valor muito relativo.

IHU On-Line – No curso que o senhor ministrou na Páscoa IHU 2010, o senhor apresentou duas metodologias possíveis para o estudo da eucaristia: a mistagogia patrística e a sistemática escolástica. Pode nos explicar o que são?

Cesare Giraudo – Nós falamos muito do método. O método é importante. O estudante não pode esperar que seus professores lhe ensinem tudo, pois as coisas são muito vastas. É suficiente que lhe seja ensinado o método. Se alguém sair da universidade com um método na área específica que o interessa, poderá caminhar tranquilo na sua profissão. Ora, quando falamos dos sacramentos, sobretudo da eucaristia, temos dois métodos, duas metodologias, e só duas. Porque cada uma delas se caracteriza pela sua relação com o milênio, com um dos dois milênios. Nós temos, atrás de nós, dois milênios de reflexões cristãs, cada um caracterizado pela sua própria metodologia.

Nos tempos dos Padres da Igreja, nos primeiros séculos, nos tempos de Ambrósio , de Cirilo de Jerusalém, de Agostinho , esses grandes bispos da Igreja antiga, quando explicavam o sacramento da eucaristia e também do batismo, explicavam a partir da experiência celebrativa que havia acontecido. Assim, os catecúmenos eram batizados na noite de Páscoa, tinham a experiência celebrativa do sacramento do batismo, da crisma e da eucaristia, e depois o bispo, no dia seguinte, na segunda-feira, os convocava à escola da Igreja e lhes explicava, a partir da experiência celebrativa que haviam tido, o que o sacerdote disse, o que cada um viu, fez, respondeu. A partir da experiência, explicavam-lhes o que o batismo e, sobretudo, a eucaristia são. Ou seja, explicar os sacramentos a partir da liturgia. A liturgia era realmente o livro da escola. As crianças, os jovens, os adultos que iam à escola, o que levavam consigo? O missal, porque este era seu manual de escola.

Mais tarde, no segundo milênio, tudo mudou, porque disseram: “A Igreja é boa para rezar, o missal é bom para rezar, mas para fazer teologia bastam as nossas cabeças”. Então, fizeram uma teologia abstrata, destacada da realidade. Enquanto que, no primeiro milênio, nos tempos dos Padres, a teologia era feita na Igreja, à luz da celebração. Depois separaram as duas coisas dizendo que a liturgia é uma coisa, e a reflexão teológica é outra.

Eu digo que temos duas metodologias: uma boa, aquela escolástica; a outra [patrística] excelente, ótima. Se escolhermos a metodologia excelente, eu digo: “Veja, nós não perderemos nada das conquistas da teologia escolástica de São Tomás [de Aquino] , mas seremos capazes de corrigir aquelas fraquezas metodológicas que de fato existiram”. Porque São Tomás não é a fé cristã. É um grande pensador que disse coisas maravilhosas, mas não podemos fechar os olhos para os limites da escolástica.

IHU On-Line – Como podemos lidar com a afirmação da dimensão "sacrificial" da eucaristia na cutltura contemporânea? Como compreender essa dimensão numa sociedade repleta de tantos sacrifícios por motivos econômicos, culturais, etnico-raciais, dentre outros?

Cesare Giraudo – A palavra sacrifício tem muitos significados. Agora, quando a palavra sacrifício é aplicada ao sacrifício da cruz, muitas vezes, temos medo dessa palavra, pois ela nos faz pensar na Sexta-feira Santa, na morte de Jesus, que nos incute medo. Mas quando falamos de sacrifício, sacrifício da cruz, não podemos nos esquecer que a Sexta-feira Santa não é o ponto final, mas é a ponte que nos abre ao Domingo de Páscoa, é a passagem para o Domingo de Páscoa. Então, quando dizemos “o sacrifício da cruz”, tenhamos presente que esse é o evento pascal, o evento do Cristo morto e ressuscitado. Ora, a dimensão da ressurreição é absolutamente positiva. Nunca devemos esquecer que, quando falamos de sacrifício, essa palavra quer dizer a ressurreição, a vitória final.

Tudo isso aplicado à eucaristia é importante, pois, hoje, muitas vezes, os nossos sacerdotes têm medo de falar da dimensão sacrifical da missa. Então, quando a iniciam, limitam-se a sublinhar a dimensão convivial: “Estamos aqui reunidos, irmãos e irmãs, para festejar juntos ao redor de uma única mesa…”. E por que dizem isso? Porque pensam: “Se eu que estudei tanto, estudei livros tão grossos, já tenho dificuldade para entender o que significa a dimensão sacrifical, como posso querer que os outros entendam?”. E assim pulam essa dimensão, limitando-se a sublinhar a outra. Eu digo que muitos sacerdotes católicos são cripto-protestantes, protestantes escondidos, com boas intenções, obviamente. Limitam-se a destacar a dimensão da ceia. Ora, João Paulo II, na sua carta encíclica “Ecclesia de Eucaristia” , fez soar o alarme. E disse: “Fiquemos atentos para não ignorar a dimensão sacrifical da missa, porque esta significa o evento pascal”.

Quando celebramos a santa missa, leigos e fiéis juntos, vamos ao Calvário com os pés da alma e os pés da fé, subimos todos o Calvário naquela primeira Sexta-feira Santa, retornamos ao túmulo do ressuscitado naquele primeiro Domingo da história. Somos remetidos ao evento pascal para voltar a emergir na morte do Senhor Jesus e morrer ao nosso pecado, ao nosso egoísmo, e voltar a renascer na sua ressurreição. Mas para sermos coenvolvidos no evento pascal, devemos comer, beber, fazer a comunhão sacramental. Então, são as duas faces da Eucaristia (ceia e sacrifício) que devem ser mantidas juntas. Esta é a mensagem da encíclica de João Paulo II: a Igreja vive a partir da Eucaristia. E eu gostei muito dessa mensagem e a retomei em um livro que intitulei “Estupor eucarístico”, que foi publicado agora em português pelas Edições Loyola, sob o título “Admiração eucarística”.

IHU On-Line – Mas o sacrifício é sofrimento ou amor? Alguns teólogos defendem que Jesus nos salvou pelo amor, e não pelo sofrimento.

Cesare Giraudo – O sofrimento não é um valor em si mesmo. Mas o sofrimento tem valores. Tomemos uma pessoa que nunca sofreu. Bem, sobre isso você coloca a mão no fogo: essa pessoa é uma pessoa egoísta, fechada sobre si mesma. Do contrário, uma pessoa que sofreu na sua vida é uma pessoa aberta para o sofrimento dos outros. E com isso não dizemos que o sofrimento é um bem: o sofrimento é um mal, mas traz consigo um bem. E então o sacrifício comporta sofrimento ou amor? Comporta as duas coisas juntas. Há um provérbio em italiano que diz: “Não há rosas sem espinhos“. Quando você vê uma rosa, o que quer da rosa? O seu perfume, a beleza das suas cores, mas você não pode sentir o perfume da rosa prescindindo de seus espinhos. E em malgache [língua falada em Madagascar] também há um provérbio que diz: “Aquilo que é doce é fruto daquilo que é amargo”. Certamente, na nossa vida, buscamos as coisas doces e belas, mas estas são alcançadas na medida em que aceitamos os sofrimentos, as experiências amargas da vida.

IHU On-Line – Qual o significado do “Kyrie eleyson” na celebração da missa?

Cesare Giraudo – “Kyrie eleison” é uma expressão em grego. É uma daquelas expressões que são intraduzíveis, como tantas outras expressões hebraicas: amém, aleluia, hosana, que permaneceram assim em todas as liturgias em qualquer língua. A expressão “Kyrie eleison”, que é muito antiga, é usada, sobretudo, como resposta aos pedidos da oração dos fiéis. Mas o que significa “Kyrie eleison”? Em português, vocês traduziram por “Senhor, tende piedade de nós”, uma tradução que é boa, mas insuficiente. Em italiano, traduziram como “Signore, peità” [Senhor, piedade], mas é uma expressão que dá pena, é miserável.

Se desejamos entender as duas palavras, a primeira palavra é “Kyrie”, que significa “Senhor, ó Senhor”. A segunda é “eleyson”, um verbo da língua grega que é interessante que seja lido na sua essência hebraica, pois, sob o grego do Novo Testamento, sempre está o hebraico, a língua sagrada para os judeus e para nós. Quando prestamos atenção à língua hebraica, o que está sob esse verbo? Há uma palavra muito interessante, que, quando traduzida em italiano ou português, significa “ventre materno”. Quando o filho está em dificuldade, são as entranhas da mãe que se agitam para ir ao encontro do filho, porque o filho é parte irrenunciável da mãe. Ora, Deus é pai e mãe ao mesmo tempo. Uma vez, o Papa João Paulo I , no seu pontificado brevíssimo, o Papa do Sorriso, disse: “Caros fiéis, Deus é pai e mãe”. Lembro-me que os jornalistas começaram a escrever rios de artigos dizendo: “Oh, vejam que coisa linda que o Papa disse: que Deus é mãe”. Mas os jornalistas não sabiam que a escritura diz isso: Deus é pai e mãe ao mesmo tempo.

Portanto, quando os doentes, os cegos, os leprosos se dirigem a Jesus, o que dizem a Ele? Dizem: “Senhor, tende piedade de nós, 'Kyrie eleison'”. Ora, Jesus, filho primogênito do Pai, reassume tudo do Pai. Por isso, Jesus tem as entranhas paternas e maternas com relação a nós. Então, quando os leprosos do Evangelho lhe gritavam “Senhor, piedade”, diziam “Senhor, dá livre vazão às tuas entranhas maternas e paternas. Deixa-te comover por nós”. E Jesus, efetivamente, se deixa comover, cura os cegos, lhes dá a visão, cura os leprosos etc. Essa expressão é muito interessante. Por isso, seria bom mantê-la assim, em grego, “Kyrie eleison”. Por que jogar fora tudo aquilo que havia de latim ou aquelas poucas palavras gregas como “Kyrie eleison”? Elas têm um significado. São palavras que fazem a unidade dos cristãos. Quando um cristão vem de outro país com outra língua e vê esta ou aquela palavra que já são usadas em seu país, isso é um valor. Então, a tendência para alguns seria retomar o “Kyrie eleison” e também retomá-lo como resposta à oração dos fiéis. Isso seria muito bonito.

IHU On-Line – E o que é a epiclese, conceito abordado pelo senhor em seu curso?

Cesare Giraudo – A questão da epiclese é muito rica. Significa súplica, a invocação para que Deus Pai mande o Espírito Santo sobre o pão e sobre o vinho para que se tornem o corpo e sangue do Senhor. E, depois, a segunda súplica, para que O mande sobre nós para que nos tornemos um só corpo, o corpo místico da Igreja. Os Padres da Igreja, Ambrósio especialmente, eram muito sensíveis à epiclese. Portanto, com a pergunta “Queres saber como se consagra com as palavras celestes?”, Ambrósio se refere à parte central de seu cânone romano que vai da súplica-convite do Espírito Santo sobre os dons à súplica do Espírito Santo sobre nós, que têm, em seu interior, o relato institucional com as palavras do Senhor.

