quarta-feira, 29 de junho de 2011


QUESTÕES ATUAIS DE TEOLOGIA MORAL
MORAL MATRIMONIAL

D. Sérgio da Rocha


1. MORAL MATRIMONIAL: O MATRIMÔNIO VIVIDO À LUZ DA FÉ

A realidade do matrimônio e da família está marcada por luzes e sombras, isto é, por grandes valores, mas também por sérios problemas que representam um grande desafio para a reflexão e para a vida moral dos cristãos. A fé cristã tem contribuido muito para uma compreensão mais aprofundada do sentido do matrimônio, bem como, para orientar a vivência moral dos casais e das famílias. É à luz da fé que o cristão deve procurar compreender e resolver os desafios que surgem na vida a dois. A maneira de se viver a moral conjugal no dia a dia depende muito do modo como se entende o próprio casamento. À luz da fé, o casamento não é visto como um mero contrato entre um homem e uma mulher, mas acima de tudo, como um sacramento que tem a sua fundamentação em Jesus Cristo e na Tradição da Igreja. Assim sendo, precisamos compreender a moral conjugal à luz da sacramentalidade do matrimônio, isto é, o modo de se orientar os problemas de um casal dependerá bastante da visão que se tem do matrimônio enquanto sacramento.

Afirmar que o matrimônio é um sacramento significa reconhecer que o amor que une homem e mulher no casamento tem um sentido que ultrapassa a própria realidade humana, histórica e cultural. Este sentido mais profundo tem a sua razão de ser em Deus. Aceitar que o matrimônio é um sacramento implica em compreendê-lo e vivê-lo em relação a Deus, no âmbito da fé. O matrimônio enquanto sacramento é sinal visível do próprio amor de Deus, da Aliança de amor fiel, perene e fecundo, entre Deus e seu Povo, da união inseparável entre Cristo e a Igreja. Portanto, quem assume o matrimônio como sacramento, celebrando-o e vivendo-o na comunidade eclesial, está reconhecendo que o seu casamento é sinal do amor de Deus, da Aliança, e, portanto, assume o compromisso de amar como Deus ama. A realidade humana da aliança conjugal torna-se sacramento, sinal visível e eficaz, da Aliança que une Jesus e a Igreja, Deus e seu Povo. Assumindo a sacramentalidade do matrimônio, o casal assume o compromisso de amar “como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5,25).

E como é que Deus ama o Povo? Como Jesus ama a Igreja? Deus ama “na alegria, na tristeza, na saúde e na doença, em todos os dias da vida”. Ama sempre, e não de vez em quando; portanto, seu amor é perene, indissolúvel. Ama sendo fiel, não abandonando jamais o seu povo, mesmo quando este cai na infidelidade. Ama gerando vida e educando: o amor de Deus é Criador, dá existência a todas as coisas, especialmente ao Povo da Aliança, educando-o com muita misericórdia; portanto, o amor de Deus é fecundo. Do mesmo modo deve ser o amor conjugal assumido no sacramento do matrimônio. Ao casar-se na Igreja, o casal assume o compromisso de amar como Deus ama: sempre, de modo inseparável, sendo fiel um ao outro, gerando a vida dos filhos e educando-os na fé.

Este modo de se entender o amor conjugal à luz do amor de Deus tem conseqüências muito concretas e profundas para a vivência do casal. Assumindo o matrimônio como sacramento, celebrando-o na Igreja, os esposos se comprometem a amar-se “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, em todos os dias da vida”, isto é, como Deus ama. Aceitando e vivendo o seu casamento como sinal sacramental do amor de Deus, o casal se compromete a amar “como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef.5,25). Portanto, em conseqüência da sacramentalidade do matrimônio, o amor conjugal passa a ser entendido e vivido de modo perene, indissolúvel, fiel e fecundo, à semelhança do amor de Deus. Na vida cotidiana, em seus atos e atitudes, o casal deverá realizar cada vez mais as características do sacramento do matrimônio: a perenidade ou indissolubilidade, a unidade e a fidelidade, a fecundidade, excluindo tudo aquilo que as contradizem. É à luz destas características do matrimônio que o casal deve discernir o que fazer em cada momento. Um casal cristão e feliz é aquele que, mesmo no meio dos desafios e adversidades, faz tudo para permanecer fiel aos compromissos assumidos na Igreja, procurando concretizar na vida do dia a dia esse amor perene, fiel e fecundo, reflexo do amor divino.

