segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011


«O mistério da Páscoa:
a novidade do Verbo encarnado»
Sobre a Páscoa


Melitão de Sardes


Foi lida a Escritura a respeito do êxodo hebreu, foram explicadas as palavras do mistério: como a ovelha foi imolada e o povo foi salvo.

Compreendei, pois, caríssimos! É assim
novo e antigo,
eterno e temporal,
corruptível e incorruptível,
mortal e imortal
o mistério da Páscoa:
antigo segundo a Lei,
novo segundo o Verbo;
temporal na figura,
eterno na graça;
corruptível pela imolação da ovelha,
incorruptível pela vida do Senhor;
mortal pela sepultura, na terra,
imortal pela ressurreição dentre os mortos.

Antiga a Lei, novo o Verbo;
temporal a figura, eterna a dádiva;
corruptível a ovelha, incorruptível o Senhor,
o qual, imolado como cordeiro, ressurgiu como Deus.

Pois, como a ovelha, foi levado ao matadouro,
mas não era ovelha;
como o cordeiro, não abriu a boca,
mas não era cordeiro.

Passou a figura, persiste a realidade.

Em vez do cordeiro, Deus presente,
em vez da ovelha, um homem,
e neste homem, Cristo,
aquele que sustém todas as coisas.

Assim, o sacrifício da ovelha,
e a solenidade da Páscoa,
e a letra da Lei,
cederam lugar ao Cristo Jesus,
por causa do qual tudo sucedera na antiga Lei,
e muito mais sucede na nova disposição.

Pois a Lei se converteu em Verbo,
o antigo em novo,
ambos saídos de Sião, e de Jerusalém.

O mandamento se converteu em dádiva,
a figura em realidade,
o cordeiro em Filho,
a ovelha em homem,
o homem em Deus.

Com efeito, aquele que nascera como Filho,
e fora conduzido como cordeiro,
sacrificado como ovelha,
sepultado como homem,
ressuscitou dentre os mortos como Deus,
sendo por natureza Deus e homem.

Ele é tudo:
enquanto julga, é lei;
enquanto ensina, Verbo;
enquanto gera, pai;
enquanto sepultado, homem;
enquanto ressurge, Deus;
enquanto gerado, Filho;
enquanto padece, ovelha;
ele, Jesus Cristo,
a quem seja dada a glória pelos séculos. Amém.

Tal é o mistério da Páscoa,
como foi descrito na Lei
e como o acabamos de ler.

São Gregório Nazianzeno

«Poema sobre a Natureza Humana»



Ontem, abatido pela tristeza, sozinho e longe de todos, sentei-me à sombra de um bosque, meditando em meu coração. Gosto desse remédio nos sofrimentos, o de me entreter silenciosamente comigo mesmo. O murmúrio da brisa, junto ao chilrear dos pássaros e ao sussurro das ramagens, trazia prazer ao coração aflito. As cigarras, no alto das árvores, cantando sonoramente ao sol, acrescentavam um ruído que acabava de encher o bosque. Perto ainda, um córrego de água pura vinha banhar-me os pés e deslizava da mata como orvalho refrescante. Eu, porém, absorvido na dor, não cuidava de nada disso, pois o espírito em tais condições se recusa a qualquer prazer. Interiormente agitado, entregava-me a uma luta onde eram minhas palavras que se debatiam. Quem fui? Quem sou? Quem serei? Não sei responder claramente, como não o sabem tampouco os mais sábios que eu. Envolto por uma nuvem, ando errante sem nada possuir, mesmo em sonhos, de tudo aquilo que desejo. Sim, somos peregrinos na terra e sobre todos nós se erguem a nuvem azul da carne. Mais sábio do que eu é quem melhor sabe expulsar a mentira loquaz de seu coração.

Eu sou. Explique-se-me o que é isso. Uma parte de mim já se foi, sou outro neste instante, e outro serei ainda se continuo a existir. Nada é estável. Assemelho-me ao curso de um rio turbulento que sempre avança sem nada ter fixo. Dir-me-ás o que sou em tudo isso? Ensina-me ao menos o que sou para ti. Permaneço aqui um momento, mas cuida que eu não fuja de ti... Não atravessarás de novo o rio do mesmo modo como o atravessaste, não reverás o mortal que já viste uma vez.

