quarta-feira, 29 de junho de 2011

A Liturgia como Celebração

Pe. Cristiano Marmelo Pinto


“As ações litúrgicas não são ações privadas,
mas celebrações da Igreja, que é o ‘sacramento da unidade’,
isto é, o povo santo, unido e ordenado
sob a direção dos bispos” (SC 26).


O CONCEITO DE CELEBRAÇÃO

Para a Teologia e Antropologia Litúrgica, o conceito de celebração é de suma importância. Esta palavra tem sido muito usada ultimamente pela linguagem litúrgica. Embora as palavras liturgia e celebração tenham sido usada indiscriminadamente, elas não se correspondem. Elas possuem concepções diferentes e importantes para a compreensão da Teologia Litúrgica.

A liturgia como culto cristão é uma atitude de uma vida de escuta fiel e de adesão a Palavra de Deus, no seio da Aliança estabelecida por Cristo e realizada na Igreja sob a ação do Espírito Santo. A celebração é o aspecto celebrativo da liturgia, essencial e destinado a inserir o homem no Mistério de Cristo e da Igreja, ou seja, na Salvação.

A liturgia é uma realidade mistérica, ou seja, continuação, prolongamento da obra da salvação na história. Mas ela é também ação, no tempo e no espaço, lugar do exercício sacerdotal que Cristo confiou a Igreja para a santificação do homem e glorificação (culto) de Deus.

A liturgia abarca toda a vida da Igreja, como culto a Deus. A celebração é a sacramentalização dessa vida oferecida como culto espiritual da Deus. Ela se dá num momento histórico, num determinado tempo e espaço, expressivo, ritual e simbólico. Na celebração a oferenda se torna eficaz, agradável e aceita por Deus pela mediação de Jesus Cristo no Espírito Santo. Para que o culto cristão seja sacramentalmente eficaz, a celebração é imprescindível.

Os atores da celebração são a Assembléia Litúrgica e os Ministros que nela desempenham papéis e funções.

Celebrar ou celebração está imerso na vida do homem e na história da humanidade. Celebramos tudo aquilo que nos toca profundamente. O sujeito da celebração não é uma só pessoa, mas um grupo, uma comunidade, uma assembléia. Celebrar e celebração correspondem a uma noção de liturgia como ação de toda a Igreja (cf. SC 26).


CELEBRAR E CELEBRAÇÃO

Devido a importância que a categoria celebração adquiriu para a liturgia, precisamos compreender melhor o significado do conceito. Vamos partir da etimologia da palavra celebrar e de seus derivados.

Celebrar e celebração vem do latim celebrare e celebratio. Estes termos se completam com o adjetivo célebre (celeber).

Célebre (celeber) – se aplica ao lugar freqüentado por muitas pessoas.

Celebrare – significa o mesmo que freqüentar, que designa a ação de reunir-se.

Etimologicamente celebrar equivale a reunir-se num lugar, juntar-se, acorrer em massa.

Celebração – é a reunião numerosa, o ato de reunir-se e o momento de estar congregados.

Célebre – designa o lugar da reunião ou o lugar freqüentado, e o tempo ou momento da reunião.

Num segundo momento da ação de reunir-se, passa-se ao objeto (motivo) da reunião. Este objeto pode ser uma festa, os mistérios, o culto, etc. Cada um desses objetos da celebração torna-se celebritas, ou seja, celebridade, um momento solene. Num terceiro momento passa-se para o nível das manifestações externas ou do ritual desenvolvido na reunião.


O USO DO TERMO NO LATIM CRISTÃO

No final do século II, o latim começa a ser cristianizado. Ela passa a ser usado na tradução da Bíblia, na catequese e na liturgia. Esta cristianização do latim provoca um alargamento no significado do termo, de modo que celebrare e celebratio adquire novos matizes.

O uso do latim no cristianismo facilitou sua comunicação e a liturgia no mundo greco-romano. Nas traduções latinas da Bíblia, celebrar e celebração estão ligados a termos muitos variados.

1. Traduzindo o verbo poeio (fazer) – tem sentido exclusivamente cultual e se refere aos diferentes objetos designados - páscoa, rito dos ázimos, etc. (cf. Ex 12,48; 13,5; Dt 16,10-13).

2. Traduzindo eortázo (fazer festa) – alude a popularidade da festa. Neste sentido celebrar é sempre uma ação comunitária (cf. Ex 12,14; 23,14; Lv 23,39.41).

3. Traduzindo caléo (convocar) – acentua o aspecto do chamado de Deus para que o povo se reúna a fim de celebrar (cf. Lv 23,24).