Com a teologia abstrata do segundo milênio, toda a atenção se voltou única e exclusivamente sobre as palavras da consagração, reduzidas depois aos termos “Isto é o meu corpo”, “Isto é o meu sangue”. E não prestaram mais atenção ao resto. Por isso, a epiclese, que continuou existindo mesmo assim na liturgia e ainda hoje a encontramos, saiu completamente do horizonte dos teólogos, dos liturgistas, com um grave dano para a compreensão da teologia da eucaristia. E somente agora a Igreja voltou a descobrir a riqueza dessa oração, da oração eucarística em seu todo.

IHU On-Line – O que o senhor pensa sobre a retomada do missal de Pio V, da chamada Missa Tridentina, por parte de Bento XVI?

Cesare Giraudo – O Papa Bento XVI foi bom, eu diria até muito bom. Quis ir ao encontro da nostalgia de alguns grupos de cristãos, que dizem ser muito aficionados ao latim e que não querem renunciar a ele. Por isso, pediram para poder usar o missal em latim de São Pio V , precedente à reforma litúrgica. Mas a questão não é que esses fiéis queiram bem ao latim pelo latim. O latim serve um pouco como uma barreira para sustentar determinadas visões da Igreja e do mundo de hoje. Já que esses grupos de fiéis de direita, sem ofender ninguém, pediram para obter isso, o Papa, muito bom, disse: “Sim, vocês também podem usá-lo”. Assim, concedeu um uso duplo do missal, recolocando o missal de Pio V ao lado do missal da reforma litúrgica de Paulo VI, que continua sendo o missal de base.

Isso criou um pouco de desconforto dentro da Igreja, quase como se a Santa Igreja, a Igreja de Roma, a autoridade, quisesse desfazer a reforma litúrgica. Mas não foi isso. O Papa o fez por motivos de ecumenismo interno. Então, quem quiser celebrar com o missal de Pio V, que o use. Mas não nos esqueçamos que se um Concílio quis que a reforma litúrgica fosse feita, se um Concílio quis que o edifício fosse restaurado, quer dizer que isso era necessário. Ora, a reforma litúrgica foi feita, belíssima no seu projeto, realmente quase perfeita. Mas, pelo contrário, foi frágil, terrivelmente fraca em nível de recepção. Por isso, muitos receberam a reforma litúrgica de maneira muito superficial, mudando continuamente, com celebrações superficiais e pobres. Por isso, com razão, o Papa disse: “Fiquem atentos: não podemos perder o sentido do sagrado”.

Então, esse “motu proprio” do Papa que dá a possibilidade de usar o missal de São Pio V, mesmo que nos tenha colocado em crise, soa como um sinal de alarme, dizendo: “Fiquemos atentos: não podemos perder a dimensão sagrada, o sentido do sagrado e da seriedade da celebração”. Por isso, nós, sacerdotes, leigos comprometidos, devemos trabalhar muito na formação dos sacerdotes, dos futuros sacerdotes, dos leigos para entender o sentido da liturgia. Eu, na minha pequenez, tenho me empenhado muito nesse sentido.

IHU On-Line – Comparando os últimos Papas, como eles viveram e refletiram sobre as questões litúrgicas?

Cesare Giraudo – Aquele que teve mais oportunidades para refletir sobre a liturgia foi Paulo VI, evidentemente, que foi encarregado pelo Concílio para editar as edições dos livros litúrgicos. Todos os especialistas lhe traziam os originais para que ele os visse, e ele fazia as suas observações, que foram depois registradas em livros. Portanto, ele seguiu mais de perto a revisão do missal e de todos os livros litúrgicos. Dos Papas que vieram depois, João Paulo I não teve tempo, ficou um mês somente. João Paulo II, nos seus 27 anos de pontificado, não se interessou pessoalmente pela liturgia. Esta ia para frente por conta própria. O seu nome ficou ligado à terceira edição do missal romano, pois foi ele que a quis e fez alguns pequeníssimos retoques. O Papa Bento XVI, no momento, ainda não ligou o seu nome à liturgia de forma positiva, senão indiretamente através dessa sua intervenção, de retomada também, com relação ao missal de São Pio V. Isso corresponde um pouco à sua sensibilidade. Ele fez essa operação por um excesso de bondade para ir ao encontro das exigências de alguns.

IHU On-Line – O senhor propõe uma releitura da teologia da redenção a partir de um mito pré-cristão transmitido por um idoso de Madagascar? Que mito é esse?

Cesare Giraudo – Eu vivi dez anos no Madagascar, sempre trabalhando com a pastoral direta e trabalhava muito com os idosos. No grupo, éramos três sacerdotes; os outros dois eram irmãos mais velhos do que eu e trabalhavam com a pastoral dos jovens, e eu, mais jovem, trabalhava com a pastoral dos idosos. E me dei conta de que os idosos sabem, têm experiência, conhecem a tradição. Então, eu realizava encontros, semanas de estudo, em que os idosos participavam, pessoas de 70, 80 anos que ficavam toda a semana refletindo. Eles me contaram muitas coisas belíssimas, alguns mitos teológicos. Bem, coloquemos a palavra mito entre aspas. Essa palavra tem um grande significado para a história das religiões. São relatos fundamentais, que têm a mesma força e sacralidade que os relatos que temos na Bíblia, como em Gênesis 2 e 3, a história de Adão e Eva. Se quisermos, aquilo que a Bíblia é para nós, para eles se trata de uma sagrada escritura, escrita na mente e na tradição.

Essas histórias têm milhares de anos, são muito antigas. Uma delas fala justamente da redenção que passa pelo sacrifício do animal sagrado. Para os judeus, o animal sagrado é o cordeiro, em particular, o cordeiro pascal. A reconciliação, a redenção se dá através do sacrifício do cordeiro pascal. Em Madagascar, se fala do sacrifício do boi, que é o animal sagrado por excelência. Então, quando há um caso de dificuldade, uma ruptura da relação por um determinado comportamento, aquela pessoa deverá ser aspergida com o sangue do animal. Haverá um rito sacrifical, uma oração ao Criador em que se suplica a Deus que intervenha e recoloque essa pessoa na situação certa, graças justamente à aspersão do sangue do boi.

Esse texto é um pouco difícil. Para entendê-lo melhor, seria necessário mais tempo. Mas é uma história maravilhosa que nos ajuda a entender a eficácia do sacrifício do cordeiro pascal, mas, sobretudo, a eficácia do verdadeiro cordeiro pascal, em cuja morte nós renascemos para a vida nova. Eu me interessei muito pelos problemas da inculturação, escavando sempre na tradição dos antigos. Porque, às vezes, os missionários pensaram que todas essas coisas eram uma questão de idolatria, paganismo. Mas não, isso é revelação autêntica, inicial, incipiente, que espera ser completada pelo anúncio do Evangelho.

IHU On-Line – Qual a sua opinião sobre uma maior participação das mulheres na celebração da missa?

Cesare Giraudo – Certamente, a Igreja, por muitos anos, foi muito machista, muito clerical e, assim, penalizou o povo de Deus. Os sacerdotes começaram a dizer: “A gente faz, fiquem tranquilos, fiquem nos bancos, nós fazemos tudo”. Assim, clericalizaram a liturgia. E, ao mesmo tempo, a liturgia foi também masculinizada, no sentido de que a mulher na Igreja não podia superar a barreira do balaústre, aquela mesa da comunhão que havia nas igrejas antigas. Se a mulher fosse além dela, era um pecado mortal. As mulheres só podiam ultrapassar aquela barreira no sábado, quando faziam a limpeza da Igreja. Tudo isso agora já foi superado, e não existe mais, por sorte. A Igreja se purificou disso.

Mas qual pode ser a participação da mulher na missa? Eu penso que, sobretudo, no papel das leituras. Paulo VI revisou aquelas que se chamavam antigamente as ordens menores, que hoje se chamam leitorado e acolitato. Ele disse que os leigos também podem ter acesso ao leitorado. Assim, Paulo VI manteve o leitorado instituído – ir ler com a bênção preliminar – somente para os homens, pois Paulo VI teve um pouco de medo desse vento que vinha do Atlântico, da América, soprando sobre o Ocidente, que era a reivindicação do sacerdócio feminino. E disse: “Não, por agora o reservemos aos homens”. Mas nada impede que um dia o Papa abra oficialmente à mulher o leitorado instituído, que ela também possa ser instituída com uma bênção como uma leitora na Igreja. Agora, a mulher já pode ler, podemos dizer, como leitora extraordinária. E depois, hoje são todos extraordinários, porque esse leitorado instituído se perdeu de vista. Em todo caso, a mulher lê e isso é uma coisa boa. Eu penso que esse discurso deve ser moderado, não se trata de mandar um exército de pessoas a ler, mas se trata de mandar poucas pessoas, que são preparadas, que seguem cursos específicos de preparação, sejam elas homens ou mulheres. Pois ler na Igreja, proclamar a palavra de Deus é muito difícil, muito comprometedor.

IHU On-Line – O que o senhor pensa sobre a participação de divorciados de segunda união na comunhão eucarística? E de homossexuais? As regras atuais não transformam a eucaristia em uma forma de exclusão?

Cesare Giraudo – Não sou eu quem pode resolver o problema. Certamente, na minha experiência pastoral em Madagascar, eu sofri por causa disso, porque quando um jovem e uma jovem me diziam: “Queremos nos casar”, eu sempre dizia: “Vão devagar, com calma”. Porque eu sabia bem que se eu abençoasse aquele casamento, um ou dois meses depois ele acabaria, e aqueles jovens teriam dificuldades para toda a vida. Porque, em Madagascar, o matrimônio ainda hoje é muito instável, acaba facilmente, assim como em nossos países, seja na Europa ou no Brasil.

Então, eu vejo cristãos que possuem uma fé verdadeira, mas que se encontram em uma situação desconfortável. Não podem ir para frente, não podem voltar. Têm o compromisso matrimonial de um lado, têm um compromisso familiar de outro. Então, eu me pergunto: a Igreja não poderia encontrar um caminho possível para eles? Ou até um caminho de misericórdia, como muitas vezes os orientais chamam? Não se trata de abençoar a situação atual, de dizer “Fizeram certo ao acabar com o primeiro casamento”. Não se trata de aprovar isso. Trata-se simplesmente de dizer, na situação atual, que esse cristão e essa cristã têm a necessidade dos sacramentos, o sacramento da confissão, o sacramento da eucaristia. A Igreja não poderia encontrar um caminho de misericórdia para conceder a esses cristãos os sacramentos? Mas não sou eu quem estabelece isso.

