quarta-feira, 10 de março de 2010

CELEBRAR A RETOMADA DO RUMO CERTO: EIS A QUESTÃO


Frei José Ariovaldo da Silva, OFM

1. O ser humano, “desnorteado”: chamado a retomar o rumo de Deus

De repente, o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus e vivendo num paraíso (cf. Gn cap. 1 e 2), se viu sem rumo, sem norte (“desnorteado”!), desequilibrado, muito inseguro, frágil e, ao mesmo tempo, prepotente, violento (e até mortalmente violento!), egoísta, dado à corrupção de todo tipo, sem serenidade na convivência social, muito confuso... É o que transparece já a partir das primeiras páginas a Sagrada Escritura (cf. Gn cap. 3, 4, 6, 7, 11, 19, 27,12ss etc.).

No meio dessa gente, sempre tem alguém que se salva, que se mantém no rumo de Deus. É o caso de Noé e sua família, com quem Deus chega a fazer aliança (cf. Gn cap. 9). É caso de Abraão que deixa sua terra para seguir o rumo de Deus, e Deus faz uma aliança também com ele (cf. Gn cap. 12 e 17). É o caso, depois, de inúmeros descendentes de Abraão que, no meio de dificuldades e contratempos, se esforçam por se deixar conduzir pelo Senhor. Deus, para eles, vai sendo percebido e assumido como o rumo certo de uma vida realizada e feliz. E Deus os acolhe amorosamente.

Lendo as páginas da Bíblia, vemos como Deus vai se revelando como o verdadeiro rumo para o ser humano. Mostrou-o quando, “ouvindo o clamor do povo” (cf. Ex 3,7-10), operou através do seu servo Moisés a libertação da escravidão do Egito (cf. Ex cap. 12 a 15). Mostrou-o, sustentando o povo na caminhada pelo deserto (cf. Ex 15,22-18,27). Mostrou-o, por ocasião da aliança do Sinai (cf. Ex 19 e 20), inclusive prometendo: “Se vocês realmente ouvirem minha voz e guardarem a minha aliança, serão minha propriedade exclusiva dentre todos os povos. De fato, é minha toda a terra, mas vocês serão para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (cf. Ex 19,3-6). Mostrou-o, quando amorosamente acolhia de volta o povo que, eventualmente, resolvia tomar outro rumo e depois se arrependia. E assim por diante...

Sobretudo através dos sábios e profetas, Deus continuou se mostrando, insistente e repetidamente, como sendo o rumo mais certo para o futuro mais certo. E sempre pronto a acolher amorosamente quem se “desnorteou”. Por isso, exclama o salmista: “Bendize, ó minha alma, ao Senhor!... Ele perdoa tuas culpas todas, e cura todas as tuas enfermidades. Ele resgata do fosso tua vida e te coroa de misericórdia e compaixão... O Senhor é compassivo e clemente, lento para a cólera e rico em misericórdia” (Sl 103,1.3-4.8).

Na voz dos profetas vemos constantemente o apelo: Quem tomou outro rumo, volte para o rumo de Deus, pois ele não rejeita ninguém. E quem está no rumo de Deus, não tome outro rumo. A experiência mostra que não vale a pena enveredar por outro. Amor, bondade, perdão, justiça, misericórdia, solidariedade, são algumas características do rumo de Deus. E Deus ainda vai dar a prova final (quando vier o Messias) de que o seu é o rumo mais certo.

2. Peguem o rumo de Deus, porque o seu Reino está próximo!

Assim, aproximando-se o ponto alto da história da salvação de Deus, aparece o profeta João Batista, pregando sobre Deus lá no deserto. E avisava: “Convertam-se porque está próximo o reino dos céus” (cf. Mt 3,1-12; Mc 1,1-8; Lc 3,1-20; Jo 1,19-28). Em outras palavras: Mudem de rumo! Peguem o rumo de Deus, porque a expressão máxima deste rumo está muito próxima de nós: o Messias!

Muita gente, sobretudo o povo mais humilde, passou a acreditar naquilo que João ensinava e, realmente, enveredava pelo rumo de Deus, procurando viver uma vida de solidariedade, honestidade e respeito para com as pessoas. E para simbolizar esta mudança de rumo (entrando – mergulhando – “de cabeça” no rumo apontado pelo profeta) com o conseqüente perdão dos pecados, as pessoas eram batizadas (isto é, mergulhadas) nas águas do rio Jordão. João, no entanto, alertava: Atenção, pessoal! Eu não sou o Messias, não. Eu mergulho vocês na água. Mas, aquele que vem depois de mim, muito mais forte do que eu, este vai mergulhar (batizar) vocês no Espírito Santo. Em outras palavras, ele vai mergulhar vocês “de cabeça” para dentro do sentido máximo do rumo de Deus, que é o próprio Espírito de Deus que nos acolhe e nos perdoa.