4. Traduzindo sabbatízo (guardar o sábado) – indica reinteração e continuidade na ação celebrativa, para que o povo se lembre de tudo o que foi feito e ordenado pelo Senhor (cf. Lv 23,32; 2Cr 36,21).

5. Traduzindo ágo (levar a efeito) – significa a ação celebrativa, o ritual, a conduta dos participantes (cf. 2Mc 2,12; 6,11).

Nos Padres latinos da Igreja, as palavras celebrare e celebratio são usadas algumas vezes para se referir às festas e aos espetáculos, sempre em sentido coletivo e popular, e outras aplicando-as aos atos próprios dos cristãos.

Tertuliano transfere esse vocabulário aos sacramentos cristãos e Santo Ambrósio atribui um conteúdo mais especificamente litúrgico ao verbo celebrare.

São Cromácio de Aquiléia, oferece uma idéia da celebração como representação aqui e agora de toda a salvação anunciada no Primeiro Testamento e realizada por Cristo.


APROXIMAÇÃO DO CONCEITO DE CELEBRAÇÃO

Para alguns antropólogos, celebração é um meio interpessoal de relação e de encontro, ou seja, uma manifestação comunitária. A celebração congrega os indivíduos constituindo-os num organismo, numa comunidade. Ela afeta as pessoas e seus sentimentos, de modo que o acontecimento celebrado se transforma numa expressão religiosa.

A celebração polariza a totalidade da pessoa em torno de um determinado valor religioso. Ao transformar o significado de todos os elementos integrantes (espaço, tempo, símbolos, etc.), transmite a mensagem religiosa.

A celebração tem o poder de unificar um grupo, de formar uma comunidade com as pessoas que se reúnem para compartilhar a experiência religiosa. A celebração pode atuar como um catalisador moral do grupo, como instrumento educativo. Ainda na linha antropológica, outros põem ênfase na linguagem celebrativa e definem a celebração pela linguagem e pela expressão.

“Celebração é uma linguagem onde pulsa uma misteriosa expressão, dificilmente explicável” (V. Martín Pindado, 1979).

Isto significa que a celebração é uma realidade não reduzível a conceitos, a termos racionais, a normas lógicas, mas é fundamentalmente ação, vida. Quando a ênfase é conceitual, lógica e racional, temos como resultado uma celebração fria, verbalista, apagada e sem expressividade.

Dentro desta linha antropológica, há autores que afirmam que celebrar é brincar, folgar, fazer festa.

• Celebrar é brincar, ou seja, atividade lúdica do cristão;
• Celebrar é folgar, é lazer, é intuição, gozo, antecipado da eternidade;
• Celebrar é fazer festa, com tudo o que festa significa, é deleite do espírito, é liberdade, é contemplação da beleza, etc.

A celebração é uma categoria que pertence à dimensão sensível e visível da liturgia cristã. Odo Casel, primeiro teólogo da liturgia, diz que a celebração é uma epifania, uma manifestação do divino na ação ritual. Para a fenomenologia, a celebração é uma hierofania, ou seja, uma mediação que torna possível a comunicação entre o mistério e o homem, e a participação deste na energia salvadora que se faz presente. Para O. Casel, o elemento principal da celebração é a presença-atualização da salvação na ação ritual.

Na celebração cristã o ato sacramental é sempre o mesmo, ainda que o aspecto do mistério comemorado seja diferente. A celebração é atualização a obra da nossa Redenção (cf. SC 2). O hoje da celebração e da presença renovadora do mistério da salvação confere à liturgia cristã um valor escatológico, ou seja, põe o homem em contato com a eternidade.

O QUE É UMA CELEBRAÇÃO?

Devemos antes afastar duas eventuais confusões: a primeira que identifica liturgia com celebração, sem mais nem menos, e a segunda que confunde celebração com cerimônia. Liturgia é o culto da vida inteira dos crentes, e celebração é o momento simbólico, ritual e festivo.

Celebração é um acontecimento sacramental. Não é a mesma coisa que cerimônia. Cerimônia é um elemento da celebração, uma ação externa sujeita a uma norma ou costume. Infelizmente por muito tempo se identificou liturgia com rubrica e com cerimônia a tal ponto, de bastar que se saiba apenas as rubricas da cerimônia liturgia.

