sábado, 29 de janeiro de 2011




O Espírito Santo na Liturgia


Pe. Gregório Lutz, CSSp
(Revista Vida Pastoral – Setembro-Outubro de 1998)


Ao abordar um assunto que deve ser aprofundado, normalmente convém num primeiro momento, esclarecer os conceitos que ocorrem no título ou tema. Em nosso caso, deveríamos explicar o sentido dos termos “Espírito Santo” e “Liturgia”, para depois poder refletir sobre o Espírito Santo na Liturgia. No entanto, já que a presente reflexão será apresentada dentro de um conjunto de artigos sobre o Espírito Santo, certamente pode ser dispensado tal esclarecimento sobre o Espírito Santo. A Liturgia, por sua vez, não pode ser entendida fazendo abstração do Espírito Santo. Particularmente numa análise da origem da liturgia isso fica evidente. Por isso contemplaremos logo o nascimento da liturgia cristã e como ele foi vivida na Igreja apostólica. Sem analisar detalhadamente a história da liturgia sob o aspecto pneumatológico, deter-nos-emos mais no Concílio Vaticano II, por significar uma volta às fontes, sobretudo bíblicas, da Liturgia. Numa segunda parte deste trabalho, descobriremos a presença e ação do Espírito Santo na liturgia de hoje; analisando dimensões e elementos gerais e as diversas celebrações, também o Ano Litúrgico, a Piedade Popular e, finalmente, a inculturação. Ficará evidente nesta caminhada que a liturgia é um permanente pentecostes.

II. O Espírito Santo na Liturgia, conforme a Bíblia e a História

1. O Espírito Santo na origem da Igreja e da Liturgia

O Concílio Vaticano II descreve a Liturgia como um momento da história da salvação. Depois de ter salientado o ponto culminante desta história, quer dizer, a paixão, ressurreição e ascensão do Senhor, o mistério pelo qual Cristo, morrendo, destruiu a nossa morte e, ressuscitando, recuperou a nossa vida, o Concílio constata: “Do lado de Cristo dormido na cruz nasceu o admirável sacramento de toda a Igreja” (SC 5). A seguir, o Concílio diz que, portanto, o Mistério Pascal não deve ser apenas anunciado, mas, para levar a efeito este anúncio, ele deve também ser celebrado na Liturgia (cf. SC 6).

Vê-se aqui com evidência a origem da Igreja e da Liturgia na morte de Jesus, como esta é descrita no evangelho de São João. A Igreja nasceu do lado aberto de Jesus, jorrando sangue e água (cf. Jo 19,33s). Na iconografia esta cena freqüentemente é representada da seguinte maneira: do lado aberto do Senhor jorram o sangue e a água para dentro de um cálice, segurado por uma mulher que está sozinha debaixo da cruz. Esta mulher não é simplesmente Maria, a mãe de Jesus, mas a representação da Igreja. O cálice lembra – assim como o sangue – particularmente a Eucaristia. No entanto, jorrou também água, e esta lembra especificamente o Batismo. O Batismo e a Eucaristia eram, na época apostólica, sem dúvida, os momentos mais intensos da vida da Igreja, do mesmo modo como eles são hoje para nós os sacramentos principais. Assim se vê portanto, a origem dos Sacramentos e da Liturgia junto com a origem da Igreja, e o nascimento da Igreja com a origem da Liturgia.

O simbolismo do rio que jorra do lado aberto de Jesus, todavia, não se esgota ai. Conforme São João relata no seu evangelho (7,37-39), Jesus tinha prometido rios de água viva, nos quais o evangelista vê o dom do Espírito Santo que só podia ser dado quando Jesus tivesse sido glorificado. Vejamos o que afirma o texto do quarto evangelho: “No último dia da festa, o mais solene, Jesus, de pé, disse em alta voz: ‘Se alguém tem sede, que venha a mim, e beba quem crê em mim!’ – conforme a palavra da Escritura: Do seu seio jorrarão rios de água viva. Ele falava do Espírito que deviam receber aqueles que tinham crido nele; pois não havia ainda Espírito, porque Jesus não fora ainda glorificado” (Jo 7,37-39). Lembremos que, conforme a mais antiga tradição de interpretação, “seu seio” é o seio de Jesus. A glorificação de Jesus aconteceu para São João na Cruz, pois, aludindo a sua ascensão, Jesus diz na conversa noturna com Nicodemos, que o Filho do Homem deve ser levantado, como Moisés levantou a serpente no deserto (cf. Jo 3,13s). Ora, sendo exaltado na cruz, jorraram do lado de Jesus rios de água viva, que simbolizam o Espírito santo. Nesse contexto da doação do Espírito Santo na hora da exaltação na cruz podemos também entender as palavras com as quais São João descreve a morte de Jesus: “... e entregou o espírito” (Jo 19,30). Já que quase sempre nas afirmações do quarto evangelista devemos contar com um segundo sentido profundo, além do primeiro óbvio, certamente não se pode excluir que São João, com essas palavras, tenha querido dizer também que Jesus deu o Espírito prometido, além de ter entregue sua vida nas mãos do Pai.