Existi inicialmente na carne de meu pai, depois minha mãe me acolheu e provenho de ambos. Fui em seguida uma carne confusa, massa informe, antes que homem, sem palavras nem espírito, tendo na mãe meu túmulo.. Sim, nós estamos duas vezes no túmulo, pois nossa vida também se termina na corrupção. Esta vida que percorro, vejo que se despende anos que me trazem o funesto envelhecimento. E se, partindo da terra, sou acolhido numa vida sem fim, como se diz, vê se a vida não contém a morte, e se a morte não é para ti a vida, contrariamente ao que pensas.

Nada tenho sido. Por que sou sem cessar avassalado pelos males, como se não mudasse jamais? Pois só os males, entre os mortais, são imutáveis, inatos, inseparáveis e não envelhecem. Apenas saído do seio de minha mãe, verti a primeira lágrima; e haveria de encontrar tantas e tão grandes calamidades! Derramava lágrimas antes de tocar a vida! Ouvimos falar de uma região, como outrora Creta, onde não havia animais ferozes, e de outra isenta da neve. Mas nunca se ouviu de um mortal que deixasse esta vida sem que tristes penas o atingissem. A doença, a pobreza, o parto, a morte, o ódio, os maus, as feras do mar e da terra, as dores: eis a vida! Conheci muitos males sem alegria, mas não conheci jamais a alegria completamente isenta de sofrimento, desde o fatídico fruto que degustei e o inimigo invejoso que me marcou com o signo da amargura.

Carne, eis o que devo dizer-te, a ti, tão difícil de se curar, inimiga suave, a quem a luta jamais abate, fera atroz que cruelmente acaricias, fogo que refresca - ó coisa espantosa! Mais espantoso porém seria se acabasses por te tornares minha amiga!

E tu, ó minha alma, ouvirás por tua vez a linguagem que te convém. Quem és? donde vens? qual o teu ser? quem te estabeleceu como sustentáculo de um morto? Quem te ligou aos tristes grilhões da vida, sempre inclinada para as coisas da terra? Como foste misturada ao grosseiro, tu que és sopro? à carne, tu que és espírito? Ao pesado, tu que és leve? São qualidades que se opõem mutuamente e se combatem... Se vieste à vida, engendrada ao mesmo tempo que a carne, quanto então essa união tem sido perniciosa para mim! Sou imagem de Deus e me tornei filho da torpeza. Temo que o desejo tenha sido a causa do nascer de algo tão digno de honra. Um ser fugidio me gerou e sofreu a corrupção. Eis-me, então, homem, mas cessarei de sê-lo e me tornarei cinzas: são estas minhas últimas esperanças?

Ao contrário, se és celeste, quem és tu e donde vens? Aspiro sabê-lo, instruí-me! Se tens o sopro de Deus por origem e Deus mesmo por destino - como julgas - rejeita o vício e acreditarei em ti! Porque não convém que o puro seja maculado, mesmo levemente; as trevas não pertencem ao sol, o filho da luz não vem do espírito mau. Como és atormentada a tal ponto por Belial, tu que intimamente estás unida ao Espírito divino? Se com tal ajuda ainda te inclinas para a terra, então é grande a violência de tua maldade!

E se não vens de Deus, qual a tua natureza? Ah! temo ser presa de vão orgulho: Deus me plasmou, depois houve o Paraíso, o Éden, a glória, a esperança, o preceito, o dilúvio destruidor do mundo, a chuva de fogo, e a seguir a Lei, esse remédio escrito, e finalmente o Cristo, que uniu sua natureza à nossa para trazer socorro a meus sofrimentos através de seus divinos sofrimentos, para divinizar-me, graças a sua condição humana; e apesar de tudo isso mantenho um espírito indômito, sou como o javali furioso que se mata precipitando-se sobre o ferro!