Perguntas para reflexão pessoal ou em grupos:
1. Olhando para a Bíblia, em que momentos as pessoas se desviaram do “rumo” proposto por Deus?
2. Qual a atitude de Deus Pai diante dos erros da humanidade?
3. E hoje? Quando e como nós nos desviamos do rumo?

3. Jesus e sua páscoa: revelação e presença vitoriosa do rumo reconciliador de Deus

Vimos no artigo anterior que João Batista pedindo a conversão e batizando. E não há de ver que o próprio Jesus, solidarizando-se com todo aquele povo, se faz batizar nas águas do Jordão, (cf. Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22; Jo 1,29-34)! E o que acontece? Aquele mergulho simbólico nas águas nos fala de Jesus como alguém nítida e totalmente mergulhado no Espírito de Deus. Tão mergulhado está, que nele não podemos ver outro senão o próprio Filho de Deus, o verdadeiro “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Já no início de sua missão, o próprio Jesus anuncia: “Completaram-se os tempos, está próximo o reino de Deus, convertam-se e creiam no Evangelho”.

E como aparece, na prática, que Jesus é o próprio Filho de Deus e, portanto, a expressão máxima do rumo de Deus? Pela sua radical solidariedade com o ser humano. Pela sua encarnação, vida, ações, palavras, sofrimento, morte, ressurreição e dom do Espírito, nós o vemos mergulhado “de cabeça” no abismo da nossa condição humana cheia de anjos e demônios, para nos libertar do pecado e da morte e nos reconciliar com Deus. Assim sendo, ele é o próprio rumo de Deus que nos liberta para a plena realização do ser humano: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (cf. Jo 14,1-14).

Aos que acreditam nesse Jesus e o assumem como o rumo mais certo, ele os perdoa e os cura, pois, sendo Filho de Deus, tem poder para isso (cf. Mc 2,1-12; 2,13-17; Lc 7,36-50; Jo 8,3-11). A Zaqueu ele anuncia: “Hoje a salvação entrou em sua casa”. É que Zaqueu, “chefe dos publicanos e rico”, considerado um “pecador”, vendo Jesus e acolhendo-o “com alegria” em sua casa, resolveu pegar o rumo de Deus, com a promessa de reparar os danos causados aos outros (cf. Lc 19,1-10). A parábola do Filho Pródigo representa bem a história de quem (podemos pensar no ouvinte da Palavra), ao perceber-se de repente “desnorteado” e “sem rumo”, retoma o rumo da casa do Pai e se vê amorosa e festivamente acolhido pelo Pai (cf. Lc 15,11-32).

A páscoa de Jesus (paixão, morte, ressurreição, ascensão e dom do Espírito) é a prova mais nítida e contundente da certeza do rumo reconciliador de Deus. Prova esta que foi transmitida aos apóstolos no dia da páscoa, para que a passassem adiante. Foi quando o ressuscitado soprou sobre eles dizendo: “Recebam o Espírito Santo. Se vocês perdoarem os pecados dos homens, serão perdoados. Se não lhes perdoarem, não serão perdoados” (Jo 20,22-23). E Pedro (após a “explosão do Espírito Santo” na festa de Pentecostes), depois daquele longo discurso falando da ressurreição de Cristo (cf. At 2,1-36), dá uma significativa resposta ao povo que indagava sobre o que então devia ser feito: “Arrependam-se e cada um de vocês seja batizado no nome de Jesus para a remissão dos pecados e vocês receberão o Espírito Santo” (At 2,38). Em outras palavras: Convertam-se, isto é, mudem de rumo; enveredem pelo novo rumo que definitivamente se instaurou pela páscoa, o do Reino de Deus. E como símbolo desta decisão de vocês, pelo qual vocês também são perdoados e admitidos no Reino, sejam batizados (mergulhados na água) em nome de Jesus Cristo.

Foi o que aconteceu, daí para frente. Como símbolo da conversão e entrada no rumo de Deus, e o conseqüente perdão dado por Deus por força da Páscoa, a pessoa era mergulhada na água. Inclusive, para que a decisão pudesse ser a mais madura possível, logo foi se instituindo nas comunidades cristãs um tempo de intenso exercício de conversão e acolhida do dom de Deus (período de catecumenato) antes de a pessoa assumir o rumo de Cristo dentro da comunidade eclesial.