O evangelho de São João não conhece pentecostes como dia da vinda do Espírito Santo e do nascimento da Igreja. Para ele também o último ato da Páscoa de Jesus, da sua passagem deste mundo para o Pai, que é a doação do Espírito Santo, coincida com a Páscoa da morte e ressurreição. No entanto, no evangelho de São João não falta totalmente um desdobramento da Páscoa, da sua paixão e glorificação e da doação do Espírito Santo. Pois, no dia da ressurreição, Jesus aparece vivo no meio dos apóstolos e lhes diz: “’Como o Pai me enviou, também eu vos envio’. Dizendo isso, soprou sobre eles e lhes disse: ‘Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; aqueles aos quais retiverdes ser-lhes-ão retidos’” (Jo 20, 21-23). As palavras “como o Pai me enviou” dizem claramente que a missão de Jesus continua naquela dos apóstolos, isto é, da Igreja. Mas, para que essa missão seja possível, Jesus dá o Espírito Santo. E logo ele diz também em que consiste essa missão: em perdoar ou reter os pecados. Essas palavras geralmente foram entendidas como sendo o sacramento da penitência. O primeiro sacramento do perdão e o batismo, e na eucaristia nos é oferecido o sangue de Jesus derramado pela remissão dos pecados. Também a unção dos enfermos atribuímos em certos casos o perdão dos pecados que não foram perdoados anteriormente. Podemos ver resumida nestas palavras de Jesus sobre o perdão toda a missão da Igreja, em continuidade com a missão de Jesus mesmo, que ele formulou conforme o evangelho de São Marcos nestes termos: “Cumpriu-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1,15). Em todo caso, também no dia da sua ressurreição Jesus expressou, pelas suas palavras e pelo seu sopro os apóstolos, querer que sua missão no mundo continuasse na Igreja e particularmente na celebração do perdão dos pecados, pela presença e ação do Espírito Santo.

São Lucas descreve, no seu evangelho e nos Atos dos Apóstolos, a origem da Igreja e da Liturgia de outras maneiras. Mas também para ele é o Senhor exaltado que envia do Pai o Espírito Santo e faz assim nascer a Igreja com sua atividade central, que é a Liturgia. Que haja conforme São Lucas um espaço de tempo de quarenta dias entre a ressurreição e a ascensão de Jesus e que dez dias mais tarde venha o Espírito Santo, é secundário em relação a origem da Igreja e da Liturgia pela vinda do Espírito Santo. Significativo é que eles “estavam todos reunidos no mesmo lugar” (Atos 2,1), certamente rezando, como logo depois da ascensão do Senhor, quando “unânimes perseveraram na oração” (Atos 1,14), quando veio o Espírito prometido. E a pregação de São Pedro, logo depois da descida do Espírito, não é como uma Liturgia da Palavra que introduz a Liturgia sacramental do batismo dos três mil no dia de pentecostes? São Pedro já tinha explicado de antemão que a última finalidade da conversão e do batismo fosse o dom do Espírito Santo aos que iam ser batizados (cf. Atos 10,37s). logo no nascimento da Igreja os apóstolos exerceram a missão, que era também a de Jesus, na força do Espírito recebido.