Assim sendo, os que se casam na Igreja, ao aceitar o matrimônio como sacramento, se comprometem a permanecer unidos para sempre no amor, isto é, em todas as situações, procurando superar as crises no diálogo paciente e misericordioso, não permitindo que as dificuldades se tornem motivo de brigas ou separação mas de crescimento e amadurecimento. Quem se casa na Igreja se compromete a ser fiel em todas as circunstâncias, consciente de que a fidelidade é condição indispensável para a felicidade na vida do casal e da família, rejeitando assim qualquer forma de adultério. Quem se casa na Igreja se compromete ainda a viver o amor conjugal gerando e educando filhos. A fecundidade do amor conjugal, que é sinal sacramental do amor fecundo de Deus, exige dos que se casam abertura à transmissão da vida, isto é, a geração dos filhos. Trata-se, porém, de uma atitude de fecundidade responsável, de transmissão responsável da vida, que pressupõe não só procriar, mas acima de tudo, acolher e cuidar dos filhos com amor, e de educá-los na fé da Igreja. Daí, a exigência de planejamento familiar, segundo as orientações da Igreja, decorrente da responsabilidade na transmissão da vida, expressão da fecundidade responsável.

Diante de uma realidade tão bela e ao mesmo tempo tão exigente, é preciso muita disposição, seriedade, e preparação. Entretanto, o amor que une o esposo e a esposa, não depende apenas do compromisso sincero e dos esforços do casal. O autêntico amor conjugal tem a sua fonte em Deus, que é Amor. A graça de Deus, mediada pelo sacramento do matrimônio, sustenta o compromisso de amor e fidelidade do casal, em cada momento do seu longo processo amadurecimento. O amor de Deus que é graça, dom, se faz presente de modo eficaz e não apenas simbólico, na celebração litúrgica e na vida matrimonial, sustentando e animando o casal na vivência dos compromissos matrimoniais em meio a tantos desafios. A confiança na graça de Deus é fonte de alegria e esperança para aqueles que, à luz da fé, vislumbram na aparente fragilidade do amor conjugal um sinal sensível e eficaz do próprio amor divino.

2. DIVÓRCIO

Um dos principais problemas que afligem as famílias hoje é o das separações e divórcios. Tem crescido bastante o número de casais separados e divorciados. Este fato tem sido objeto de muitos estudos e discussões por parte de especialistas de várias áreas, motivando discussões teológicas, pronunciamentos do Magistério da Igreja e muita reflexão entre os que se dedicam à pastoral familiar em nossas comunidades. Neste contexto, é muito importante recordar o que Deus propõe na Bíblia a respeito do matrimônio, bem como, o que a Igreja ensina hoje a respeito dessa problemática.

2.1. O que a Bíblia diz?

Logo nos inícios da Bíblia, nos relatos da Criação, encontramos o matrimônio como algo querido por Deus. O modo como Deus propõe a união conjugal entre o homem e a mulher encontra-se resumido pela expressão “uma só carne” (cf. Gn. 2,24), exprimindo união total e inseparável, doação e cooperação recíproca, igualdade fundamental. Mais tarde, ao longo da história da Igreja, esta atitude será chamada pelos teólogos de indissolubilidade, isto é, vínculo ou união que não se dissolve.

Esse texto do Gênesis foi retomado por Jesus Cristo, ao responder àqueles que lhe perguntavam a respeito do divórcio, a fim de prová-lo (cf. Mt.19,1-9; Mc.10,1-12; Lc.16,18). Havia duas posições principais no tempo de Jesus, representadas por dois conhecidos mestres da Lei: Hillel ensinava que o divórcio poderia ser realizado por qualquer motivo; Shammai permitia o divórcio apenas em caso de adultério. Jesus escapa da armadilha que lhe prepararam, distanciando-se daquelas posturas, recordando explicitamente o querer de Deus desde a Criação a respeito do matrimônio: “Não lestes que o Criador, no princípio, os fez homem e mulher e que disse: Eis por que o homem deixará seu pai e sua mãe e se ligará à mulher e os dois se tornarão uma só carne? Assim, eles não são mais dois, mas uma só carne. Não separe, pois, o homem o que Deus uniu!” (Mt. 19,4-6).