Perguntas para reflexão pessoal ou em grupos:
1. Por que Jesus quis ser batizado?
2. Qual a atitude de Jesus para com os pecadores? O que mais lhe chama a atenção?
3. O que a realidade da Páscoa de Jesus, sua morte e ressurreição, tem a ver com a nossa reconcição?

Fonte: Liturgia em Mutirão III - CNBB
http://www.cnbb.org.br/site/component/docman/cat_view/236-liturgia-em-mutirao-iii

O SACRAMENTO DA RECONCILIAÇÃO

Frei Faustino Paludo, OFMCap

1. O Sacramento da conversão

A reconciliação é uma meta. As pessoas buscam incansavelmente a paz. Mas, para alcançá-la, é necessário um penoso caminho de conversão, de mudanças e de transformações. A verdadeira reconciliação começa no coração de cada pessoa. Isto é, o convite à conversão exige uma mudança de rumo. Contudo, o processo de mudança não afeta exclusivamente o indivíduo, mas tende a expandir-se aos demais – à comunidade e à sociedade.

No processo de conversão atuam diversos fatores: a) a consciência que quer dar um fim ao que está errado ou ao que desvia do rumo certo; b) a necessidade de se corrigir e reorganizar a vida em vista de um novo sentido e de uma nova prática; c) o pressuposto de que Deus está na origem da vida do ser humano e de que o amor misericordioso de Deus é quem dá sentido à existência humana. Converter-se é voltar o coração para Deus (cf Lc 15). É deixar-se reconciliar por Ele (2Cor 5,20) É inserir-se na dinâmica da Aliança. É participar do amor de Deus e ser testemunha da santidade de Deus na comunidade eclesial e no meio em que vive. Converter-se significa abandonar a antiga situação e abrir-se para a nova realidade de vida.

Já no Antigo Testamento Vemos o próprio Deus – por intermédio de seus profetas e mensageiros – convidando o povo à conversão (Sl 4,3; Sl 94,8; Is 44,22; Jr 18,11; Os 6,1). A conversão significa retorno ao Senhor, e, consequentemente, a renúncia ao mal, mudando o próprio modo de viver. O Salmo 51/50 oferece uma síntese da conversão e da misericórdia de Deus. A conversão se traduz em inúmeras práticas penitenciais.
A pregação de Jesus está centralizada no anúncio da conversão (metanóia), da penitência, como única via de ingresso e participação no reino de Deus e como única via de salvação. Não é por acaso que Jesus inicia seu ministério público convidando ao arrependimento: “Convertei-vos porque o reino de Deus chegou” (Mt 4,17; Mc 1,15). É um apelo que reflete a necessidade de colocar-se na dinâmica de quem acolhe a boa nova de salvação. A conversão é o movimento que, por um lado, significa abandonar o “velho homem” e, por outro, revestir-se do “novo” (Rm 6,6; Cl 3,9-10). Converter-se é tornar-se novo na opção de vida pela verdade e a autenticidade. Mais do que uma ação isolada, a mudança sugere a imagem “do caminho”. Isto é, algo dinâmico, que precisa ser feito, construído segundo os critérios apontados pela Palavra de Deus. “O caminho se faz caminhando”.

Notemos que a conversão é dom e graça de Deus. Mas também requer exercício e empenho no sentido de responder fielmente às exigências do Espírito e à identificação com Jesus Cristo, para o louvor e a gloria de Deus Pai. Neste prisma, o sacramento da Penitência celebra o encontro do filho pecador com o amor misericordioso do Pai. Encontro que renova a vida batismal ferida pelo pecado. Encontro que faz crescer no seguimento de Cristo e do seu Espírito. A conversão sincera é o pressuposto necessário para uma autêntica celebração do sacramento da Penitência.

Perguntas para reflexão pessoal ou em grupos:
1. A reconciliação é uma meta a ser alcançada. O que fazer para atingi-la?
2. O que exige uma verdadeira conversão?
3. Qual é o pressuposto básico da celebração da Penitência?
4. Vamos rezar o Salmo 51(51) com os passos da leitura orante?

2. Sacramento da reconciliação

Muitos se perguntam, hoje, pelo significado do sacramento da reconciliação no horizonte de uma sociedade onde a convivência harmônica e pacífica está se deteriorando face ao crescimento da violência, onde a vida e a dignidade das pessoas são ameaçadas.