Também se falou disso durante o Sínodo dos Bispos, há dois ou três anos, sobre a eucaristia, e um bispo disse: “Aqui, só o Papa pode resolver o problema”. E nós aguardamos com confiança por uma intervenção magisterial do Papa. E o que o Papa diz para os divorciados e que também se aplica a outras pessoas em dificuldade, homossexuais etc., é que naturalmente seria preciso que essas pessoas pudessem fazer um caminho com um guia, um sacerdote. Não se trata de dar o aval, de dizer: “Vocês fizeram certo”, mas é necessário que se entenda que na vida existem comportamentos difíceis e que, nesses comportamentos, devemos buscar retirar todo o egoísmo, tudo o que é diretamente contrário ao Evangelho. E depois tentar dar o nosso melhor, com a ajuda do Senhor, para nos adequarmos sempre melhor aos ideais do Evangelho, que permanece sendo um ideal. Não podemos dizer: “Eu coloco em prática os ideais do Evangelho”. Aquele que presume tê-lo posto em prática é o primeiro a ser infiel ao Evangelho. O Evangelho é um grande ideal, e devemos pedir ao Senhor que nos ajude a caminhar rumo a esse ideal com as dificuldades que são as nossas. O problema, porém, continua sendo complexo.

IHU On-Line – E o mesmo vale para os homossexuais?

Cesare Giraudo – Sim, eu diria que sim. Trata-se de refletir sobre esse caso. Não dá-lo por óbvio, porque, hoje, na sociedade, essas diferenças são consideradas normais. Portanto, não devemos confundir a normalidade com eventuais desconfortos. Poderíamos chamá-los por muitos nomes. Pelo contrário, hoje, há a tendência de dizer: “Você faz assim, você faz assado, faça como quiser”. Mas não, não podemos aceitar isto na Igreja. Com o respeito, naturalmente, pela opinião pessoal de cada um. Sobretudo, hoje em dia, somos muito flexíveis com relação a isso. Não devemos condenar ninguém. Jesus nunca condenou ninguém no Evangelho. Ele sempre desculpou o pecador, condenando, porém, o pecado ou o comportamento anômalo.

IHU On-Line – Portanto, os divorciados e os homossexuais, na sua própria consciência, podem participar da comunhão se o sacerdote não souber de sua situação?

Cesare Giraudo – O sacerdote deve dar a comunhão a todos aqueles que se apresentam para recebê-la. Nenhum sacerdote tem direito de olhar para a cara das pessoas e dizer: “A você sim, a você não”. A menos que venha alguém que esteja claramente bêbado, que não consegue ficar de pé. Se você lhe negar a comunhão, não estará lhe ofendendo. Todos podem ver o porquê. Mas, senão, quem se apresenta à comunhão recebe a comunhão. Depois, cada um, na sua consciência, estabelece o seu comportamento.

Fonte:

quarta-feira, 29 de junho de 2011


Relação mistério e corpo na liturgia, pela inteireza do ser

Eurivaldo Silva Ferreira
(Mestrando em Teologia Sistemática na PUC-SP)


Na liturgia, que é a celebração do mistério de Cristo, a participação ativa, plena, consciente e frutuosa, de que fala a Sacrosanctum Concilum, nos remete a um quê de característica que perpassa os nossos conhecimentos extrassensoriais. É preciso que se tenha em mente que é o corpo que se apropria desses mecanismos e “se lança” nessa participação.

Não se trata de uma síntese automática, que se dá por impulso de um ou outro elemento externo, assim como acontece quando ligamos um aparelho eletrodoméstico à tomada. Parte-se da experiência vivida e acompanhada através de um processo de integração com o todo, com o ambiente, com o espaço, com a natureza, com o universo, com o cosmos. Ser humano, homem e mulher, participam ativamente da vida do mundo no qual estão inseridos. Sem dúvida, não “exploram” esse mundo sem antes conhecê-lo, seja pelo aspecto de apropriação, seja pelo aspecto de investigação, a fim de que dele possa aproveitar e usufruir o máximo possível.

É a partir desse horizonte que mergulhamos no fazer liturgia, do celebrar a liturgia. Como se dá isso? Nossos corpos aceitam a possível proposta de que eles participam da natureza pela qual a liturgia é destinada, o louvor a Deus e a glorificação de nossos corpos, seres humanos animados pelo Espírito que em nós habita, reunidos em assembleia. Nesta assembleia, o mistério que é revelado pela ação ritual, exige de nós uma compreensão do todo. Isto é, não apenas compreendemos parte do mistério pela admissão racional, pelo lado intelectual, mas trata-se de dizer que boa parte da compreensão mistérica adentra nossos poros, nossos sentidos, penetra nossos ossos, vai até as entranhas dos nossos órgãos. Isso só acontece quando entramos com inteireza na ação ritual.

Estar inteiro compreende que corpo, mente e coração estão plenos de sua capacidade laudativa de entrar em sintonia com o mistério. Então estar inteiro é estar em sintonia. Não se trata apenas de dizer: meu corpo está aqui, mas se ele não tiver com suas potencialidades ativadas para a esperada participação que resulta numa atitude de frutuosidade para a vida de quem celebra e para a vida do mundo, de nada valerá a presença física no espaço celebrativo. De fato, quando o corpo toma consciência, através de elementos cognitivos ou de elementos extra-sensoriais, aí acontece a inteireza do ser, justamente porque é necessário que o mistério que se é agradado através da súplica e do louvor, possa reconhecer na dimensão da corporeidade a experiência da criatura criada.

Na dimensão da prece e da súplica, o corpo, ser criado, almeja que seu criador o escute, mas não basta uma escuta física, como a que tomamos no nosso aparelho auditivo. É necessário reportar a escuta da divindade para o âmbito extra-celebrativo. Nesta escuta, em que ambos se recordam de que um dia firmaram um acordo, define-se um diálogo sobre o qual se estabelecem condições para a garantia desse acordo. Foi assim que aconteceu com os povos antepassados, em que Deus, querendo se comunicar e também escutar, firmou uma Aliança, estabelecendo uma relação de amorosidade para com estes povos.

É nesse contexto de Aliança que fazemos memória, como fato continuador do acordo feito entre Deus e seu povo, contado por inúmeras vezes na Sagrada Escritura. Só com essa memória é que conseguimos colocar em atitude de espera aquela alegria que nos é aguardada na vinda do Reino.

No entanto, apesar da conjuntura eclesial em que nos encontramos, é necessário a interrogação. De fato, no contexto celebrativo de nossas igrejas e comunidades, perguntamos o que é celebrar, o que celebramos, como nossos corpos celebram, estamos inteiros nas celebrações? Como nossos ritos nos ajudam na compreensão da corporeidade? Nossos corpos conjugam ritualidade e corporeidade, em sintonia?

Há um mistério que vamos desvelando através de ritos, os quais nos vão envolvendo, e nós vamos assimilando. São nossos corpos que participam desses ritos, não há outro jeito. O rito nos possibilita entrar em contato com a divindade, no nosso caso o Deus amoroso, Pai e Mãe de bondade que nos dá Jesus, como Filho, no qual nos aponta para a esperança do Reino vivido e desejado por seu Pai. Com toda plenitude, nós fazemos isso na celebração eucarística, fazendo memória da ceia de Jesus. Na memória ritual nós comemos e bebemos, eis o sentido que faz com que nossa corporeidade compreenda e adentre a ação ritual, o paladar. Este é apenas um exemplo, podemos explorar outro mais, a escuta da Palavra, por exemplo.

Assim, quando respondemos a aclamação memorial que se encontra no centro da oração eucarística, ao proclamarmos este mistério da fé, estamos impulsionando nossos corpos na dimensão do futuro, do que há de vir, ao mesmo tempo que fazemos memória daquilo que aconteceu. Essa memória é feita no hoje de nossa existência, de nossas vidas, entremeadas de debilidades e angústias, de sonhos e esperanças, de alegrias e tristezas (Gaudium et Spes), todos esses sentimentos nós os carregamos em nossos corpos.

A exploração dos ritos através de nossas capacidades corporais é o que delineia nossas celebrações. Não só o racional entra nessa exploração, mas somos introduzidos na compreensão ritual, teológica e espiritual, características das quais se atribui o rito. Sem nossos corpos de nada valeria o rito, ficaria apenas no racional, no imaginário de nossas elucubrações. Afinal, de que valeria celebrarmos se não estivéssemos inteiros, se não fôssemos dotados de corporeidade?

OS SÍMBOLOS NA LITURGIA


Pe. Cristiano Marmelo Pinto


1. Compreensão de sinal e símbolo

A celebração litúrgica constitui um conjunto de sinais, símbolos, gestos, palavras, objetos, tempo, lugares, etc. Toda a liturgia tem um caráter simbólico, ou seja, toda a liturgia é simbólica. Nela prevalece a linguagem dos símbolos, mais intuitiva e afetiva do que conceitual. José ALDAZÁBAL afirma que “é a linguagem simbólica que nos permite entrar em contato com o inacessível: o mistério da ação de Deus e da presença de Cristo” . A liturgia é ação, é comunicação, é gestos, movimentos, etc. Através dos sinais e símbolos a liturgia nos permite experimentar, entrar em comunicação e em comunhão com o mistério de Deus em Jesus Cristo. Para Julián L. Martín, “os sinais litúrgicos estão, antes de tudo, a serviço da presença e da realização de uma salvação que está destinada aos homens em suas circunstâncias históricas e existenciais” . Este estudo sobre os símbolos na liturgia pretende buscar, mais do que um elenco de sinais e símbolos na liturgia, quer compreender sua função no contexto da ação litúrgica para sua valorização e melhor participação no mistério de Cristo celebrado.

2. Noções sobre sinal e símbolo

Antes de uma reflexão mais profunda a respeito dos símbolos na liturgia, é necessário compreender o seu significado, sua origem. A filosofia grega, os Padres da Igreja e a própria liturgia utiliza o termo símbolo no seu sentido originário. Ele não é sinônimo de aparente ou irreal. Trata-se, como afirma Alberto Beckhäuser, da “mesma realidade em outro modo de ser” . Porém, é necessário fazer uma distinção entre sinal e símbolo. Um não é o outro. Nem todo sinal é símbolo, mas todo símbolo é sinal.

Sinal leva ao conhecimento de algo que lhe é diferente em si mesma. O sinal por si aponta para algo exterior a ele. “O sinal não é o que significa, mas sim o que nos orienta, de um modo mais ou menos informativo, para a coisa significada” . Ele é uma realidade ponte entre algo conhecido e o conhecimento de outra coisa. O elemento conhecido denomina-se significante enquanto que o que está além é denominado significado. O sinal é um meio de expressão e de comunicação. No sinal podemos verificar as seguintes condições:

a) Ser distinto do significado;
b) Depender de alguma maneira do significado, ou seja, ser menos perfeito do que ele;
c) Guardar alguma relação de semelhança com o significado;
d) Ser mais conhecido que o significado.

A palavra símbolo é de origem grega e significa reunir, por juntas as partes de uma mesma coisa, que se achavam separadas. “O símbolo estabelece uma identidade afetiva entre a pessoa e uma realidade profunda que não se chega a alcançar de outra maneira” . O símbolo reúne em si as realidades, contendo um pouco de cada uma delas. Podemos falar de símbolo, como afirma J. L. Martín, “quando se tem diante de si um significante que remete não a um significado preciso, como no caso do sinal, mas a outro significante que de certo modo se faz presente” . Por este motivo, o símbolo possui uma função representativa, ao tornar presente o significado e ao mesmo tempo participar dele.