Encontra-se apenas em Mateus uma expressão que tem sido muito discutida e estudada: a permissão de um novo casamento em uma situação especial, designada na língua grega, na qual o Evangelho foi escrito, pela palavra porneia (cf. Mt. 5,32; 19,9). Nesses textos de Mateus, não se permite a separação e a nova união, exceto em caso de “pornéia”. Esta palavra grega tem sido traduzida, muitas vezes, por fornicação, como encontramos, por exemplo, na conhecida versão A Bíblia de Jerusalém. Há novas versões da Bíblia traduzindo-a de uma forma diferente, que corresponde melhor ao seu sentido original, retomando o Lv. 18,6-18, isto é, por união ilegal ou ilícita, como faz a respeitada Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). A atual prática da Igreja Católica de conceder um novo matrimônio somente em caso de nulidade do primeiro corresponde bem a este modo de traduzir e interpretar esse texto de Mateus.

No Novo Testamento, encontramos ainda outra importantíssima passagem em que a expressão uma só carne é retomada para falar da unidade inseparável do casal à exemplo da união de amor entre Cristo e a Igreja. Trata-se de um texto muito utilizado ao longo da história para fundamentar a afirmação de que o matrimônio é um sacramento: Efésios 5, 25-33.

2.2. O Magistério da Igreja

O ensinamento atual da Igreja, mantendo firme o ideal bíblico do matrimônio indissolúvel, rejeita o divórcio, isto é, a dissolução do vínculo matrimonial. O matrimônio, enquanto sacramento, deve ser visto e vivido, à luz da fé, como sinal do amor de Deus que é perene, da Aliança indissolúvel de amor de Deus por seu Povo, do amor inseparável que une Cristo e Igreja. O casal é chamado a “amar como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (cf. Ef. 5,25), como Deus ama o seu Povo: de modo fiel e inseparável, sempre e para sempre.

Contudo, a Igreja tem enfatizado a necessidade de se acolher e valorizar as pessoas divorciadas, procurando superar, assim, a postura de condenação ou de exclusão em relação a elas. Um dos mais importantes documentos a respeito é a Familiaris Consortio, publicada por João Paulo II em 1981. Esta carta sobre a missão da família cristã no mundo de hoje, em sua última parte, dá orientações para o discernimento ético e para a ação pastoral diante da problemática dos separados e divorciados. As pessoas separadas ou divorciadas são chamadas a participar da vida da comunidade cristã, embora permaneça o impedimento à comunhão eucarística para pessoas divorciadas que se casaram novamente.

Assim afirma o Papa a respeito dos divorciados recasados: “Juntamente com o Sínodo, exorto vivamente os pastores e a inteira comunidade dos fiéis a ajudar os divorciados, procurando com caridade solícita, que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto batizados, participar da sua vida. Sejam exortados a ouvir a Palavra de Deus, a freqüentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus. Reze por eles a Igreja, encoraje-os, mostre-se mãe misericordiosa e sustente-os na fé e na esperança” (Familiaris Consortio, nº 84).

2.3. O que significa “casamento nulo”?

Existem matrimônios que a Igreja declara que foram nulos, permitindo, assim, a realização de um novo casamento. A declaração de nulidade de matrimônio pela Igreja não pode ser confundida com divórcio. O divórcio implica na dissolução de um vínculo que foi validamente realizado e consumado por um casal. Declarar nulo é afirmar que um casamento não valeu, isto é, que não foi validamente realizado. Não se pode dizer que a Igreja anula um casamento, pois esse modo errado de se expressar daria a entender que houve um matrimônio válido e que agora não vale mais. O certo é dizer que a Igreja declara que foi nulo, isto é, que não houve propriamente matrimônio, em certos casos. Para se chegar a isso, é preciso passar por um longo processo através do Tribunal Eclesiástico para um correto discernimento da situação e apuração das causas.