Ora, o sacramento da Penitência está justamente enraizado na condição humana e na complexa realidade da convivência social. As pessoas ao mesmo tempo que aspiram viver em paz, reconciliadas consigo e com os semelhantes, experimentam a amargura das tensões e dos conflitos. Sentem-se contrariadas frente às adversidades e às rupturas. Em meio às contradições e frustrações, a reação imediata é o isolamento. De fato, quem se dedica ao ministério da Reconciliação, constata que há “muita solidão”! Pessoas que desejam avidamente ser ouvidas em seus desabafos. Contudo, da experiência do sentir-se só e ferido, ecoa o grito pela busca de uma nova realidade, da mudança de vida. É preciso mudar! Ninguém, em sã consciência, consegue viver só e em meio a conflitos e transgressões por muito tempo. “Levantar-me-ei e irei ter com meu pai” (Lc 15,18)!

O Sacramento da Penitência e da Reconciliação é a festa do reencontro e do amor misericordioso do Pai. É a celebração do perdão e da esperança. O pedido de perdão resgata o sentimento confiante e possibilita a abertura de novos horizontes de relações reconciliadas. O pedir perdão encerra um dinamismo humano muito maior que a simples oração interior, pois insere o ser humano na dinâmica da relação comunitária. “Pai pequei contra Deus e contra ti, já não mereço que me chamem teu filho” (cf Lc 15,21).

Mas, o “pedir perdão” requer a disponibilidade de alguém que se faça “todo escuta”, isto é, acolha com benevolência, ouça atenciosamente, permitindo à pessoa abrir seu coração. Saber ouvir é atitude que brota da bem-aventurança da misericórdia e, do reconhecimento da grandeza da pessoa do outro, apesar de seus limites (cf Jo 8,10-11). Nesta hora, a interlocução (o diálogo) reveste-se de significativa importância. Quem pede perdão, também espera ouvir uma palavra reconciliadora, ou seja, uma palavra que lhe dê a certeza do perdão e da paz. O perdão faz brilhar os olhos e exultar o coração ante as palavras: “irmão (a) tu estás perdoado (a)! Tu és amado (a) por Deus e liberto (a) em Jesus Cristo pela força de seu Espírito. Vai e viva em paz com todos!”
O sacramento da Reconciliação é a celebração do amor incondicional de Deus que se traduz em dom de perdão e de paz. No Sacramento da Penitência, os fiéis “obtêm da misericórdia divina o perdão da ofensa a Deus, e ao mesmo tempo são reconciliados com a Igreja que eles feriram pelo pecado e que colabora para sua conversão com a caridade, o exemplo e as orações” (RP. Introdução. 4). O importante é resgatar a comunhão com Deus e com a Igreja, olhando igualmente para a grande reconciliação com o universo, em vista da cultura de reconciliados (cf. Conclusões do Seminário sobre Reconciliação, publicado no Subsídio Deixai-vos Reconciliar, Estudos da CNBB 96, Brasília, Edições CNBB, 2008).

Perguntas para reflexão pessoal ou em grupos:
1. Como as pessoas reagem e convivem em meio à violência e aos conflitos sociais?
2. Quando você percebe que machucou alguém, como você reage? O que você faz?
3. Nos momentos difíceis de sua vida, o que você mais deseja? O que você busca?
4. Muita gente sente a necessidade de celebrar o sacramento. Você sabe como, onde, quando e com quem celebrá-lo?

3. A celebração do Sacramento da Reconciliação ao longo da história

A Tradição da Igreja afirma que “Cristo instituiu o sacramento da Penitência para todos os membros pecadores de sua Igreja, antes de tudo para aqueles que, depois do batismo, cometeram pecado grave e com isso perderam a graça batismal e feriram a comunhão eclesial” (Catecismo, 1446). Jesus edificou sua tenda entre nós (Jo 1, 14) para revelar o amor misericordioso do Pai e reconciliar a humanidade com Ele. Iniciou sua pregação conclamando à penitência: “fazei penitência e crede na Boa Nova” (Mc 1,15). Acolheu os pecadores, reconciliando-os com o Pai (Lc 5, 20; 7,48) e por fim, derramou seu sangue na cruz para o perdão dos pecados (Mt 26,28). Ao ressuscitar dentre os mortos, enviou o Espírito Santo sobre os seus discípulos concedendo-lhes o poder de perdoar os pecados (Jo 20, 19-23) e os enviou para pregar a penitência e o perdão dos pecados (Lc 24,47). Portanto, o sacramento da Penitência se enraíza na vida e na prática de Jesus.