Deve-se perceber nos símbolos os seguintes elementos:

a) Uma realidade sensível (um ser, um objeto, uma palavra);
b) Uma correspondência ou relação de significado, com a qual se entre em contato por meio do elemento significante;
c) A realidade significada com a qual se entra em contato está de tal maneira presente e unida ao significante que sem ele não poderia exercer sua influência;

3. O simbolismo na Sagrada Escritura

Assim como as demais religiões, também a Sagrada Escritura está perpassada por sinais e símbolos. O cristianismo não por menos, baseia todo o seu simbolismo na Sagrada Escritura. A Constituição Conciliar sobre a Liturgia Sacrosanctm Concilium afirma que “na celebração litúrgica é máxima a importância da Sagrada Escritura. Pois dela são tiradas as leituras, os salmos que são cantados as preces, orações e hinos (...) e é dela também que recebem seu significado as ações e sinais” (SC 24). Da Sagrada Escritura a liturgia cristã acolhe os gestos e ações simbólicas dos que precederam na fé a partir de Abraão (cf. Rm 4,16-17). Dela também, a liturgia reproduz os símbolos da economia da salvação nas várias etapas da história da salvação.

O termo símbolo é pouco usado na Sagrada Escritura. Utiliza-se com mais freqüência o termo sinal. Porém, o simbolismo é algo natural no mundo semítico e esta linguagem se encontra na Sagrada Escritura. Nela, vemos que a pedagogia dos sinais é constantemente utilizada nas relações de Deus com o povo. Momentos culminantes desta linguagem podemos encontrar na revelação de Deus no monte Sinai. Nos escritos proféticos, nos salmos e nos livros sapienciais. Muitos relatos e narrações possuem um significado simbólico.

Os sinais no Antigo Testamento podem ser classificados em quatro grupos:

a) Sinais da criação: culminando com a criação do homem “imagem e semelhança” de Deus;
b) Sinais acontecimentos: constituem os grandes momentos da história da salvação, cujo momento alto é o êxodo;
c) Sinais rituais: constituem todas as instituições litúrgicas e festivas de Israel (santuário, sábado, sacrifícios, etc.);
d) Sinais figuras: colocam em relevo a missão de alguns determinados personagens (patriarcas, Moisés, etc.), ou determinadas funções (pastor, profetas, sacerdotes, etc.).

A principal característica do simbolismo bíblico é seu pano de fundo histórico-salvífico. Eles expressam a continuidade da presença salvadora de Deus e possuem um caráter prefigurativo e memorial. Os sinais que possuem um caráter litúrgico são prefigurações dos sacramentos da Igreja.

No Novo Testamento, os sinais do Antigo Testamento são aplicados em relação a Jesus Cristo e a comunidade cristã. Em Jesus todo símbolo, toda figura que aparecem na história da salvação estão concentrado nele. Ele não somente se serviu dos sinais do Antigo Testamento, mas deu a eles seu pleno cumprimento.

Jesus não somente se serviu dos sinais da criação para dar a conhecer o Reino de Deus, mas deu cumprimento a quanto anunciavam os sinais-acontecimentos e os sinais-rituais, concentrando-os em sua pessoa e realizando curas por meio de gestos simbólicos que manifestavam seu poder salvador .

O culto inaugurado por Jesus Cristo não estava ligado a nenhum lugar, mas ao “templo do corpo” e a ação do Espírito Santo. Porém, ele perpetuou sua ação salvadora através de sinais e ações simbólicas, confiadas a Igreja. Entre estas ações merecem destaque o batismo e a eucaristia . Destes dois sacramentos renasce e se edifica continuamente a Igreja.

Jesus também empregou a si mesmo sinais do Antigo Testamento, definindo-se a si mesmo como o Novo Moisés (cf. Hb 3,2-3), o Bom Pastor (cf. Mt 15,24), etc.

Alguns sinais e símbolos do Antigo Testamento também foram empregados à Igreja em relação a si mesma e a Cristo. A Igreja esposa, corpo místico de Cristo, etc.

4. O simbolismo na liturgia

A comunidade cristã se serve inicialmente dos sinais e símbolos que ela recebeu do Senhor e de muitos outros. Temos num momento inicial, por exemplo: a imposição das mãos, a concessão de ministérios, a unção com óleo, etc. Como afirma J. Lopéz Martín:

Todas ações significativas às quais progressivamente se foram unindo outros sinais e símbolos procedentes da matriz bíblica e numa constante referência à doutrina e ao exemplo do próprio Cristo que se serviu do simbolismo para expressar e realizar a salvação .

O simbolismo na liturgia é fruto tanto da herança bíblica como também da influência de outras culturas e de modo concreto da cultura helênica. Da junção dos diversos elementos das mais variadas culturas onde o cristianismo se fazia presente, a liturgia cristã foi criando uma nova síntese simbólica dos sinais, imagens, símbolos, dando origem a uma característica totalmente original e cristã. A liturgia cristã não abole estes elementos, sinais e símbolos, proveniente de outras culturas, mas os purifica, dando uma nova significação.

Os sinais e símbolos na liturgia são sinais da fé. Não só são sinais como também alimenta a fé. A Constituição Sacrosanctum Concilium ao tratar dos sacramentos diz que “como sinais, visam também à instrução. Requerem a fé, mas também a alimentam, sustentam e exprimem, com palavras e coisas, merecendo, por isso, ser chamados sacramentos da fé” (SC 59). Todo sinal e símbolo litúrgico remetem para os fatos e palavras do próprio Cristo e de toda a história da salvação. São sinais das “realidades invisíveis presentes, a graça santificante e o culto a Deus” .

5. Sinais e símbolos na liturgia

A liturgia possui um leque enorme de sinais e símbolos. Existem muitas categorias de sinais e símbolos litúrgicos. Existem sinais e símbolos vinculados a pessoas e ao corpo humano, outros relacionados com coisas materiais, de modo que a liturgia se serve de uma série de sinais e símbolos expressivos para manifestar toda a sua beleza e mistério, de modo que precisamos valorizá-los, ao invés de introduzirmos elementos estranhos a própria natureza da liturgia. Passaremos agora a relacionar um breve elenco de sinais e símbolos na liturgia sem a pretensão de esgotá-los.

6. Elenco de sinais

a) Pessoas:
- a assembléia litúrgica,
- os ministros ordenados (bispos, presbíteros e diáconos).

b) Atitudes corporais:
- de pé (significa ação, expectação, oração comum);
- sentados (significa escutar, atender e meditar, oração pessoal);
- de joelhos (significa rebaixamento, adoração, oração pessoal);
- genuflexão
- prostração (significa aniquilamento, morte, ressurreição para um estado de vida, oração
pessoal);
- inclinação (significa rebaixamento, súplica, veneração); etc.

c) Gestos de todos os fiéis:
- fazer o sinal da cruz (significa invocação trinitária, memória do mistério pascal, identificação
com Cristo crucificado);
- dar-se a paz (expressa comunhão no espírito);
- bater no peito (significa conversão, penitencia);
- caminhar, ir em procissão, levar o pão e o vinho ao altar, dançar, beijar a cruz, etc.

d) Gestos dos ministros:
- levantar os olhos (significa oração e súplica);
- estender as mãos (significa oração a Cristo na cruz);
- impor as mãos (significa exorcismo, doação do Espírito Santo, cura, reconciliação, transmissão
de carisma, etc.)
- partir o pão (significa autodoação, compartilhar, eucaristia);
- soprar (significa comunicação do Espírito Santo);
- assinalar (significa marcar e selar com o sinal de Cristo);
- outros gestos: lavar os pés, elevar, mostrar, beijar, saudar, ungir, crismar, tocar, acompanhar,
acolher, impor uma veste, etc.

e) Ações:
- ablução e imersão (significa renascer, ressuscitar);
- aspersão (recordação do batismo);
- oração, jejum, silêncio (significa penitência, oração, fome espiritual, participação no mistério
pascal de Cristo);
- outras ações: imposição das mãos, bênção, beijo da paz, sepultar, abrir e fechar, etc.

f) Elementos naturais: água, pão, vinho, óleo, sal, leite e mel, luz, trevas, fogo, círio pascal, incenso, flores, ramos, etc.

g) Objetos: cruz, imagens, lâmpadas, livros litúrgicos, Evangeliário, vestes litúrgicas, cores litúrgicas, insígnias (anel, báculo, pálio), vasos, sino, toalhas, corporais, pala, sacrário, etc.

h) Tempos: dia, noite, horas, vigília, semana, ano, domingo, festas, oitavas, quaresma, cinquentena, ano jubilar, etc.

i) Lugares: igreja, nave, presbitério, cátedra, sede, ambão, altar, batistério, fonte batismal, confessionário, porta, cemitério, etc.

7. O rito litúrgico como expressão simbólica

A liturgia cristã é um conjunto de ritos. A ritualidade é um elemento essencial de toda celebração litúrgica. Conforme a interpretação sociológica, o rito é a expressão, o gesto simbólico destinado à função identificadora de promover a coesão do grupo que celebra, formando uma assembléia. O rito é um mecanismo de orientação que oferece um quadro seguro e fixo para uma experiência determinada. O rito é expressão simbólica, é memorial.

A repetição é uma característica essencial do rito, visto que, por definição, o rito é uma ação representativa dos fatos da história da salvação, fatos que são sempre os mesmos. Pelo rito entramos em contato com os gestos de Cristo. A repetição ritual nos permite entrar, nos aproximar de Cristo e de seus gestos e palavras e nos integra a eles.

A ritualidade litúrgica gira em torno da eucaristia e dos demais sacramentos, que constituem a Igreja e manifestam e comunicam o mistério de Cristo a todos os fiéis.

8. Conclusão

Como vimos, o símbolo faz parte da própria experiência humana. Na liturgia ele se reveste de uma nova e mais profunda significação, remetendo a experiência do mistério pascal de Cristo e de toda a história da salvação. A liturgia cristã é uma constelação de sinais e símbolos que precisam ser valorizados e alguns recuperados. Muitas vezes em nome da “criatividade” acabamos por reduzir os símbolos litúrgicos, ou em alguns casos, introduzindo no contexto celebrativo elementos estranhos a própria natureza da liturgia. A simbologia e a ritualidade litúrgica não exclui a criatividade. Mas é preciso que, no uso da criatividade, façamos uma re-leitura de toda a simbologia litúrgica, para descobrir nela novos aspectos dentro de sua profundidade.




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A Liturgia como Celebração

Pe. Cristiano Marmelo Pinto


“As ações litúrgicas não são ações privadas,
mas celebrações da Igreja, que é o ‘sacramento da unidade’,
isto é, o povo santo, unido e ordenado
sob a direção dos bispos” (SC 26).


O CONCEITO DE CELEBRAÇÃO

Para a Teologia e Antropologia Litúrgica, o conceito de celebração é de suma importância. Esta palavra tem sido muito usada ultimamente pela linguagem litúrgica. Embora as palavras liturgia e celebração tenham sido usada indiscriminadamente, elas não se correspondem. Elas possuem concepções diferentes e importantes para a compreensão da Teologia Litúrgica.