O pentecostes de Jerusalém, cinqüenta dias depois da ressurreição de Jesus, repetiu-se. Houve nascimento da Igreja não apenas na morte de Jesus e no dia de pentecostes, mas também determinadas Igrejas particulares tiveram sua origem pela vinda do Espírito de Deus, conforme nos relatam os Atos dos Apóstolos. Foi o que ocorreu na Samaria, onde os discípulos recém-batizados por Filipe receberam – pela imposição das mãos dos apóstolos São Pedro e São João – o Espírito de Deus e assim uniram-se a Igreja de Jerusalém (cf. Atos 8,14-17). Na casa do centurião romano Cornélio de Cesareia, onde Pedro batizou os primeiros gentios, veio sobre eles o Espírito Santo (cf. Atos 10). Igualmente em Éfeso, onde Paulo batizou, em nome de Jesus, os discípulos de João Batista (Ef 19,1-6). Em todos esses casos, foi celebrando que as Igrejas nasceram.

De fato, podemos fazer nossa a afirmação de tantos padres da Igreja antiga, e que sempre de novo se repetiu: como o Filho de Deus assumiu um corpo humano pela descida do Espírito Santo sobre a virgem Maria, assim nasceu seu corpo místico pela descida do mesmo Espírito, completando-se desta maneira a Páscoa do Senhor no nascimento da Igreja com a sua Liturgia. Nesse contexto podemos logo lembrar que o mesmo Espírito desce sobre o pão e o vinho que apresentamos na eucaristia, e dá assim origem ao corpo eucarístico de Cristo. Podemos, com toda a razão, dizer que o Espírito Santo é a alma da Igreja, que especialmente na Liturgia se manifesta e realiza como Corpo de Cristo com seus muitos membros.

2. O Espírito Santo na Liturgia da Igreja apostólica

Melhor e mais detalhado do que qualquer escrito do Novo Testamento, São Paulo nos mostra nos capítulos 11 e 14 da 1ª carta aos Coríntios como na Igreja apostólica se celebrou a Liturgia. Notemos que ele desenvolve sua teologia do Corpo de Cristo e dos dons ou carismas do Espírito Santo dentro deste contexto litúrgico. Lembremos também que o apóstolo usa o termo “ekklesia” tanto quanto fala da Igreja como unidade dos cristãos ou Corpo de Cristo (por exemplo: 1Cor 11, 18.22; 12,28; 14,4.5.19.23.28.33.35). Deve ser claro também que São Paulo, sobretudo nos capítulos 12 e 14 desta carta pensa pelo menos em primeiro lugar, quando ele fala de ministérios, naqueles que nós chamaríamos litúrgicos.

Ora, todos os dons ou carismas, todos os ministérios, toda a vida e atividade da Igreja, especialmente a Igreja reunida em assembléia, vem, para São Paulo, do Espírito Santo. Os dons são simplesmente chamados de dons do Espírito (12,1). É o mesmo Espírito que cuida da vida e do crescimento da Igreja, que lhe deu a vida. E, por outro lado, é neste Espírito que nós podemos chamar Jesus de Senhor (12,3).

Aquilo que São Paulo diz nesses capítulos ao corintios sobre o Espírito Santo na Liturgia, combina perfeitamente com outras afirmações dele sobre a presença e ação do Espírito Santo na Igreja. Lembremos, neste momento, apenas alguns textos que nos falam em geral, mas claramente da ação do Espírito Santo em relação à Liturgia. Textos quase paralelos àquele no qual ele diz que não podemos dizer “Jesus é o Senhor”, a não ser no Espírito Santo (1Cor 12,3), encontramos nas cartas aos Romanos (8,15) e aos Gálatas (4,6), onde lemos que podemos chamar Deus de Pai porque recebemos o Espírito de filiação. Este Espírito nos foi dado no batismo, e é sobretudo na celebração litúrgica que chamamos Deus de Pai. No mesmo capítulo da carta aos Romanos São Paulo escreve: “Não sabemos o que pedir como convém; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis, e aquele que perscruta os corações sabe qual o desejo do Espírito; pois, é segundo Deus que ele intercede pelos santos” (8,26s). Em todo o caso, já a partir desses textos de São Paulo podemos chegar à conclusão de que ele escreve com plena razão na carta aos Filipenses: “Prestamos culto pelo Espírito de Deus” (3,3).