A pregação vibrante da Boa Nova de Jesus pelos apóstolos fez com que a multidão clamasse: “irmãos, o que devemos fazer?”. Ao que Pedro responde: “arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado em nome de Jesus Cristo, para o perdão dos pecados” (At 2, 38). O batismo é o sacramento da primeira e fundamental conversão. O sacramento da Penitência representa a segunda conversão. “Salvos pelas águas do Batismo, nosso louvor se enfraqueceu pelo pecado que cometemos, mas o Sacramento da Reconciliação nos convida à penitência, nos renova na santidade” (cf Prefácio da Penitência, Missal Romano). Os Padres da Igreja consideravam a Reconciliação um “batismo laborioso” (cf. Sacramentum Caritatis, n. 20).

O processo histórico do sacramento da Penitência passou por diferentes etapas no seu desenvolvimento ao longo dos séculos. Destacaram-se três etapas: a) uma penitência longa e rígida para quem tivesse cometido os pecados graves do adultério, da apostasia e do homicídio após o batismo. Os pecadores eram afastados da comunidade e acompanhados pela oração da mesma, enquanto cumpriam longas penitências. Após demonstrarem arrependimento pelos pecados cometidos, eram reconciliados e readmitidos na comunidade e na participação eucarística. Tal penitência só podia realizaR-se uma vez na vida. Suas exigências tinham por finalidade a conversão. b) a rígida penitência pública e canônica, aos poucos, foi sendo substituída pela confissão privada e comutativa. Trata-se de uma prática dos monges da Irlanda introduzida no Continente Europeu. Os pecadores confessavam seus pecados ao bispo ou ao padre, sempre que recaíssem no pecado. Recebiam longas e pesadas penitências e somente depois de cumpridas é que recebiam a absolvição. As exigentes penitências podiam ser comutadas, isto é, substituídas por outras mais brandas, como a recitação dos salmos, peregrinações, doações etc. c) por fim, a Igreja adotou a confissão auricular. A confissão dos pecados, tanto graves como leves, era feita ao sacerdote no segredo do confessionário. O pecador declarava seus pecados, recebia uma palavra do confessor, era imediatamente absolvido e enviado ao cumprimento da penitência.

As diferentes etapas que caracterizaram o processo histórico do Sacramento da Penitência sublinham a atenção da Igreja para com seus membros pecadores que, arrependidos, desejam ardentemente retornar à comunhão com Deus e com os irmãos. Assim chegamos ao Concilio Vaticano II que pede: “o rito e as fórmulas da Penitência sejam revistos de tal forma que exprimam mais claramente a natureza e o efeito deste Sacramento” (SC 72).

Perguntas para reflexão pessoal ou em grupos:
1. Por que ainda hoje se fala “no sacramento da confissão”?
2. Buscando o sacramento da Penitência e da Reconciliação, o que mais as pessoas deveriam buscar e celebrar?
3. Como entender que Jesus Cristo instituiu o Sacramento da Penitência e Reconciliação?
4. Ler o Evangelho de João 20, 19-23.

4. A renovação do Sacramento da Reconciliação

O Concilio Vaticano II manifestou ao mundo a vontade da Igreja de se aproximar das pessoas humanas, inteirar-se de suas “alegrias e esperanças, tristezas e angústias” (Gaudium et Spes, 1) para auxiliá-las na compreensão de si mesmas, em especial, de suas tensões e conflitos. A ação mais eficaz que a Igreja pode empreender em vista da reconciliação e da unidade entre as pessoas, consiste em “buscar sem cessar a penitência e a renovação” (Ritual da Penitência (RP), n. 3). Nesta perspectiva, o Vaticano II definiu: “o rito e as fórmulas da Penitência sejam revistos de tal modo que expressem mais claramente a natureza e o efeito do Sacramento (Sacrosanctum Concilium, 72).

À luz da definição Conciliar e da caminhada pós-conciliar, o sacramento passou a ser compreendido como ação litúrgica, memorial do mistério pascal de Jesus Cristo, expressão máxima da misericórdia do Pai que, pela morte e ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo, pacificando tanto as coisas da terra como as do céu. Esta nova realidade de vida é obra do Espírito Santo que move os pecadores a se aproximarem do sacramento da reconciliação (cf RP, introdução, n. 6). A reconciliação é ação da Igreja que valoriza a pessoa e sua situação, os atos do pecador arrependido, a participação comunitária, a ação do ministro. Particular ênfase é dada à Palavra de Deus, à acolhida, à escuta e ao diálogo benevolente com o penitente, à absolvição com o gesto da imposição das mãos, à oração ou gesto de contrição e à ação de graças. Tudo para sublinhar a dinâmica da conversão, numa maior integração entre a vida penitencial e celebração da reconciliação.