Que bem se acha na vida? A luz de Deus? Mas as trevas invejosas e odiosas dela me afastam! Não me beneficio dela. Os maus não me dominam sob todos os aspectos? Por que, apesar de todos os meus sofrimentos, não lhes sou ao menos igual? Estou abatido até a terra, até ao cabo de minhas forças; o temor divino me fez vergar; dia e noite me abatem preocupações; o orgulho derrubou-me ao seduzir-me traiçoeiramente, calcou-me aos pés. Cita-me tudo o que há de terrível: o negro Tártaro, o Flégeton 2, os tormentos, os demônios que são os carrascos de nossa alma. Tudo isso os maus têm como fábulas, só considerando o que está diante de si e é bom. O temor do castigo não corrige sua maldade. Mas preferiria ver os maus não punidos, mesmo no futuro, antes que me afligir agora por castigos devidos à sua maldade! 3

Mas, por que então cantar assim as dores dos homens? A dor se estende sobre toda a nossa estirpe... Aliás, nem a terra é sem abalos, os ventos agitam o mar, as horas se sucedem em delírio, a noite põe fim ao dia, a tempestade obscurece o ar, o sol tira a beleza às estrelas, as nuvens tiram-nas ao sol, a lua se renova, o próprio céu não é senão parcialmente brilhante por seus astros. E tu, Lúcifer, tu estavas outrora entre os coros angélicos e, agora, invejoso, tombaste vergonhosamente dos céus!

Mas, ó Trindade, reino venerável, sê-me propícia! Nem vós escapastes à língua dos efêmeros insensatos! O Pai, primeiro, depois o Filho em sua majestade, e enfim o Espírito do grande Deus foram objetos de injúrias.

Aonde, porém, infeliz aflição, tu me arrastas? Cala-te! Acaso, tudo não é pequeno em relação a Deus? Cala-te diante do Verbo!

Não, não foi em vão que Deus me criou! (Eis que estou indo contra o que eu mesmo cantei: são as fraquezas de nosso espírito). Agora és trevas, um dia serás razão e compreenderás tudo, seja vendo a Deus, seja devorando-te pelo fogo.

Quando meu espírito me fez ouvir estes cantos, minha dor serenou E assim tarde deixei o bosque sombrio e voltei à vida, ora alegrando-me com um pensamento, ora consumindo o coração no sofrimento, o espírito sempre em luta!


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Notas:

1 Apresentamos em prosa a tradução desta famosa peça, redigida originalmente cm verso. a. P. GALLAY, o.c. Lycn, 1941.

2. Plageton : Rio do inferno, na literatura antiga

3. Outra interpretação: Meus sofrimentos são tais que, para me libertar deles, aceitaria ver impunidos os maus.

Fonte:

GOMES, C. Folch; Antologia dos Santos Padres. Ed. Paulinas, II edição revista, SP, 1985, pp. 248-250.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011


Espiritualidade Conjugal e o

Sacramento do Matrimônio


O papa João Paulo II, num discurso aos bispos americanos sobre o caráter sagrado do matrimônio dizia:

A vida da família é santificada pela união do homem e da mulher na instituição sacramental do matrimônio. Por conseguinte, é fundamental que o casamento cristão seja compreendido no seu interior sentido e seja apresentado ao mesmo tempo como uma instituição natural e como uma realidade sacramental”.

Para compreender o sacramento do matrimônio em sua plenitude, é preciso entender que o matrimônio é ao mesmo tempo:

1. Um Sacramento;
2. Um sistema de valores;
3. Uma comunidade;
4. Um itinerário espiritual.

A relação do homem e da mulher no casamento é comparada ao amor de Jesus por sua esposa, a Igreja. Jesus passou a sua vida terrena ensinando e praticando os valores fundamentais nas relações humanas. Ele primava pela importância de se constituir comunidade. Ele mesmo nos mostrou que sua relação com o Pai e o Espírito Santo é “uma comunhão de amor”.

Para compreender a relação conjugal como relação de amor, precisamos estar abertos para entender a relação de amor que há entre as pessoas da Santíssima Trindade.

Desde o princípio da criação Ele os fez homem e mulher. Por isso o homem deixará o seu pai e a sua mãe, e os dois serão uma só carne. De modo que já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu o homem não separe” (Marcos 10, 6-9).

Para o casal cristão, é importante viver o casamento como um sacramento. Num primeiro nível, o casamento sacramental entre cristãos celebra e proclama a íntima comunhão de vida e amor entre o homem e a mulher. Num nível mais profundo, a comunhão de vida e amor entre o homem e a mulher torna explícita e manifesta a íntima comunhão de vida, amor e graça que une Cristo a seu povo – a Igreja.