Resta ainda fazer uma referência à relação da Liturgia com a vida dos membros da Igreja, da sociedade e do mundo. Encontramos um exemplo eloqüente, para nos mostrar como São Paulo vê esta relação em 1Cor 11,17-34. É bom lembrar que, imediatamente após esse texto, seguem às explicações de São Paulo sobre o Corpo de Cristo e os múltiplos dons do Espírito Santo, que visam à união e à edificação da comunidade. São Paulo repreende os corintios não porque fizessem eventualmente algo de errado na celebração da eucaristia como tal, mas porque eles não vivem aquilo que celebram: a união dos membros do Corpo de Cristo e o amor fraterno, que são dons exímios do Espírito de Deus para a edificação da Igreja. Os corintios procuram o próprio proveito e não se doam à semelhança de Jesus, que se entregou na última ceia e no seu amor até o fim.

Neste contexto, podemos ainda lembrar que São Paulo usa o termo “liturgia” geralmente no sentido de uma obra de caridade (Rm 15,27; 2Cor 9,12; Fl 2,25.29s) ou para o ministério do evangelizador (Rm 15,16; Fl 2,17). Neste último texto da carta aos Romanos São Paulo se apresenta como “’liturgo’ de Cristo Jesus para os gentios, a serviço do evangelho de Deus, a fim de que a oblação dos gentios se torne agradável, santificada pelo Espírito Santo” (Rm 15,16). São Paulo diz, portanto, que só pela ação do Espírito Santo também a “liturgia” da vida é um sacrifício agradável da Deus. Mas é precisamente nisso que São Paulo vê o último sentido da sua missão como da missão de todos os cristãos: “exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e imaculada a Deus: este é o vosso culto espiritual” (Rm 12,1). E era exatamente esta a missão de Jesus, do Servo do Senhor, sobre o qual repousava o Espírito de Deus, para que evangelizasse os pobres. Foi este sacrifício espiritual que Jesus completou na cruz e que ele nos mandou viver na vida e celebrar na Liturgia.

3. O Espírito Santo na Liturgia ao longo da história

Não é possível neste artigo apresentar toda a história da consciência da Igreja sobre a presença e ação do Espírito Santo em sua liturgia. Dos primeiros tempos da Igreja, antes da formação das diferentes famílias litúrgicas, temos poucos documentos a esse respeito. Na patrística grega, no entanto, eles são freqüentes. As liturgias orientais que se formaram naquela época mostram uma forte pneumatologia. Mas na liturgia romana prevalece certo cristomonismo na teologia e espiritualidade em geral. Isso se observa particularmente na eclesiologia ocidental, que insistiu mais na dimensão cristológica e nos elementos institucionais, ao passo que deixou os elementos carismáticos em segundo pleno e apresentou a função do Espírito Santo como subalterna na obre de Cristo e como garantia da instituição. Tal cristomonismo observa-se também na doutrina sobre os sacramentos: eles devem ser instituídos por Cristo, neles Cristo e sua obra estão presentes. Nem há uma invocação explícita do Espírito Santo no cânon romano. Tudo isso dá a impressão de que existe grande falta de sensibilidade pneumatológica na teologia e na liturgia ocidental. Aliás, uma própria teologia litúrgica desenvolveu-se apenas em nosso século, no movimento litúrgico. Mas nem ela deixou de ser cristomonista. A melhor prova disso são a encíclica “Mediator Dei” do Papa Pio XII, de 1947, e a constituição do Concílio Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia.

4. O Espírito Santo na Constituição do Vaticano II sobre a Liturgia

No esquema para a constituição conciliar (“Sacrosanctum Concilium”) sobre a liturgia, que a comissão preparatória tinha elaborado, o Espírito Santo era mencionado apenas três vezes, e, mesmo assim, muito rapidamente. Citando Ef 2,21ss, o artigo 2 disse: “A liturgia... edifica aqueles que estão na Igreja em templo santo do Senhor, em habitação de Deus no Espírito”. E o artigo 6, citando Rm 8,15: “Pelo batismo os homens recebem o espírito de adoção de filhos, no qual clamamos ‘Abba, Pai’”. Finalmente, no artigo 43, citando o Papa Pio XII: “A preocupação pelo incremento e renovação da liturgia é justamente considerada como uma passagem do Espírito Santo pela sua Igreja”,

Longe de quererem determinar a natureza da liturgia, essas afirmações supõem, no entanto, uma propriedade essencial da liturgia, que a liga com a ação do Espírito Santo. São suas duas componentes: a linha descendente e a linha ascendente, isto é, a ação salvífica de Deus e a resposta cultica da Igreja. A primeira é apenas insinuada, quando se fala da edificação em habitação de Deus no Espírito. A segunda é mais bem articulada pela constatação de que o Espírito de Deus nos capacita à glorificação de Deus.