A liturgia como culto cristão é uma atitude de uma vida de escuta fiel e de adesão a Palavra de Deus, no seio da Aliança estabelecida por Cristo e realizada na Igreja sob a ação do Espírito Santo. A celebração é o aspecto celebrativo da liturgia, essencial e destinado a inserir o homem no Mistério de Cristo e da Igreja, ou seja, na Salvação.

A liturgia é uma realidade mistérica, ou seja, continuação, prolongamento da obra da salvação na história. Mas ela é também ação, no tempo e no espaço, lugar do exercício sacerdotal que Cristo confiou a Igreja para a santificação do homem e glorificação (culto) de Deus.

A liturgia abarca toda a vida da Igreja, como culto a Deus. A celebração é a sacramentalização dessa vida oferecida como culto espiritual da Deus. Ela se dá num momento histórico, num determinado tempo e espaço, expressivo, ritual e simbólico. Na celebração a oferenda se torna eficaz, agradável e aceita por Deus pela mediação de Jesus Cristo no Espírito Santo. Para que o culto cristão seja sacramentalmente eficaz, a celebração é imprescindível.

Os atores da celebração são a Assembléia Litúrgica e os Ministros que nela desempenham papéis e funções.

Celebrar ou celebração está imerso na vida do homem e na história da humanidade. Celebramos tudo aquilo que nos toca profundamente. O sujeito da celebração não é uma só pessoa, mas um grupo, uma comunidade, uma assembléia. Celebrar e celebração correspondem a uma noção de liturgia como ação de toda a Igreja (cf. SC 26).


CELEBRAR E CELEBRAÇÃO

Devido a importância que a categoria celebração adquiriu para a liturgia, precisamos compreender melhor o significado do conceito. Vamos partir da etimologia da palavra celebrar e de seus derivados.

Celebrar e celebração vem do latim celebrare e celebratio. Estes termos se completam com o adjetivo célebre (celeber).

Célebre (celeber) – se aplica ao lugar freqüentado por muitas pessoas.

Celebrare – significa o mesmo que freqüentar, que designa a ação de reunir-se.

Etimologicamente celebrar equivale a reunir-se num lugar, juntar-se, acorrer em massa.

Celebração – é a reunião numerosa, o ato de reunir-se e o momento de estar congregados.

Célebre – designa o lugar da reunião ou o lugar freqüentado, e o tempo ou momento da reunião.

Num segundo momento da ação de reunir-se, passa-se ao objeto (motivo) da reunião. Este objeto pode ser uma festa, os mistérios, o culto, etc. Cada um desses objetos da celebração torna-se celebritas, ou seja, celebridade, um momento solene. Num terceiro momento passa-se para o nível das manifestações externas ou do ritual desenvolvido na reunião.


O USO DO TERMO NO LATIM CRISTÃO

No final do século II, o latim começa a ser cristianizado. Ela passa a ser usado na tradução da Bíblia, na catequese e na liturgia. Esta cristianização do latim provoca um alargamento no significado do termo, de modo que celebrare e celebratio adquire novos matizes.

O uso do latim no cristianismo facilitou sua comunicação e a liturgia no mundo greco-romano. Nas traduções latinas da Bíblia, celebrar e celebração estão ligados a termos muitos variados.

1. Traduzindo o verbo poeio (fazer) – tem sentido exclusivamente cultual e se refere aos diferentes objetos designados - páscoa, rito dos ázimos, etc. (cf. Ex 12,48; 13,5; Dt 16,10-13).

2. Traduzindo eortázo (fazer festa) – alude a popularidade da festa. Neste sentido celebrar é sempre uma ação comunitária (cf. Ex 12,14; 23,14; Lv 23,39.41).

3. Traduzindo caléo (convocar) – acentua o aspecto do chamado de Deus para que o povo se reúna a fim de celebrar (cf. Lv 23,24).

4. Traduzindo sabbatízo (guardar o sábado) – indica reinteração e continuidade na ação celebrativa, para que o povo se lembre de tudo o que foi feito e ordenado pelo Senhor (cf. Lv 23,32; 2Cr 36,21).

5. Traduzindo ágo (levar a efeito) – significa a ação celebrativa, o ritual, a conduta dos participantes (cf. 2Mc 2,12; 6,11).

Nos Padres latinos da Igreja, as palavras celebrare e celebratio são usadas algumas vezes para se referir às festas e aos espetáculos, sempre em sentido coletivo e popular, e outras aplicando-as aos atos próprios dos cristãos.

Tertuliano transfere esse vocabulário aos sacramentos cristãos e Santo Ambrósio atribui um conteúdo mais especificamente litúrgico ao verbo celebrare.

São Cromácio de Aquiléia, oferece uma idéia da celebração como representação aqui e agora de toda a salvação anunciada no Primeiro Testamento e realizada por Cristo.


APROXIMAÇÃO DO CONCEITO DE CELEBRAÇÃO

Para alguns antropólogos, celebração é um meio interpessoal de relação e de encontro, ou seja, uma manifestação comunitária. A celebração congrega os indivíduos constituindo-os num organismo, numa comunidade. Ela afeta as pessoas e seus sentimentos, de modo que o acontecimento celebrado se transforma numa expressão religiosa.

A celebração polariza a totalidade da pessoa em torno de um determinado valor religioso. Ao transformar o significado de todos os elementos integrantes (espaço, tempo, símbolos, etc.), transmite a mensagem religiosa.

A celebração tem o poder de unificar um grupo, de formar uma comunidade com as pessoas que se reúnem para compartilhar a experiência religiosa. A celebração pode atuar como um catalisador moral do grupo, como instrumento educativo. Ainda na linha antropológica, outros põem ênfase na linguagem celebrativa e definem a celebração pela linguagem e pela expressão.

“Celebração é uma linguagem onde pulsa uma misteriosa expressão, dificilmente explicável” (V. Martín Pindado, 1979).

Isto significa que a celebração é uma realidade não reduzível a conceitos, a termos racionais, a normas lógicas, mas é fundamentalmente ação, vida. Quando a ênfase é conceitual, lógica e racional, temos como resultado uma celebração fria, verbalista, apagada e sem expressividade.

Dentro desta linha antropológica, há autores que afirmam que celebrar é brincar, folgar, fazer festa.

• Celebrar é brincar, ou seja, atividade lúdica do cristão;
• Celebrar é folgar, é lazer, é intuição, gozo, antecipado da eternidade;
• Celebrar é fazer festa, com tudo o que festa significa, é deleite do espírito, é liberdade, é contemplação da beleza, etc.

A celebração é uma categoria que pertence à dimensão sensível e visível da liturgia cristã. Odo Casel, primeiro teólogo da liturgia, diz que a celebração é uma epifania, uma manifestação do divino na ação ritual. Para a fenomenologia, a celebração é uma hierofania, ou seja, uma mediação que torna possível a comunicação entre o mistério e o homem, e a participação deste na energia salvadora que se faz presente. Para O. Casel, o elemento principal da celebração é a presença-atualização da salvação na ação ritual.

Na celebração cristã o ato sacramental é sempre o mesmo, ainda que o aspecto do mistério comemorado seja diferente. A celebração é atualização a obra da nossa Redenção (cf. SC 2). O hoje da celebração e da presença renovadora do mistério da salvação confere à liturgia cristã um valor escatológico, ou seja, põe o homem em contato com a eternidade.

O QUE É UMA CELEBRAÇÃO?

Devemos antes afastar duas eventuais confusões: a primeira que identifica liturgia com celebração, sem mais nem menos, e a segunda que confunde celebração com cerimônia. Liturgia é o culto da vida inteira dos crentes, e celebração é o momento simbólico, ritual e festivo.

Celebração é um acontecimento sacramental. Não é a mesma coisa que cerimônia. Cerimônia é um elemento da celebração, uma ação externa sujeita a uma norma ou costume. Infelizmente por muito tempo se identificou liturgia com rubrica e com cerimônia a tal ponto, de bastar que se saiba apenas as rubricas da cerimônia liturgia.

Podemos definir a celebração como o momento expressivo, simbólico, ritual e sacramental, ou seja, um ato que evoca e torna presente, mediante palavras e gestos, a salvação realizada por Deus em Jesus Cristo, com o poder do Espírito Santo. A celebração tem o caráter de ato, ação expressiva, ritual, torna presente a salvação. Na celebração produz-se um diálogo entre Deus e o homem, entre Cristo e a Igreja.

A celebração possui três dimensões:

a) Dimensão mistérica;
b) Dimensão ritual;
c) Dimensão existencial.

A dimensão mistérica: é intervenção, presença e atuação de Deus na vida de seu povo e na vida pessoal de cada participante da ação litúrgica. É o mistério de Cristo, núcleo da liturgia cristã.

A dimensão ritual: a celebração é ação de uma assembléia reunida, que através de ritos e de fórmulas manifestam e realizam aquilo que se está celebrando.

A celebração consiste na evocação e no anúncio de um fato de salvação e na atualização desse fato aqui e agora. Na celebração a Igreja atua como intercessora e mediadora da salvação.

A celebração como ação concreta de uma assembléia, compreende quatro elementos:

1) Um acontecimento que motiva a celebração;
2) Uma comunidade que se faz assembléia;
3) Uma situação festiva que envolve a todos;
4) Um ritual que é executado.

Um acontecimento deve ser algo digno de ser celebrado. A comunidade, no ato de se reunir, se converte em assembléia cultual – Igreja corpo de Cristo. A situação festiva é algo mais que o momento em que se celebra o acontecimento – o dia festivo, é, antes de tudo, um ambiente que impregna e caracteriza tanto a comunidade que celebra como os atos rituais da ação comum e que se exterioriza nos gestos, nos cantos, nas vestes... O ritual é o conjunto de gestos, palavras, ações e objetos que intervém na ação celebrativa tendo em vista a evocação e a atualização do acontecimento celebrado. O que está em jogo no ritual celebrativo da liturgia não e a expressividade ou a mensagem de alguns ritos e gestos, mas a correspondência do ritual com o acontecimento que se está celebrando.

O acontecimento celebrado é sempre Cristo, sua vida e sua obra, especialmente sua morte e ressurreição; a comunidade é sempre a Igreja; a situação festiva é a alegria de saber que o Senhor está presente e atuante, o ritual é sempre uma ação sacramental.

A dimensão existencial: a celebração não apenas leva a comunidade reunida a participar do acontecimento salvífico, mas se torna um programa de vida, manifesta-se como um motivo de compromisso de vida. Os crentes devem viver o que celebram. A celebração deve fazer com que a Igreja e seus fiéis continuem sendo no mundo um sinal sagrado. A liturgia se caracteriza por fazer da vida cristã um ato permanente de culto ao Pai, cujo momento culminante é o momento celebrativo.


ESTRUTURA DA CELEBRAÇÃO

A celebração é uma ação e uma possibilidade de encontro com o mistério da salvação. Ela deverá reunir uma série de condições espirituais e funcionais que possibilitem a participação no mistério e no fruto da celebração.