O Ritual da Penitência apresenta três formas distintas de celebração: a) Rito para a reconciliação individual dos penitentes; b) Rito para a reconciliação de vários penitentes com confissão e a absolvição individuais; c) Rito para reconciliação de vários penitentes com confissão e absolvição gerais. Por fim, apresenta ainda uma série de Celebrações Penitenciais não sacramentais. Cada uma dessas formas tem seu valor. A Reconciliação individual, através do diálogo personalizado com o penitente, tem a possibilidade de considerar melhor a caminhada de fé, o engajamento comunitário e social, as necessidades e situações concretas do penitente, estimulando-o à conversão, além de favorecer ao ministro o desempenho de sua função como sacerdote, pastor, médico e guia. A Reconciliação de vários penitentes (celebração comunitária) expressa o sentido eclesial e comunitário do sacramento. Esta segunda forma, favorece a participação, a acolhida, a proclamação e a escuta da Palavra, o exame de consciência, a oração comum e a ação de graças. Esta forma destaca o valor da mediação da Igreja na graça da reconciliação. A Reconciliação com confissão e absolvição geral é reservada para necessidades e situações especiais (cf Código de Direito Canônico, cân 961).

O Ritual recomenda, no que se refere às formas individual e comunitária, que a utilização sistemática de uma não obscureça os valores da outra. A utilização das diversas formas, de acordo com o espírito do Ritual e com prudentes critérios pastorais, poderá servir para um maior aprofundamento na graça da reconciliação e evitará que se caia em práticas rotineiras. Todavia, a prática sacramental da penitência requer um planejamento pastoral que organize e articule sua celebração com critérios amplos e realistas, tendo presente o significado dos tempos litúrgicos e o ritmo espiritual da comunidade cristã.

Perguntas para reflexão pessoal ou em grupos:
1. Que motivos levam as pessoas buscarem o sacramento da Penitência? Ou o que afasta as pessoas do sacramento?
2. Quais são as formas rituais do sacramento e qual você mais procura? Por quê?
3. Como celebramos este Sacramento em nossa comunidade?

5. Sacramento enriquecido pela Palavra de Deus

“A palavra de Deus ilumina o fiel para o reconhecimento de seus pecados, chama-o à conversão e leva-o a confiar na misericórdia divina” (RP, n. 17). O atual Ritual da Penitência e Reconciliação recupera o espaço e a função da Palavra de Deus em vista da sincera conversão.

O Lecionário do Ritual foi enriquecido com inúmeros textos Bíblicos (numa média de 80 textos). Além das leituras previstas no Ritual, “podem-se, selecionar outras, segundo a necessidade e a condição das assembléias” (cf RP. P. 80).

Alguém poderia pensar que a proclamação da Palavra de Deus só seria possível na reconciliação de vários penitentes (celebração comunitária). Não! O Rito para a “reconciliação individual dos penitentes”, recomenda: “o sacerdote, se julgar oportuno, lê ou diz de cor algum texto da Sagrada Escritura que proclame a misericórdia de Deus e exorte a pessoa à conversão” (RP, n. 43). O fato da Palavra de Deus ser recomendada no rito da “reconciliação individual” realça ainda mais sua proclamação na celebração comunitária. “Convém que o sacramento da penitência comece com a escuta da palavra, pela qual Deus chama à penitência e conduz à verdadeira conversão interior” (RP 24).

Por que esse lugar privilegiado para a Palavra de Deus? O chamado à conversão feito outrora por Jesus, hoje, ressoa na Igreja. “Desde então, a Igreja jamais deixou de convidar os homens à conversão e a manifestarem a vitória de Cristo sobre o pecado pela celebração da penitência” (RP, 1).

A Palavra de Deus além de iluminar a vida, o senso de pecado e o exame de consciência, renova também a compreensão e a prática do sacramento da Reconciliação. Pois, ao mesmo tempo que questiona, restabelece a relação do Pai com o pecador arrependido. Reconcilia-o consigo mesmo e com a comunidade dos irmãos. Insere-o num novo projeto de vida marcado por relações reconciliadas e reconciliadoras.