Os padres conciliares, sobretudo os do Oriente, notaram e chamaram a atenção para o fato de que o Espírito Santo tinha sido quase esquecido no esquema da constituição sobre a liturgia. Isso aconteceu sobretudo porque o esquema era, nas suas afirmações teológicas, fortemente baseado na encíclica “Mediator Dei” do Papa Pio XII, na qual dominava uma visão cristológica da Igreja e da liturgia, enquanto o elemento pneumatológico estava quase ausente. No entanto, como já vimos, por essa via a encíclica e o esquema conciliar estavam bem dentro da tradição ocidental.

Na última hora o esquema conciliar foi corrigido por três acréscimos que tinham por objetivo dar um colorido pneumatológico à Constituição “Sacrosanctum Concilium”. Embora essa meta não tenha sido alcançada, deu-se forte aceno nesse sentido, especialmente com o terceiro acréscimo feito. No artigo 5, onde se fala da missão do Filho de Deus, inseriu-se “ungido pelo Espírito Santo”. No artigo 6, onde lemos que Cristo enviou os Apóstolos, acrescentou-se “cheios do Espírito Santo”. Evidentemente, os padres conciliares acharam importante salientar, para uma adequada compreensão da liturgia, que nela a Igreja exerce sua missão – como a exercia Jesus – no Espírito Santo.

O terceiro acréscimo, no fim do artigo 6 é o mais importante. Depois de ter falado da ação litúrgica da Igreja apostólica, o Concílio constata que desde pentecostes: “a Igreja jamais deixou de reunir-se para celebrar o Mistério Pascal: lendo tudo quanto nas Escrituras a Ele se referia, celebrando a Eucaristia... dando graças a Deus... para louvor de sua glória” – e aqui se acrescenta: “pela força do Espírito Santo”.

A Constituição sobre a Sagrada Liturgia foi o primeiro documento discutido e aprovado pelo Concílio Vaticano II. O Espírito Santo, entretanto, foi descoberto tarde demais para ter seu devido peso no primeiro documento conciliar. Durante a discussão dos demais documentos, Ele estava mais presente na consciência dos padres conciliares. Sem recuperar aquilo que foi omitido na Constituição sobre a Sagrada Liturgia, o Concílio chegou a exprimir, algumas vezes explicitamente, a dimensão pneumatológica da Liturgia. Lemos, por exemplo, no artigo 50 da Constituição sobre a Igreja que na Liturgia “o Espírito Santo age sobre nós mediante os sinais sacramentais”. O artigo 5 – do decreto sobre os presbíteros diz primeiro que Cristo exerce na Liturgia o seu múnus sacerdotal em nosso favor “por meio do seu Espírito” e, mais adiante, continua dizendo: “na Santíssima Eucaristia está contido todo o bem espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, nossa Páscoa e pão vivo, que dá aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo”.

Mesmo não tendo dado, em seus documentos, ao Espírito Santo o lugar que lhe compete na Liturgia, o Concílio Vaticano II abriu para Ele uma porta que não se fechou mais. Pelo contrário, na fase pós-conciliar, quando foram elaborados os novos livros litúrgicos, essa porta se abriu mais, de modo que podemos dizer que o Concílio também, a esse respeito, significou uma volta às fontes, às origens da liturgia cristã, que nasceu e se celebrou sempre, embora em nosso passado ocidental por muito tempo inconscientemente, pela força do Espírito Santo.