A estas condições estão: o ritmo da ação, a participação ativa e consciente de toda a assembléia, o exercício de todas as funções e ministérios no interior da celebração. De todas as condições, vamos nos ater no ritmo da celebração enquanto expressão da estrutura interna da ação celebrativa. Chamamos de ritmo da celebração a organização dinâmica e harmoniosa de todos os elementos que intervêm na celebração, o que dá unidade, equilíbrio de todas as partes e progressão dos diferentes momentos.

Os livros litúrgicos se limitam a assinalar os diferentes passos da celebração no ordo ou ritual. Porém o ritmo não depende dos livros, mas sim dos que celebram, seguindo fielmente o ritual, com todas as indicações e rubricas. A estrutura da celebração sustenta todo o conjunto da ação celebrativa e coordena os diferentes elementos e partes. O ritmo da celebração deve deixar evidente a estrutura prévia que é dada pelo ritual.


ESTRUTURA LÓGICO-TEOLÓGICA DA CELEBRAÇÃO

Vamos agora destacar os principais elementos que estão entranhados em toda ação litúrgica cristã e que vêm à tona em determinados momentos da celebração.

São eles:

a) Anamnese;
b) Epiclese permanente;
c) Doxologia;
d) Mistagogia contínua.

A) ANAMNESE

Toda celebração é uma lembrança sagrada do acontecimento salvífico. Neste sentido é anamnese permanente.

1. É anamnese de Deus para com seus filhos, porque lembrou-se da sua misericórdia (cf. Lc 1,54);
2. É anamnese de Cristo para com o Pai, porque intercede em nosso favor (cf. Hb 7,25);
3. É anamnese do Espírito Santo, que nos recorda todas as coisas ditas pelo Senhor (cf. Jo 14,26).

A Igreja, na celebração, faz o memorial e recorda os principais fatos salvíficos que culminam no mistério pascal. O acontecimento da páscoa do Senhor, objeto da anamnese recíproca entre Deus e os homens, ocorreu uma vez para sempre. O ritmo da celebração permite apreciar os momentos com intensidade da anamnese. A celebração, por outro lado, situa-se no centro do tempo litúrgico.

B) EPICLESE PERMANENTE

Em toda celebração litúrgica está presente o Espírito Santo, enviado por Cristo. Toda celebração é epiclese, isto é, invocação da presença santificadora da Santíssima Trindade e não somente do Espírito Santo. O momento cume da epiclese é a invocação da oração eucarística ou das demais orações sacramentais.

A epiclese é:

a) A invocação trinitária que abre a celebração;
b) A proclamação da Palavra de Deus acompanhada de aclamações e orações;
c) A súplica da assembléia (oração dos fiéis);
d) A invocação sacerdotal da oração eucarística e de outras fórmulas;
e) O gesto da paz;
f) Os gestos sacramentais (imposição das mãos, a unção, etc.).

C) DOXOLOGIA

A celebração é doxológica, ou seja, é louvor, culto, adoração, glorificação,reconhecimento e ação de graças, resposta de fé. A doxologia como elemento estrutural e básico está presente em toda e qualquer ação litúrgica. A doxologia é sempre proclamação da glória do Pai mediante Jesus Cristo no Espírito Santo. Toda celebração é louvor ao Pai por Jesus Cristo no Espírito.

A doxologia pode ser notada especialmente:

• No hino ou canto inicial que abre a celebração, especialmente a Liturgia das Horas;
• No hino de louvor, ou Glória;
• No salmo responsorial e em algumas ocasiões no canto do aleluia;
• Nas aclamações que acompanham as preces ou fórmulas (oração eucarística, bênçãos, etc.);
• Na grande doxologia que encerra a oração eucarística;
• Na ação de graças depois da participação eucarística e nas aclamações em alguns ritos (consentimento matrimonial, etc.).

D) MISTAGOGIA CONTÍNUA

A liturgia é iniciadora na ação celebrativa, nas atitudes com as quais é preciso celebrar. Por meio da liturgia a Igreja procura introduzir os fiéis na vivência interior e profunda da salvação. A mistagogia, como já vimos, é a iniciação no mistério celebrado, através dos ritos.

A celebração é toda ela mistagógica, no sentido de que é uma ação que leva todos os participantes a viver o mistério de Cristo. A celebração na perspectiva da mistagogia, possui um ritmo na condução da assembléia ao interior do mistério celebrado.

A celebração possui uma dinâmica que leva a comunidade celebrante a vivenciar o mistério por meio dos ritos, dos gestos, das palavras, dos símbolos, etc.

Alguns elementos particulares significativos do ponto de vista mistagógico:

a) As saudações litúrgicas;
b) Os momentos penitenciais;
c) A liturgia da Palavra;
d) A homilia;
e) Bênção da água ou do óleo, etc.;
f) Os cantos que acompanham determinados momentos;
g) As admoestações presidenciais; etc.

A mistagogia ajuda a executar o que o Senhor mandou: “Fazei isto em memória de mim”.


PARA CONCLUIR NOSSA REFLEXÃO...

A celebração é atualmente um dos conceitos mais ricos da liturgia. Há nos elementos da celebração uma relação que os une:

• O acontecimento;
• A reunião da assembléia;
• O clima festivo;
• A escuta da Palavra;
• Os cantos e orações;
• A ação celebrativa com sinais, gestos e símbolos;
• O espaço e o tempo.

A celebração se desenvolve seguindo um ritmo de acordo com as estruturas que sustentam toda ação celebrativa. Existe um fio condutor em toda celebração:

1. A memória do acontecimento;
2. A súplica da presença e ação de Deus;
3. O louvor e a ação de graças;
4. E a iniciação ao mistério celebrado.

Foi o que vimos quando tratamos da anamnese, epiclese, doxologia e mistagogia. Dentro dessa estrutura fundamental inserem-se as formas litúrgicas concretas: leituras, cantos, preces, aclamações, gestos, ritos, etc. O conjunto de todas elas e seu funcionamento, descritos nos rituais, não são mais que um meio ao serviço dos fins da celebração, ou seja, dos fins da própria liturgia.


QUESTÕES ATUAIS DE TEOLOGIA MORAL
MORAL MATRIMONIAL

D. Sérgio da Rocha


1. MORAL MATRIMONIAL: O MATRIMÔNIO VIVIDO À LUZ DA FÉ

A realidade do matrimônio e da família está marcada por luzes e sombras, isto é, por grandes valores, mas também por sérios problemas que representam um grande desafio para a reflexão e para a vida moral dos cristãos. A fé cristã tem contribuido muito para uma compreensão mais aprofundada do sentido do matrimônio, bem como, para orientar a vivência moral dos casais e das famílias. É à luz da fé que o cristão deve procurar compreender e resolver os desafios que surgem na vida a dois. A maneira de se viver a moral conjugal no dia a dia depende muito do modo como se entende o próprio casamento. À luz da fé, o casamento não é visto como um mero contrato entre um homem e uma mulher, mas acima de tudo, como um sacramento que tem a sua fundamentação em Jesus Cristo e na Tradição da Igreja. Assim sendo, precisamos compreender a moral conjugal à luz da sacramentalidade do matrimônio, isto é, o modo de se orientar os problemas de um casal dependerá bastante da visão que se tem do matrimônio enquanto sacramento.

Afirmar que o matrimônio é um sacramento significa reconhecer que o amor que une homem e mulher no casamento tem um sentido que ultrapassa a própria realidade humana, histórica e cultural. Este sentido mais profundo tem a sua razão de ser em Deus. Aceitar que o matrimônio é um sacramento implica em compreendê-lo e vivê-lo em relação a Deus, no âmbito da fé. O matrimônio enquanto sacramento é sinal visível do próprio amor de Deus, da Aliança de amor fiel, perene e fecundo, entre Deus e seu Povo, da união inseparável entre Cristo e a Igreja. Portanto, quem assume o matrimônio como sacramento, celebrando-o e vivendo-o na comunidade eclesial, está reconhecendo que o seu casamento é sinal do amor de Deus, da Aliança, e, portanto, assume o compromisso de amar como Deus ama. A realidade humana da aliança conjugal torna-se sacramento, sinal visível e eficaz, da Aliança que une Jesus e a Igreja, Deus e seu Povo. Assumindo a sacramentalidade do matrimônio, o casal assume o compromisso de amar “como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5,25).

E como é que Deus ama o Povo? Como Jesus ama a Igreja? Deus ama “na alegria, na tristeza, na saúde e na doença, em todos os dias da vida”. Ama sempre, e não de vez em quando; portanto, seu amor é perene, indissolúvel. Ama sendo fiel, não abandonando jamais o seu povo, mesmo quando este cai na infidelidade. Ama gerando vida e educando: o amor de Deus é Criador, dá existência a todas as coisas, especialmente ao Povo da Aliança, educando-o com muita misericórdia; portanto, o amor de Deus é fecundo. Do mesmo modo deve ser o amor conjugal assumido no sacramento do matrimônio. Ao casar-se na Igreja, o casal assume o compromisso de amar como Deus ama: sempre, de modo inseparável, sendo fiel um ao outro, gerando a vida dos filhos e educando-os na fé.

Este modo de se entender o amor conjugal à luz do amor de Deus tem conseqüências muito concretas e profundas para a vivência do casal. Assumindo o matrimônio como sacramento, celebrando-o na Igreja, os esposos se comprometem a amar-se “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, em todos os dias da vida”, isto é, como Deus ama. Aceitando e vivendo o seu casamento como sinal sacramental do amor de Deus, o casal se compromete a amar “como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef.5,25). Portanto, em conseqüência da sacramentalidade do matrimônio, o amor conjugal passa a ser entendido e vivido de modo perene, indissolúvel, fiel e fecundo, à semelhança do amor de Deus. Na vida cotidiana, em seus atos e atitudes, o casal deverá realizar cada vez mais as características do sacramento do matrimônio: a perenidade ou indissolubilidade, a unidade e a fidelidade, a fecundidade, excluindo tudo aquilo que as contradizem. É à luz destas características do matrimônio que o casal deve discernir o que fazer em cada momento. Um casal cristão e feliz é aquele que, mesmo no meio dos desafios e adversidades, faz tudo para permanecer fiel aos compromissos assumidos na Igreja, procurando concretizar na vida do dia a dia esse amor perene, fiel e fecundo, reflexo do amor divino.

Assim sendo, os que se casam na Igreja, ao aceitar o matrimônio como sacramento, se comprometem a permanecer unidos para sempre no amor, isto é, em todas as situações, procurando superar as crises no diálogo paciente e misericordioso, não permitindo que as dificuldades se tornem motivo de brigas ou separação mas de crescimento e amadurecimento. Quem se casa na Igreja se compromete a ser fiel em todas as circunstâncias, consciente de que a fidelidade é condição indispensável para a felicidade na vida do casal e da família, rejeitando assim qualquer forma de adultério. Quem se casa na Igreja se compromete ainda a viver o amor conjugal gerando e educando filhos. A fecundidade do amor conjugal, que é sinal sacramental do amor fecundo de Deus, exige dos que se casam abertura à transmissão da vida, isto é, a geração dos filhos. Trata-se, porém, de uma atitude de fecundidade responsável, de transmissão responsável da vida, que pressupõe não só procriar, mas acima de tudo, acolher e cuidar dos filhos com amor, e de educá-los na fé da Igreja. Daí, a exigência de planejamento familiar, segundo as orientações da Igreja, decorrente da responsabilidade na transmissão da vida, expressão da fecundidade responsável.