Conclusão

Diante do desafio representado hoje pela situação dos separados ou divorciados, é preciso: testemunhar o valor do matrimonio indissolúvel, fundado no amor e na fidelidade conjugal; combater as causas das separações e divórcios, e não as pessoas divorciadas; ajudar os divorciados; promover a reconciliação na vida dos casais, auxiliando os que passam por crises; preparar melhor (educar para o amor...) valorizar e dinamizar a Pastoral Familiar, um dos principais instrumentos à serviço dos casais e famílias, nas comunidades. Urge criar meios de educação para o amor responsável e proporcionar uma adequada preparação para o matrimônio. Além disso, o serviço da reconciliação é um desafio permanente na vida da grande família que é a comunidade cristã a serviço dos casais e das famílias que sofrem com o rompimento da comunhão.
3. FIDELIDADE CONJUGAL E ADULTÉRIO

O problema do adultério ou infidelidade conjugal tem se tornado cada vez mais sério na atualidade, aparecendo frequentemente em dados de pesquisas, apresentados por jornais e revistas. Um vocabulário variado tem servido para exprimir esta realidade desafiadora para a ética cristã: relacionamento extra conjugal, trair, ser traído, ter caso, ter amante, etc. A ‘traição’, no casamento, já não choca como antes, mas na realidade continua a causar muita dor, levando a separações e trazendo sofrimento para o resto da família, especialmente para os filhos menores, com consequências muitas vezes traumáticas.

Múltiplos são os fatores que têm levado à difusão e ao agravamento da infidelidade conjugal. Dentre eles, podemos destacar diversas causas de natureza sócio-cultural.

A infidelidade no matrimônio reflete uma problemática muito mais ampla, que é a crise de fidelidade verificada em outros níveis: falta de fidelidade à palavra dada, à própria consciência, a outros compromissos assumidos no dia a dia da vida. A infidelidade chamada adultério surge no conjunto de outras infidelidades cotidianas, mais facilmente aceitas ou toleradas, mas não menos significativas sob o ponto de vista ético.

Há ainda o risco de se deixar levar, hoje, pela lógica do descartável. Num mundo em que tudo muda rapidamente, a pessoas podem ir se acostumando a trocar e a descartar-se facilmente não somente de mercadorias, idéias, hábitos, mas também de pessoas e compromissos. Trocar de pessoas, variar, como se fosse uma diversão ou artigo de consumo, implica em reduzir e banalizar o compromisso de vida a dois. A fidelidade exprime a lógica do compromisso com o outro, daquilo que permanece e amadurece. Daí, dificuldade ainda maior de vivência da fidelidade conjugal num mundo assim.

Além disso, ao lado do crescimento da emancipação da mulher na sociedade, com reflexos também na questão da iniciativa em casos de adultério, a infidelidade do marido continua a ser mais difusa e aceita em relação à da mulher, segundo pesquisas, sinal de permanência da cultura machista, entre nós, que chega a permitir ao homem orgulhar-se de casos extra conjugais em roda de amigos.

Temos também outros fatores mais diretamente relacionados ao próprio matrimônio, favorecendo a infidelidade conjugal: a falta de preparação, especialmente de maturidade, para assumir o compromisso matrimonial, as crises conjugais, o desacerto entre o casal, a falta de diálogo e afeto. A maioria dos que chegam a situações de adultério alegam problemas na vivência do casamento, no relacionamento conjugal.

No discernimento dessa situação, é preciso ter presente o sentido ético e teológico da fidelidade matrimonial, resgatando-a como fundamento e condição para a felicidade do casal.

Fidelidade conjugal é, antes de tudo, uma exigência ética, um sinal de amor e compromisso com o outro. O desinteresse, a falta de compromisso com o outro, no dia a dia do casamento, é tão grave quanto o adultério propriamente dito ou consumado, podendo abrir caminho para ele.

Fidelidade implica em partilha permanente de um projeto comum de vida, representado pelo matrimônio. É sinal de retidão moral e de coerência com uma opção de vida. Fidelidade é fator de confiança e de estabilidade no casamento.