Podemos definir a celebração como o momento expressivo, simbólico, ritual e sacramental, ou seja, um ato que evoca e torna presente, mediante palavras e gestos, a salvação realizada por Deus em Jesus Cristo, com o poder do Espírito Santo. A celebração tem o caráter de ato, ação expressiva, ritual, torna presente a salvação. Na celebração produz-se um diálogo entre Deus e o homem, entre Cristo e a Igreja.

A celebração possui três dimensões:

a) Dimensão mistérica;
b) Dimensão ritual;
c) Dimensão existencial.

A dimensão mistérica: é intervenção, presença e atuação de Deus na vida de seu povo e na vida pessoal de cada participante da ação litúrgica. É o mistério de Cristo, núcleo da liturgia cristã.

A dimensão ritual: a celebração é ação de uma assembléia reunida, que através de ritos e de fórmulas manifestam e realizam aquilo que se está celebrando.

A celebração consiste na evocação e no anúncio de um fato de salvação e na atualização desse fato aqui e agora. Na celebração a Igreja atua como intercessora e mediadora da salvação.

A celebração como ação concreta de uma assembléia, compreende quatro elementos:

1) Um acontecimento que motiva a celebração;
2) Uma comunidade que se faz assembléia;
3) Uma situação festiva que envolve a todos;
4) Um ritual que é executado.

Um acontecimento deve ser algo digno de ser celebrado. A comunidade, no ato de se reunir, se converte em assembléia cultual – Igreja corpo de Cristo. A situação festiva é algo mais que o momento em que se celebra o acontecimento – o dia festivo, é, antes de tudo, um ambiente que impregna e caracteriza tanto a comunidade que celebra como os atos rituais da ação comum e que se exterioriza nos gestos, nos cantos, nas vestes... O ritual é o conjunto de gestos, palavras, ações e objetos que intervém na ação celebrativa tendo em vista a evocação e a atualização do acontecimento celebrado. O que está em jogo no ritual celebrativo da liturgia não e a expressividade ou a mensagem de alguns ritos e gestos, mas a correspondência do ritual com o acontecimento que se está celebrando.

O acontecimento celebrado é sempre Cristo, sua vida e sua obra, especialmente sua morte e ressurreição; a comunidade é sempre a Igreja; a situação festiva é a alegria de saber que o Senhor está presente e atuante, o ritual é sempre uma ação sacramental.

A dimensão existencial: a celebração não apenas leva a comunidade reunida a participar do acontecimento salvífico, mas se torna um programa de vida, manifesta-se como um motivo de compromisso de vida. Os crentes devem viver o que celebram. A celebração deve fazer com que a Igreja e seus fiéis continuem sendo no mundo um sinal sagrado. A liturgia se caracteriza por fazer da vida cristã um ato permanente de culto ao Pai, cujo momento culminante é o momento celebrativo.


ESTRUTURA DA CELEBRAÇÃO

A celebração é uma ação e uma possibilidade de encontro com o mistério da salvação. Ela deverá reunir uma série de condições espirituais e funcionais que possibilitem a participação no mistério e no fruto da celebração.

A estas condições estão: o ritmo da ação, a participação ativa e consciente de toda a assembléia, o exercício de todas as funções e ministérios no interior da celebração. De todas as condições, vamos nos ater no ritmo da celebração enquanto expressão da estrutura interna da ação celebrativa. Chamamos de ritmo da celebração a organização dinâmica e harmoniosa de todos os elementos que intervêm na celebração, o que dá unidade, equilíbrio de todas as partes e progressão dos diferentes momentos.

Os livros litúrgicos se limitam a assinalar os diferentes passos da celebração no ordo ou ritual. Porém o ritmo não depende dos livros, mas sim dos que celebram, seguindo fielmente o ritual, com todas as indicações e rubricas. A estrutura da celebração sustenta todo o conjunto da ação celebrativa e coordena os diferentes elementos e partes. O ritmo da celebração deve deixar evidente a estrutura prévia que é dada pelo ritual.


ESTRUTURA LÓGICO-TEOLÓGICA DA CELEBRAÇÃO

Vamos agora destacar os principais elementos que estão entranhados em toda ação litúrgica cristã e que vêm à tona em determinados momentos da celebração.

São eles:

a) Anamnese;
b) Epiclese permanente;
c) Doxologia;
d) Mistagogia contínua.

A) ANAMNESE

Toda celebração é uma lembrança sagrada do acontecimento salvífico. Neste sentido é anamnese permanente.

1. É anamnese de Deus para com seus filhos, porque lembrou-se da sua misericórdia (cf. Lc 1,54);
2. É anamnese de Cristo para com o Pai, porque intercede em nosso favor (cf. Hb 7,25);
3. É anamnese do Espírito Santo, que nos recorda todas as coisas ditas pelo Senhor (cf. Jo 14,26).