Diante de uma realidade tão bela e ao mesmo tempo tão exigente, é preciso muita disposição, seriedade, e preparação. Entretanto, o amor que une o esposo e a esposa, não depende apenas do compromisso sincero e dos esforços do casal. O autêntico amor conjugal tem a sua fonte em Deus, que é Amor. A graça de Deus, mediada pelo sacramento do matrimônio, sustenta o compromisso de amor e fidelidade do casal, em cada momento do seu longo processo amadurecimento. O amor de Deus que é graça, dom, se faz presente de modo eficaz e não apenas simbólico, na celebração litúrgica e na vida matrimonial, sustentando e animando o casal na vivência dos compromissos matrimoniais em meio a tantos desafios. A confiança na graça de Deus é fonte de alegria e esperança para aqueles que, à luz da fé, vislumbram na aparente fragilidade do amor conjugal um sinal sensível e eficaz do próprio amor divino.

2. DIVÓRCIO

Um dos principais problemas que afligem as famílias hoje é o das separações e divórcios. Tem crescido bastante o número de casais separados e divorciados. Este fato tem sido objeto de muitos estudos e discussões por parte de especialistas de várias áreas, motivando discussões teológicas, pronunciamentos do Magistério da Igreja e muita reflexão entre os que se dedicam à pastoral familiar em nossas comunidades. Neste contexto, é muito importante recordar o que Deus propõe na Bíblia a respeito do matrimônio, bem como, o que a Igreja ensina hoje a respeito dessa problemática.

2.1. O que a Bíblia diz?

Logo nos inícios da Bíblia, nos relatos da Criação, encontramos o matrimônio como algo querido por Deus. O modo como Deus propõe a união conjugal entre o homem e a mulher encontra-se resumido pela expressão “uma só carne” (cf. Gn. 2,24), exprimindo união total e inseparável, doação e cooperação recíproca, igualdade fundamental. Mais tarde, ao longo da história da Igreja, esta atitude será chamada pelos teólogos de indissolubilidade, isto é, vínculo ou união que não se dissolve.

Esse texto do Gênesis foi retomado por Jesus Cristo, ao responder àqueles que lhe perguntavam a respeito do divórcio, a fim de prová-lo (cf. Mt.19,1-9; Mc.10,1-12; Lc.16,18). Havia duas posições principais no tempo de Jesus, representadas por dois conhecidos mestres da Lei: Hillel ensinava que o divórcio poderia ser realizado por qualquer motivo; Shammai permitia o divórcio apenas em caso de adultério. Jesus escapa da armadilha que lhe prepararam, distanciando-se daquelas posturas, recordando explicitamente o querer de Deus desde a Criação a respeito do matrimônio: “Não lestes que o Criador, no princípio, os fez homem e mulher e que disse: Eis por que o homem deixará seu pai e sua mãe e se ligará à mulher e os dois se tornarão uma só carne? Assim, eles não são mais dois, mas uma só carne. Não separe, pois, o homem o que Deus uniu!” (Mt. 19,4-6).

Encontra-se apenas em Mateus uma expressão que tem sido muito discutida e estudada: a permissão de um novo casamento em uma situação especial, designada na língua grega, na qual o Evangelho foi escrito, pela palavra porneia (cf. Mt. 5,32; 19,9). Nesses textos de Mateus, não se permite a separação e a nova união, exceto em caso de “pornéia”. Esta palavra grega tem sido traduzida, muitas vezes, por fornicação, como encontramos, por exemplo, na conhecida versão A Bíblia de Jerusalém. Há novas versões da Bíblia traduzindo-a de uma forma diferente, que corresponde melhor ao seu sentido original, retomando o Lv. 18,6-18, isto é, por união ilegal ou ilícita, como faz a respeitada Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). A atual prática da Igreja Católica de conceder um novo matrimônio somente em caso de nulidade do primeiro corresponde bem a este modo de traduzir e interpretar esse texto de Mateus.

No Novo Testamento, encontramos ainda outra importantíssima passagem em que a expressão uma só carne é retomada para falar da unidade inseparável do casal à exemplo da união de amor entre Cristo e a Igreja. Trata-se de um texto muito utilizado ao longo da história para fundamentar a afirmação de que o matrimônio é um sacramento: Efésios 5, 25-33.

2.2. O Magistério da Igreja

O ensinamento atual da Igreja, mantendo firme o ideal bíblico do matrimônio indissolúvel, rejeita o divórcio, isto é, a dissolução do vínculo matrimonial. O matrimônio, enquanto sacramento, deve ser visto e vivido, à luz da fé, como sinal do amor de Deus que é perene, da Aliança indissolúvel de amor de Deus por seu Povo, do amor inseparável que une Cristo e Igreja. O casal é chamado a “amar como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (cf. Ef. 5,25), como Deus ama o seu Povo: de modo fiel e inseparável, sempre e para sempre.

Contudo, a Igreja tem enfatizado a necessidade de se acolher e valorizar as pessoas divorciadas, procurando superar, assim, a postura de condenação ou de exclusão em relação a elas. Um dos mais importantes documentos a respeito é a Familiaris Consortio, publicada por João Paulo II em 1981. Esta carta sobre a missão da família cristã no mundo de hoje, em sua última parte, dá orientações para o discernimento ético e para a ação pastoral diante da problemática dos separados e divorciados. As pessoas separadas ou divorciadas são chamadas a participar da vida da comunidade cristã, embora permaneça o impedimento à comunhão eucarística para pessoas divorciadas que se casaram novamente.

Assim afirma o Papa a respeito dos divorciados recasados: “Juntamente com o Sínodo, exorto vivamente os pastores e a inteira comunidade dos fiéis a ajudar os divorciados, procurando com caridade solícita, que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto batizados, participar da sua vida. Sejam exortados a ouvir a Palavra de Deus, a freqüentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus. Reze por eles a Igreja, encoraje-os, mostre-se mãe misericordiosa e sustente-os na fé e na esperança” (Familiaris Consortio, nº 84).

2.3. O que significa “casamento nulo”?

Existem matrimônios que a Igreja declara que foram nulos, permitindo, assim, a realização de um novo casamento. A declaração de nulidade de matrimônio pela Igreja não pode ser confundida com divórcio. O divórcio implica na dissolução de um vínculo que foi validamente realizado e consumado por um casal. Declarar nulo é afirmar que um casamento não valeu, isto é, que não foi validamente realizado. Não se pode dizer que a Igreja anula um casamento, pois esse modo errado de se expressar daria a entender que houve um matrimônio válido e que agora não vale mais. O certo é dizer que a Igreja declara que foi nulo, isto é, que não houve propriamente matrimônio, em certos casos. Para se chegar a isso, é preciso passar por um longo processo através do Tribunal Eclesiástico para um correto discernimento da situação e apuração das causas.

Conclusão

Diante do desafio representado hoje pela situação dos separados ou divorciados, é preciso: testemunhar o valor do matrimonio indissolúvel, fundado no amor e na fidelidade conjugal; combater as causas das separações e divórcios, e não as pessoas divorciadas; ajudar os divorciados; promover a reconciliação na vida dos casais, auxiliando os que passam por crises; preparar melhor (educar para o amor...) valorizar e dinamizar a Pastoral Familiar, um dos principais instrumentos à serviço dos casais e famílias, nas comunidades. Urge criar meios de educação para o amor responsável e proporcionar uma adequada preparação para o matrimônio. Além disso, o serviço da reconciliação é um desafio permanente na vida da grande família que é a comunidade cristã a serviço dos casais e das famílias que sofrem com o rompimento da comunhão.
3. FIDELIDADE CONJUGAL E ADULTÉRIO

O problema do adultério ou infidelidade conjugal tem se tornado cada vez mais sério na atualidade, aparecendo frequentemente em dados de pesquisas, apresentados por jornais e revistas. Um vocabulário variado tem servido para exprimir esta realidade desafiadora para a ética cristã: relacionamento extra conjugal, trair, ser traído, ter caso, ter amante, etc. A ‘traição’, no casamento, já não choca como antes, mas na realidade continua a causar muita dor, levando a separações e trazendo sofrimento para o resto da família, especialmente para os filhos menores, com consequências muitas vezes traumáticas.

Múltiplos são os fatores que têm levado à difusão e ao agravamento da infidelidade conjugal. Dentre eles, podemos destacar diversas causas de natureza sócio-cultural.

A infidelidade no matrimônio reflete uma problemática muito mais ampla, que é a crise de fidelidade verificada em outros níveis: falta de fidelidade à palavra dada, à própria consciência, a outros compromissos assumidos no dia a dia da vida. A infidelidade chamada adultério surge no conjunto de outras infidelidades cotidianas, mais facilmente aceitas ou toleradas, mas não menos significativas sob o ponto de vista ético.

Há ainda o risco de se deixar levar, hoje, pela lógica do descartável. Num mundo em que tudo muda rapidamente, a pessoas podem ir se acostumando a trocar e a descartar-se facilmente não somente de mercadorias, idéias, hábitos, mas também de pessoas e compromissos. Trocar de pessoas, variar, como se fosse uma diversão ou artigo de consumo, implica em reduzir e banalizar o compromisso de vida a dois. A fidelidade exprime a lógica do compromisso com o outro, daquilo que permanece e amadurece. Daí, dificuldade ainda maior de vivência da fidelidade conjugal num mundo assim.

Além disso, ao lado do crescimento da emancipação da mulher na sociedade, com reflexos também na questão da iniciativa em casos de adultério, a infidelidade do marido continua a ser mais difusa e aceita em relação à da mulher, segundo pesquisas, sinal de permanência da cultura machista, entre nós, que chega a permitir ao homem orgulhar-se de casos extra conjugais em roda de amigos.

Temos também outros fatores mais diretamente relacionados ao próprio matrimônio, favorecendo a infidelidade conjugal: a falta de preparação, especialmente de maturidade, para assumir o compromisso matrimonial, as crises conjugais, o desacerto entre o casal, a falta de diálogo e afeto. A maioria dos que chegam a situações de adultério alegam problemas na vivência do casamento, no relacionamento conjugal.

No discernimento dessa situação, é preciso ter presente o sentido ético e teológico da fidelidade matrimonial, resgatando-a como fundamento e condição para a felicidade do casal.

Fidelidade conjugal é, antes de tudo, uma exigência ética, um sinal de amor e compromisso com o outro. O desinteresse, a falta de compromisso com o outro, no dia a dia do casamento, é tão grave quanto o adultério propriamente dito ou consumado, podendo abrir caminho para ele.

Fidelidade implica em partilha permanente de um projeto comum de vida, representado pelo matrimônio. É sinal de retidão moral e de coerência com uma opção de vida. Fidelidade é fator de confiança e de estabilidade no casamento.