À luz da Palavra, o encontro pessoal com Deus transformará a celebração penitencial numa proclamação de fé, numa confissão dos pecados e numa manifestação de alegria pela paz recebida. “Depois de receber o perdão dos pecados, o penitente proclama a misericórdia de Deus e lhe rende graças em breve aclamação da Sagrada Escritura” (RP 20; 29). Quando celebramos a Penitência e a Reconciliação, geralmente escolhemos textos que falem direta e explicitamente do perdão. Tudo bem, mas o Ritual sugere também outros textos que ajudam a questionar e rever toda a nossa vida cristã, nossas opções, nossos valores. Por exemplo, temos no Lecionário do Ritual o texto das Bem-Aventuranças, da Profissão de fé de Pedro, etc.

A valorização da Palavra de Deus na celebração deste sacramento, poderá se transformar num elemento fundamental para a renovação do modo de se entender o pecado, o exame de consciência, a declaração dos pecados e sua relação com a vida dos cristãos. Mais rico, mais profundo e mais sincero será o caminho de quem se deixa interpelar pessoalmente pela Palavra do Deus vivo que, na sua misericórdia, chama à conversão e à relação filial e comunitária.

Perguntas para reflexão pessoal ou em grupos:
1. O que motivou o Concílio Vaticano II valorizar a Palavra de Deus no Sacramento da Penitência?
2. Na perspectiva do Sacramento da Penitência, que apelos a Palavra de Deus nos faz?
3. Vamos escolher um dos textos bíblicos que o Ritual nos propõe e fazer juntos a leitura orante?

6. Os atos do penitente

Muitas pessoas se perguntam: “o que é necessário para uma boa celebração do sacramento da Reconciliação”? Entre os diferentes aspectos valorizados pelo Concílio, o Ritual da Penitência sublinha os atos da pessoa do penitente, ou seja, a contrição, a confissão e a satisfação (cf. RP n. 6).

Entre os atos do penitente apontados pelo Ritual, a contrição ocupa o primeiro lugar. Trata-se da dor e do arrependimento pelo pecado cometido. O arrependimento é o ato mais profundamente humano que reconstrói aquilo que o pecado destrói. O pecador, movido pelo Espírito Santo (cf RP. n. 6), toma consciência de seu pecado, experimenta a dor pela ofensa cometida e se põe a caminho em busca do perdão (cf RP n. 6). A parábola do Pai e dos Dois Filhos nos revela que o dinamismo que impulsiona à busca de vida nova não está no pecado em si, mas na percepção da graça de Deus. “Na casa do meu pai ...” (cf Lc 15, 17s). Nesta hora, o ser humano pecador não se sente só com sua culpa, mas experimenta a presença de alguém, que embora distante, o espera. A consciência do pecado, longe de afastar a pessoa humana de Deus, aproxima-se dele e a ajuda a descobrir melhor seu amor e sua graça.

No ato da confissão, o arrependimento interior é revelado pela manifestação dos pecados. Confessar os pecados com arrependimento é uma expressão humana e faz parte das exigências da reconciliação. Revelando ao confessor seus pecados, o penitente se insere na dinâmica comunitária da ação penitencial da Igreja que acolhe e perdoa o pecador sinceramente arrependido. Santo Agostinho via na confissão dos pecados a atitude da humildade do pecador arrependido e do louvor ao Deus da misericórdia. A confissão sincera dos pecados se traduz na manifestação da dor que requer acolhida, grito que faz ecoar o desejo de paz, reconciliação e comunhão com Deus e com os irmãos.

A conversão se completa pela satisfação das culpas (comumente chamada de “penitência”), pela mudança de vida e pela reparação dos danos causados (cf RP, n. 6). A ofensa impõe uma ação visível de reparação, uma prática nova de vida. As obras da satisfação “devem se constituir em ações de culto, caridade, misericórdia e reparação” (João Paulo II). Contudo, o perdão que Deus concede ao pecador é gratuito, não depende da satisfação, mas da sinceridade da conversão. O Ritual da penitência exalta o sentido da satisfação afirmando que ela repara e cura o que o pecado destrói e estraga, remedeia os efeitos do pecado e serve para renovar a vida. A satisfação se constitui num sinal externo do começo ou da retomada da vida nova, sobretudo pela prática do amor ao próximo.

Estes atos do penitente expressam e simbolizam a conversão. Embora distintos, um supõe e remete ao outro. Na perspectiva da fé, juntos devem manifestar a sincera e a profunda rejeição daquilo que gera o pecado. São atos que revelam a assimilação da boa nova: “convertam-se e acreditem no Evangelho” (Mc 1,15).