Este sentido ético da fidelidade conjugal se completa e se aprofunda à luz da fé, recebendo motivação teológica. A fidelidade no matrimônio, iluminada pela fé, se converte em sinal sacramental da fidelidade de Deus. Toda a Bíblia testemunha a fidelidade de Deus: Deus permanece fiel, amando e cumprindo sua palavra, mesmo quando o povo se mostrava infiel. A fidelidade divina é modelo e apelo para os seres humanos, tornando-se fundamento e condição da fidelidade conjugal. Daí, a firme recusa do adultério encontrada ao longo da Sagrada Escritura, tanto no Novo como no Antigo Testamento. Quem aceita a sacramentalidade do matrimônio, assume o compromisso de amar e ser fiel, fazendo da união conjugal um sinal do amor e da fidelidade do próprio Deus.

Entretanto, a fidelidade conjugal não significa fechamento a relacionamentos de amizade e cooperação dos cônjuges em relação a outras pessoas, nem ciúmes doentio. Ciúmes, em grau elevado pode fazer muito mal, provocando sofrimento tanto quanto a infidelidade, podendo acabar com um relacionamento conjugal. Tal atitude, atribuindo ao outro suposta infidelidade, chegando a perder a noção da realidade, é expressão de sentimento possessivo, de dominação e de desconfiança. Para evitar isso, é indispensável abertura, diálogo e confiança A fidelidade, ao contrário da infidelidade e do ciúme, é sinal de amor maduro e de confiança no outro.

Quando ocorrem problemas de infidelidade conjugal, é comum acontecer sérias dificuldades de perdoar, o que dificulta ou impossibilita, consequentemente, a reconciliação e o crescimento do casal. Em tal situação, faz-se cada vez mais necessário promover o diálogo, a busca de aconselhamento espiritual, de orientação psicológica e outras iniciativas que favoreçam a reconciliação. Neste processo, podem desempenhar papel importantíssimo pessoas amigas e familiares, e especialmente, a comunidade cristã. Espera-se das comunidades cristãs o anúncio e o testemunho do valor da fidelidade no casamento e em outros campos da vida, bem como, o acolhimento misericordioso e o apoio fraterno àqueles que tendo passado pela amarga experiência da infidelidade, se propõem a reconstruir a vida conjugal tendo como alicerce a fidelidade, sustentada pela presença amorosa de Deus que permanece sempre fiel.

4. FECUNDIDADE RESPONSÁVEL

A questão da geração dos filhos é, hoje, um dos temas que mais preocupa os casais. Embora possa ser refletida à luz da Bioética, a questão situa-se principalmente no campo da teologia e da moral matrimonial. Por isso, para entendê-la bem, precisamos: 1º) situá-la à luz do sacramento do matrimônio; 2º) ter uma justa compreensão do que é o planejamento familiar; 3º) considerar as orientações da Igreja a respeito.

A fecundidade do amor de Deus e do amor conjugal

A referência maior para a compreensão da questão da geração e educação dos filhos deverá ser o amor de Deus, do qual o sacramento do matrimônio é sinal visível. As características do amor conjugal devem espelhar as características do amor de Deus, especialmente, a fidelidade, a perenidade ou indissolubilidade, e a fecundidade. Nas diversas situações da vida matrimonial, o casal é chamado a amar como Deus ama.

A fecundidade é uma característica do amor de Deus e, portanto, da sacramentalidade do matrimônio. O amor de Deus é criador, gerador da vida de tudo o que existe (Criação), da existência do Povo da Aliança, enfim, da nossa vida. O amor do casal, sinal sacramental do amor de Deus, também deve ser fecundo, aberto à geração e educação dos filhos. Por isso, para realizar o sacramento do matrimônio, a Igreja exige, ordinariamente, dos casais esta atitude de abertura para gerar e educar filhos. Entretanto, esta fecundidade deve ser vivida de modo responsável, sustentada pelo autêntico amor e pela fé.

Planejamento familiar ou controle de natalidade?

O planejamento familiar é expressão de fecundidade responsável, isto é, de transmissão responsável da vida; é sinal de responsabilidade e de amor do casal. Nas últimas décadas, divulgou-se bastante a expressão paternidade responsável. Embora alguns considerem preferível falar em transmissão responsável da vida ou em fecundidade responsável, é correto utilizar a expressão paternidade responsável, que é bastante difundida, desde que seja bem compreendida. Ao utilizar a expressão paternidade responsável, é necessário destacar o papel indispensável de ambos, pai e mãe.