A Igreja, na celebração, faz o memorial e recorda os principais fatos salvíficos que culminam no mistério pascal. O acontecimento da páscoa do Senhor, objeto da anamnese recíproca entre Deus e os homens, ocorreu uma vez para sempre. O ritmo da celebração permite apreciar os momentos com intensidade da anamnese. A celebração, por outro lado, situa-se no centro do tempo litúrgico.

B) EPICLESE PERMANENTE

Em toda celebração litúrgica está presente o Espírito Santo, enviado por Cristo. Toda celebração é epiclese, isto é, invocação da presença santificadora da Santíssima Trindade e não somente do Espírito Santo. O momento cume da epiclese é a invocação da oração eucarística ou das demais orações sacramentais.

A epiclese é:

a) A invocação trinitária que abre a celebração;
b) A proclamação da Palavra de Deus acompanhada de aclamações e orações;
c) A súplica da assembléia (oração dos fiéis);
d) A invocação sacerdotal da oração eucarística e de outras fórmulas;
e) O gesto da paz;
f) Os gestos sacramentais (imposição das mãos, a unção, etc.).

C) DOXOLOGIA

A celebração é doxológica, ou seja, é louvor, culto, adoração, glorificação,reconhecimento e ação de graças, resposta de fé. A doxologia como elemento estrutural e básico está presente em toda e qualquer ação litúrgica. A doxologia é sempre proclamação da glória do Pai mediante Jesus Cristo no Espírito Santo. Toda celebração é louvor ao Pai por Jesus Cristo no Espírito.

A doxologia pode ser notada especialmente:

• No hino ou canto inicial que abre a celebração, especialmente a Liturgia das Horas;
• No hino de louvor, ou Glória;
• No salmo responsorial e em algumas ocasiões no canto do aleluia;
• Nas aclamações que acompanham as preces ou fórmulas (oração eucarística, bênçãos, etc.);
• Na grande doxologia que encerra a oração eucarística;
• Na ação de graças depois da participação eucarística e nas aclamações em alguns ritos (consentimento matrimonial, etc.).

D) MISTAGOGIA CONTÍNUA

A liturgia é iniciadora na ação celebrativa, nas atitudes com as quais é preciso celebrar. Por meio da liturgia a Igreja procura introduzir os fiéis na vivência interior e profunda da salvação. A mistagogia, como já vimos, é a iniciação no mistério celebrado, através dos ritos.

A celebração é toda ela mistagógica, no sentido de que é uma ação que leva todos os participantes a viver o mistério de Cristo. A celebração na perspectiva da mistagogia, possui um ritmo na condução da assembléia ao interior do mistério celebrado.

A celebração possui uma dinâmica que leva a comunidade celebrante a vivenciar o mistério por meio dos ritos, dos gestos, das palavras, dos símbolos, etc.

Alguns elementos particulares significativos do ponto de vista mistagógico:

a) As saudações litúrgicas;
b) Os momentos penitenciais;
c) A liturgia da Palavra;
d) A homilia;
e) Bênção da água ou do óleo, etc.;
f) Os cantos que acompanham determinados momentos;
g) As admoestações presidenciais; etc.

A mistagogia ajuda a executar o que o Senhor mandou: “Fazei isto em memória de mim”.


PARA CONCLUIR NOSSA REFLEXÃO...

A celebração é atualmente um dos conceitos mais ricos da liturgia. Há nos elementos da celebração uma relação que os une:

• O acontecimento;
• A reunião da assembléia;
• O clima festivo;
• A escuta da Palavra;
• Os cantos e orações;
• A ação celebrativa com sinais, gestos e símbolos;
• O espaço e o tempo.

A celebração se desenvolve seguindo um ritmo de acordo com as estruturas que sustentam toda ação celebrativa. Existe um fio condutor em toda celebração:

1. A memória do acontecimento;
2. A súplica da presença e ação de Deus;
3. O louvor e a ação de graças;
4. E a iniciação ao mistério celebrado.

Foi o que vimos quando tratamos da anamnese, epiclese, doxologia e mistagogia. Dentro dessa estrutura fundamental inserem-se as formas litúrgicas concretas: leituras, cantos, preces, aclamações, gestos, ritos, etc. O conjunto de todas elas e seu funcionamento, descritos nos rituais, não são mais que um meio ao serviço dos fins da celebração, ou seja, dos fins da própria liturgia.

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