Este sentido ético da fidelidade conjugal se completa e se aprofunda à luz da fé, recebendo motivação teológica. A fidelidade no matrimônio, iluminada pela fé, se converte em sinal sacramental da fidelidade de Deus. Toda a Bíblia testemunha a fidelidade de Deus: Deus permanece fiel, amando e cumprindo sua palavra, mesmo quando o povo se mostrava infiel. A fidelidade divina é modelo e apelo para os seres humanos, tornando-se fundamento e condição da fidelidade conjugal. Daí, a firme recusa do adultério encontrada ao longo da Sagrada Escritura, tanto no Novo como no Antigo Testamento. Quem aceita a sacramentalidade do matrimônio, assume o compromisso de amar e ser fiel, fazendo da união conjugal um sinal do amor e da fidelidade do próprio Deus.

Entretanto, a fidelidade conjugal não significa fechamento a relacionamentos de amizade e cooperação dos cônjuges em relação a outras pessoas, nem ciúmes doentio. Ciúmes, em grau elevado pode fazer muito mal, provocando sofrimento tanto quanto a infidelidade, podendo acabar com um relacionamento conjugal. Tal atitude, atribuindo ao outro suposta infidelidade, chegando a perder a noção da realidade, é expressão de sentimento possessivo, de dominação e de desconfiança. Para evitar isso, é indispensável abertura, diálogo e confiança A fidelidade, ao contrário da infidelidade e do ciúme, é sinal de amor maduro e de confiança no outro.

Quando ocorrem problemas de infidelidade conjugal, é comum acontecer sérias dificuldades de perdoar, o que dificulta ou impossibilita, consequentemente, a reconciliação e o crescimento do casal. Em tal situação, faz-se cada vez mais necessário promover o diálogo, a busca de aconselhamento espiritual, de orientação psicológica e outras iniciativas que favoreçam a reconciliação. Neste processo, podem desempenhar papel importantíssimo pessoas amigas e familiares, e especialmente, a comunidade cristã. Espera-se das comunidades cristãs o anúncio e o testemunho do valor da fidelidade no casamento e em outros campos da vida, bem como, o acolhimento misericordioso e o apoio fraterno àqueles que tendo passado pela amarga experiência da infidelidade, se propõem a reconstruir a vida conjugal tendo como alicerce a fidelidade, sustentada pela presença amorosa de Deus que permanece sempre fiel.

4. FECUNDIDADE RESPONSÁVEL

A questão da geração dos filhos é, hoje, um dos temas que mais preocupa os casais. Embora possa ser refletida à luz da Bioética, a questão situa-se principalmente no campo da teologia e da moral matrimonial. Por isso, para entendê-la bem, precisamos: 1º) situá-la à luz do sacramento do matrimônio; 2º) ter uma justa compreensão do que é o planejamento familiar; 3º) considerar as orientações da Igreja a respeito.

A fecundidade do amor de Deus e do amor conjugal

A referência maior para a compreensão da questão da geração e educação dos filhos deverá ser o amor de Deus, do qual o sacramento do matrimônio é sinal visível. As características do amor conjugal devem espelhar as características do amor de Deus, especialmente, a fidelidade, a perenidade ou indissolubilidade, e a fecundidade. Nas diversas situações da vida matrimonial, o casal é chamado a amar como Deus ama.

A fecundidade é uma característica do amor de Deus e, portanto, da sacramentalidade do matrimônio. O amor de Deus é criador, gerador da vida de tudo o que existe (Criação), da existência do Povo da Aliança, enfim, da nossa vida. O amor do casal, sinal sacramental do amor de Deus, também deve ser fecundo, aberto à geração e educação dos filhos. Por isso, para realizar o sacramento do matrimônio, a Igreja exige, ordinariamente, dos casais esta atitude de abertura para gerar e educar filhos. Entretanto, esta fecundidade deve ser vivida de modo responsável, sustentada pelo autêntico amor e pela fé.

Planejamento familiar ou controle de natalidade?

O planejamento familiar é expressão de fecundidade responsável, isto é, de transmissão responsável da vida; é sinal de responsabilidade e de amor do casal. Nas últimas décadas, divulgou-se bastante a expressão paternidade responsável. Embora alguns considerem preferível falar em transmissão responsável da vida ou em fecundidade responsável, é correto utilizar a expressão paternidade responsável, que é bastante difundida, desde que seja bem compreendida. Ao utilizar a expressão paternidade responsável, é necessário destacar o papel indispensável de ambos, pai e mãe.

O que não se deve fazer é utilizar a expressão controle de natalidade como sinônimo de planejamento familiar, pois este é muito mais do que mero controle de natalidade. Controle de natalidade, como dá a entender a própria expressão, tem como objetivo impedir novos nascimentos baseando-se, sobretudo, na eficácia dos métodos e designando geralmente programas de redução da população motivados por critérios políticos e econômicos. O planejamento familiar, segundo a própria expressão, implica no planejamento consciente da vida familiar, por parte do casal, em relação à geração e educação dos filhos, de modo responsável. Por isso, o planejamento familiar não é motivado por critérios predominantemente técnicos de eficiência dos métodos, ou por critérios políticos e econômicos, mas pelo critério cristão da transmissão responsável da vida.

A atitude cristã de transmissão responsável da vida levará o casal a acolher um filho, com amor generoso e responsável, em caso de falhas dos métodos. Deste modo, a abertura à vida permaneceria quando se recorre a métodos de planejamento familiar, evitando abortos ou qualquer outra forma de rejeição de uma nova vida, enfim, impedindo que um filho seja gerado apenas pela falha de um método e não gerado e acolhido pelo amor dos pais.

A postura da Igreja

Há muita confusão a respeito da posição da Igreja sobre o planejamento familiar. Há quem diga que a Igreja é contra. Na verdade, a Igreja propõe aos casais a fecundidade responsável. O problema está no modo como se entende e se quer praticar o planejamento familiar.

Encontram-se, atualmente, diversos documentos da Igreja que orientam o planejamento familiar, bem como, estudos teológicos muito bons a respeito do tema. Um dos primeiros e dos mais importantes, é o texto do Concílio Vaticano II a respeito da dignidade do matrimônio e da família, que se encontra na Gaudium et Spes, publicada em 1965, mas que continua profundamente atual, como todos os outros textos do Concílio. A Gaudium et Spes reconhece as dificuldades vividas pelos casais em relação ao número dos filhos, chama com insistência à responsabilidade, apontando alguns critérios importantíssimos de discernimento, conforme os seus números 50 e 51. O número 50 desse grande documento conciliar assim resume esta postura de discernimento da questão: os cônjuges, com “responsabilidade cristã e humana”, numa atitude de docilidade para com Deus e o Magistério da Igreja, “formarão um juízo reto, de comum acordo e empenho, atendendo ao bem próprio e ao bem dos filhos, seja já nascidos, seja que se prevêem nascer, discernindo as condições seja materiais, seja espirituais, dos tempos e do estado de vida e finalmente levando em conta o bem comum da comunidade familiar, da sociedade temporal e da própria Igreja. Os próprios esposos, em última análise, devem formar esse juízo diante de Deus”.

Posteriormente, o tema foi retomado em dois documentos de especial importância, bastante divulgados: a carta encíclica de Paulo VI Humanae Vitae, em 1968, e a exortacão apostólica Familiaris Consortio, de João Paulo II, em 1981. Esses documentos admitem os métodos naturais para o planejamento familiar e rejeitam os métodos artificiais. O método natural mais divulgado e respeitado tem sido o método da ovulação, também chamado de método Billings, devido ao nome do médico que o elaborou Dr. John Billings. Muitos casais que têm recorrido a este método, praticando-o corretamente com as devidas orientações, têm conseguido realizar, de modo feliz, o planejamento familiar. Além de respeitar a saúde da mulher, sem provocar-lhe danos ou efeitos colaterais, o método Billings, ao exigir o diálogo, o comum acordo e a partilha da responsabilidade, tem promovido o crescimento e o amadurecimento do casal.

Conclusão

A fecundidade conjugal não é somente biológica, bem como, a paternidade não se reduz à transmissão biológica da vida; daí, a importância dos filhos e da realização da fecundidade conjugal mesmo em casos de esterilidade física, através de outros meios, sobretudo, da adoção. É muito importante ter presente o “múltiplo serviço à vida”, que o casal pode viver, segundo a Familiaris consortio (n. 41), aqui mencionado no tema da fecundação artificial.



INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

A) MAGISTÉRIO DA IGREJA SOBRE MATRIMÔNIO E FAMÍLIA

VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo de hoje, nºs. 47-52: A promoção da dignidade do matrimônio e da família.

PAULO VI, Encíclica Humanae vitae sobre a regulação da natalidade, 25-07-68

JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Familiaris consortio sobre A missão da família cristã no mundo de hoje, 22-11-1981.

CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, cânones 1055-1165.

PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A FAMÍLIA, Preparação para o Sacramento do Matrimônio, 13-05-96, Paulus.

PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A FAMÍLIA, Recomendações e sugestões pastorais a respeito dos divorciados novamente casados, in SEDOC 29 (1997) 666-670.

PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A FAMÍLIA, Vade-mécum para os confessores. Temas de moral relacionados com a vida conjugal, in SEDOC 29 (1997) 671-689.

BISPOS ALEMÃES DO RENO SUPERIOR, Carta pastoral sobre divorciados recasados, in SEDOC 26/242 (1994) 423-438.

CNBB, Em favor da família, Doc. 3, E. Paulinas, 1976.

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CNBB-Sul 1, Introdução à Pastoral Familiar, E.Santuário, 1990.


B) OBRAS TEOLÓGICAS

BOFF Leonardo, O sacramento do matrimônio, in Concilium 1973/7, 796-806.

HAERING Bernhard, Livres e fiéis em Cristo. Teologia moral para sacerdotes e leigos, vol. 2: A verdade vos libertará

HORTAL Jesus, O que Deus uniu. Lições de Direito Matrimonial Canônico, Loyola, 1979.

HORTAL Jesus, Casamentos que nunca deveriam ter existido. Uma solução pastoral, Loyola, 1987.

KASPER Walter, Teologia do Matrimônio Cristão, E.Paulinas, 1993.

LE BOURGEOIS Armand, Cristãos divorciados e casados de novo, E. Ave Maria, 1997.

LEGRAIN Michel, A Igreja e os divorciados, E.Paulinas, 1989.

LÓPEZ AZPITARTE Eduardo, Ética da sexualidade e do matrimônio, Paulus, 1997.

NOCENT A., Os sacramentos. Teologia e história da celebração, E.Paulinas, 1989: O Matrimônio cristão (p.335-401).

RINCÓN ORDUÑA R. (e outros), Práxis cristã, vol. 2. Opção pela vida e pelo amor, E.Paulinas, 1984.

SCHILLEBEECKX E., O matrimônio. Realidade terrestre e mistério de salvação, E.Vozes, 1969.

VIDAL Marciano, Moral do matrimônio, Vozes, 1993.