O que não se deve fazer é utilizar a expressão controle de natalidade como sinônimo de planejamento familiar, pois este é muito mais do que mero controle de natalidade. Controle de natalidade, como dá a entender a própria expressão, tem como objetivo impedir novos nascimentos baseando-se, sobretudo, na eficácia dos métodos e designando geralmente programas de redução da população motivados por critérios políticos e econômicos. O planejamento familiar, segundo a própria expressão, implica no planejamento consciente da vida familiar, por parte do casal, em relação à geração e educação dos filhos, de modo responsável. Por isso, o planejamento familiar não é motivado por critérios predominantemente técnicos de eficiência dos métodos, ou por critérios políticos e econômicos, mas pelo critério cristão da transmissão responsável da vida.

A atitude cristã de transmissão responsável da vida levará o casal a acolher um filho, com amor generoso e responsável, em caso de falhas dos métodos. Deste modo, a abertura à vida permaneceria quando se recorre a métodos de planejamento familiar, evitando abortos ou qualquer outra forma de rejeição de uma nova vida, enfim, impedindo que um filho seja gerado apenas pela falha de um método e não gerado e acolhido pelo amor dos pais.

A postura da Igreja

Há muita confusão a respeito da posição da Igreja sobre o planejamento familiar. Há quem diga que a Igreja é contra. Na verdade, a Igreja propõe aos casais a fecundidade responsável. O problema está no modo como se entende e se quer praticar o planejamento familiar.

Encontram-se, atualmente, diversos documentos da Igreja que orientam o planejamento familiar, bem como, estudos teológicos muito bons a respeito do tema. Um dos primeiros e dos mais importantes, é o texto do Concílio Vaticano II a respeito da dignidade do matrimônio e da família, que se encontra na Gaudium et Spes, publicada em 1965, mas que continua profundamente atual, como todos os outros textos do Concílio. A Gaudium et Spes reconhece as dificuldades vividas pelos casais em relação ao número dos filhos, chama com insistência à responsabilidade, apontando alguns critérios importantíssimos de discernimento, conforme os seus números 50 e 51. O número 50 desse grande documento conciliar assim resume esta postura de discernimento da questão: os cônjuges, com “responsabilidade cristã e humana”, numa atitude de docilidade para com Deus e o Magistério da Igreja, “formarão um juízo reto, de comum acordo e empenho, atendendo ao bem próprio e ao bem dos filhos, seja já nascidos, seja que se prevêem nascer, discernindo as condições seja materiais, seja espirituais, dos tempos e do estado de vida e finalmente levando em conta o bem comum da comunidade familiar, da sociedade temporal e da própria Igreja. Os próprios esposos, em última análise, devem formar esse juízo diante de Deus”.

Posteriormente, o tema foi retomado em dois documentos de especial importância, bastante divulgados: a carta encíclica de Paulo VI Humanae Vitae, em 1968, e a exortacão apostólica Familiaris Consortio, de João Paulo II, em 1981. Esses documentos admitem os métodos naturais para o planejamento familiar e rejeitam os métodos artificiais. O método natural mais divulgado e respeitado tem sido o método da ovulação, também chamado de método Billings, devido ao nome do médico que o elaborou Dr. John Billings. Muitos casais que têm recorrido a este método, praticando-o corretamente com as devidas orientações, têm conseguido realizar, de modo feliz, o planejamento familiar. Além de respeitar a saúde da mulher, sem provocar-lhe danos ou efeitos colaterais, o método Billings, ao exigir o diálogo, o comum acordo e a partilha da responsabilidade, tem promovido o crescimento e o amadurecimento do casal.

Conclusão

A fecundidade conjugal não é somente biológica, bem como, a paternidade não se reduz à transmissão biológica da vida; daí, a importância dos filhos e da realização da fecundidade conjugal mesmo em casos de esterilidade física, através de outros meios, sobretudo, da adoção. É muito importante ter presente o “múltiplo serviço à vida”, que o casal pode viver, segundo a Familiaris consortio (n. 41), aqui mencionado no tema da fecundação artificial.



INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

A) MAGISTÉRIO DA IGREJA SOBRE MATRIMÔNIO E FAMÍLIA

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PAULO VI, Encíclica Humanae vitae sobre a regulação da natalidade, 25-07-68

JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Familiaris consortio sobre A missão da família cristã no mundo de hoje, 22-11-1981.

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