Recordando um pouco a história

Desde os tempos mais remotos, o casamento tem sido uma relação institucional e, a família, a unidade básica para a comunidade humana e para a continuidade e transmissão das heranças na sociedade.

A Sagrada Escritura fala constantemente deste assunto, desde Gênesis até as Bodas de Caná. Porém, foi Santo Agostinho, no século V, que enunciou os elementos e as obrigações, que mais tarde se tornam os fundamentos do sacramento.

Para Santo Agostinho, os três elementos essenciais do casamento eram: fidelidade, descendência e sacramento.

O Catecismo da Igreja Católica vai formular os três elementos essenciais da seguinte forma:

1. A unidade e a indissolubilidade do casamento;
2. A fidelidade do amor conjugal;
3. A aceitação da fecundidade. (C.I.C. 1644-1652)

Hoje em dia, acentua-se mais a importância do relacionamento mútuo e a maneira pela qual homem e mulher devem se amar e viver o cotidiano da vida conjugal.

Santo Tomás de Aquino, no século XIII, afirma que “a forma do matrimônio consiste na união inseparável dos espíritos, num casal engajado, numa amizade fiel”. Enquanto a procriação era considerada a finalidade primeira do casamento, não se dava muita importância no relacionamento do casal.

Foi somente nos últimos cinqüenta anos que o relacionamento do casal começou a ser aceito como sendo também uma finalidade primeira, de nível semelhante ao da procriação.

“Deus é amor, e os que vivem no amor vivem em Deus” (1João 4,16)

O matrimônio como comunidade

A vida da família é freqüentemente descrita como uma “Igreja Doméstica”. O matrimônio tem uma dimensão comunitária e não individual, por que só pode ser recebido por um casal, que constitui uma comunidade. Essa dimensão comunitária do matrimônio se estende à família e à sociedade. O amor conjugal é um amor para o outro e deve ser expressar na entrega total e incondicional.

Pe. Caffarel, fundador das Equipes de Nossa Senhora, movimento de espiritualidade conjugal afirma o seguinte:

Este sacramento tem a característica de o seu sujeito não ser o indivíduo como nos demais sacramentos, mas sim o casal como tal. Com efeito, ele funda, consagra, santifica essa pequena sociedade, única em seu gênero, constituída pelo homem e pela mulher casados”.

Karl Rhaner, um grande teólogo católico, descreve o relacionamento no casamento do seguinte modo:

Como é o amor de Deus que sustenta a Criação, que dá a vida e o amor aos seres humanos e que atrai tudo a Deus por esse amor, o amor entre duas pessoas pode levá-las a alcançar o outro no nível mais profundo do seu ser”.

O Código de Direito Canônico assim fala sobre o matrimônio:

“A aliança matrimonial, pela qual o homem e a mulher constituem entre si uma comunhão da vida toda, é ordenada por sua índole natural ao bem do casal, à geração e educação da prole, e foi elevada, entre os batizados, à dignidade de sacramento”.

Promessa mútua e dom da pessoa

O Sacramento do Matrimônio é uma promessa recíproca e a realização desse compromisso durante toda a vida do casal. Isso significa que o Senhor se torna presente por sua graça de uma forma nova e mais profunda no próprio momento da troca das promessas.

Significa também que Cristo se torna presente toda vez que os esposos mantiverem essas promessas, cada vez que se unirem, que se ajudarem, que se perdoarem e cada vez que se voltarem para os que estão em torno deles.

O Concílio Vaticano II, na Constituição Dogmática Gaudium et Spes, afirma que:

O Salvador e Esposo da Igreja vem ao encontro dos cônjuges cristãos pelo sacramento do matrimônio. Permanece daí por diante com eles a fim de que, dando-se mutuamente, se amem com fidelidade perpétua, da mesma forma como Ele amou a sua Igreja e por ela se entregou” (GS, 48).

Vamos pensar um pouco?

1. Na qualidade de casal, quando tomam consciência da verdadeira presença de Cristo em suas vidas?
2. Como a percepção dessa presença de Cristo na vida conjugal muda o comportamento do casal?
3. “Comprometer-se por toda a vida é pertinente e necessário ao caráter sagrado do casamento”. Reflita sobre como isso é importante e qual a resposta como casal.


Pe. Cristiano Marmelo Pinto

Encontro dos Casais com o Padre - 2010