Perguntas para reflexão pessoal ou em grupos:
1. O que uma pessoa deve fazer ao desejar celebrar uma boa confissão?
2. Qual é significado de cada um dos atos do penitente?
3. Por que os diferentes atos do penitente não são independentes, mas um supõe outro?

7. O ministério da Reconciliação

Só Deus perdoa os pecados (cf Mc 2,7). Não é o padre! a obra da reconciliação, revelada por Jesus Cristo, confiada aos apóstolos e confirmada pelo Espírito Santo, é iniciativa do Pai. Ele é o “único que pode perdoar os pecados” (RP n. 8). “É Deus quem reconcilia com ele o mundo por meio de Cristo” (2Cor 5,19). São Paulo exorta: “em nome de Cristo, suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5, 20). Deus é a fonte da graça reconciliadora e do ministério da reconciliação. A Igreja, como povo de Deus, é instrumento da conversão e do perdão. Impulsionada pelo Espírito Santo, ela age de diversos modos no exercício da obra da reconciliação que Deus lhe confiou. Chama à conversão pela pregação da Palavra, intercede em favor dos pecadores, ajuda aos penitentes a fim de que reconheçam e confessem suas faltas e, assim, obtenham a misericórdia de Deus (cf. RP n. 8).

A Igreja exerce o ministério do sacramento da Penitência por meio dos bispos e dos presbíteros. Contudo, os ministros do sacramento da Penitência e da Reconciliação, em virtude do sacramento da Ordem, acolhem os penitentes e perdoam seus pecados “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (RP n. 9). Eles não são proprietários, mas servos do perdão de Deus, agindo em nome e segundo a caridade de Cristo. O ministro age sempre em nome de Jesus Cristo, o Bom Pastor e da Igreja, comunidade orante e acolhedora. Através do ministro, Jesus Cristo se encontra com o pecador arrependido e lhe comunica: “a paz esteja contigo”! Libertando-o do pecado, enche-o de luz e de alegria. Deus Pai acolhe e comunica ao penitente seu amor misericordioso. Santo Afonso afirmava que a ação primordial do ministro consistia em “tornar-se imagem do Pai celeste”. Mais do que um inquisidor, o ministro da Reconciliação, é um irmão entre os irmãos, que acolhe com gentileza, escuta com afeição, orienta com firme sabedoria e, animado pela compaixão de Cristo, proclama com largueza a Boa-Nova do perdão.

Ao ministro do sacramento da Penitência, o Ritual recomenda: acolha com benevolência e saúde amavelmente o penitente que se aproxima para confessar seus pecados; faça o sinal-da-cruz juntamente com o penitente; exorte o penitente à confiança na misericórdia de Deus; leia um texto da Sagrada Escritura que proclame a misericórdia de Deus e a conversão; ajude o penitente, se necessário, a fazer a confissão íntegra; oriente à contrição de suas culpas, recordando-lhe que ele, pelo sacramento da penitência, morrendo e ressuscitando com Cristo, renova-se no mistério pascal; sugira ao penitente, segundo a sua condição, a penitência para a satisfação do pecado e renovação de sua vida; solicite que manifeste sua contrição; proclame a absolvição, com as mãos estendidas sobre a cabeça do penitente; louve a Deus por sua misericórdia; despeça o penitente animando-o a viver em paz (cf RP nn. 41-47);

Do ministro da Penitência, além de esmerada preparação teológica e equilíbrio afetivo, requer-se comprovada consciência e experiência das realidades humanas. Ele deve primar pelo respeito e delicadeza, pelo amor à verdade e fidelidade às orientações da Igreja, para conduzir o penitente no rumo do encontro reconciliador com Deus e com a Igreja.
Seria oportuno aqui, recordar uma parte da prece de ordenação presbiteral, onde o Bispo reza sobre o ordenando: “que ele esteja sempre unido a nós, Senhor, para implorar a vossa misericórdia em favor do povo a ele confiado e em favor de todo o mundo”.

Perguntas para reflexão pessoal ou em grupos:
1. Como você entende o ministério do confessor? Que dúvidas você tem?
2. E que experiências significativas este ministério já lhe proporcionou em sua vida?
3. Sugerimos estudar este artigo juntamente com o padre de sua comunidade e dialogar com ele sobre este ministério.

Fonte: Liturgia em Mutirão III - CNBB
http://www.cnbb.org.br/site/component/docman/cat_view/236-liturgia-em-mutirao-iii