II. O Espírito Santo na Liturgia hoje

Antes de apresentarmos, nesta segunda parte, os resultados que os princípios e normas do Concílio Vaticano II surtiram com respeito à presença e ação do Espírito Santo conforme os novos livros litúrgicos nos diversos sacramentos e em outras celebrações

1. O Espírito Santo opera também hoje a Salvação na Liturgia...

a) ...como acontecimento histórico-salvífico


Como já foi mencionado quando refletimos sobre a origem da liturgia, o Vaticano II apresenta a Liturgia em primeiro lugar como um momento da história da salvação. A obra da salvação da humanidade, que teve seus prelúdios no Antigo Testamento, foi completada por Cristo Jesus, sobretudo pela sua morte e ressurreição (cf. SC 5). Ela não deve ser apenas anunciada, mas também celebrada na liturgia, para que possa ter seu efeito pela nossa aceitação. Deus respeita a liberdade das pessoas, de modo que não impõe a salvação a ninguém, mas a oferece, para que cada um possa aceitá-la ou não. Quem se abre para a ação de Deus e a aceita, é salvo.

Ora, toda a obra salvífica é realizada pela força do Espírito Santo. A Sagrada Escritura, sobretudo os profetas e o Novo Testamento não deixam duvidar disso. Mas essa mesma ação salvífica de Deus é celebrada na liturgia. Portanto, já é a ação do Espírito Santo que celebramos na liturgia; mas é também ele que possibilita que essa ação litúrgica seja para nós um fato salvífico. Como isso pode acontecer fica mais claro quando analisamos e tentamos entender o que é memória.

b) ...quando fazemos memória

Não basta simplesmente afirmar que um fato histórico se torna atual na celebração litúrgica. Também não é suficiente dar a esse fenômeno o nome de memória ou memorial. Devemos tentar compreender, na medida do possível, como isso pode acontecer, particularmente como tal atualização ou memória pode ter eficácia salvífica.

Temos precedentes claros na Bíblia. É, aliás, uma realidade que os cristãos herdaram do povo da antiga aliança. Quando os hebreus celebravam anualmente a festa da páscoa, o fato histórico passado do êxodo, da libertação do Egito, tornou-se presente para eles. O texto do Antigo Testamento mais eloqüente neste sentido é, sem dúvida, aquele do livro do Êxodo que manda celebrar a festa dos ázimos e diz: “Lembrai-vos deste dia em que saístes do Egito, da casa da escravidão, pois com mão forte Iahweh vos tirou de lá, e por isso não comereis pão fermentado. Hoje é o mês de Abibi, e estais saindo” (Ex 13,2s). o mesmo “hoje” ouviu-se da boca de Jesus na sinagoga de Nazaré, quando ele tinha lido o texto do profeta Isaías que começa assim: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres”, e então explicou: “Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos esta passagem da Escritura” (Lc 4,18-21). Nos dois casos, o “hoje” se realiza numa celebração litúrgica, e, no segundo, São Lucas deixa claro que Jesus disse este “hoje” na força do Espírito do Senhor.

c) ...na liturgia da palavra

o que aconteceu na festa da páscoa dos hebreus e na sinagoga de Nazaré dá-se também quando nós proclamamos em nossas celebrações a Palavra do Senhor. A fé na presença de Deus que nos fala na proclamação das leituras bíblicas, já é expressada pela conclusão das perícopes “Palavra do Senhor”, e sua eficácia pela conclusão do evangelhos “Palavra da Salvação”. Mas como é que Deus se torna presente e a salvação acontece, quando proclamamos a Palavra de Deus? A antiga versão do cântico “A nós descei, divina luz...” no-lo explica. Ai pedimos cantando, na segunda estrofe: “Divino Espírito, descei, os corações vinde inflamar e as nossas almas preparar para o que Deus nos quer falar”. Ora, se o Espírito de Deus vem visitar o nosso coração, isso não é um acontecimento salvífico?

Que tal memória não é algo meramente subjetivo fica claro se consideramos o seguinte: quando ouvimos a proclamação das obras de Deus, abrimos com os nossos ouvidos também o nosso coração para Deus. E será que Deus nos deixaria abri-lo em vão? Não. Quando nós nos lembramos dele, ele se lembra de nós. Sua Palavra salvadora nos atinge realmente. Torna-se vida em nós, essa Palavra que é a segunda pessoa da Santíssima Trindade, Jesus Cristo, que veio e vem por obra do Espírito Santo. Seja neste momento permitido repetir: como pela descida do Espírito de Deus sobre Maria o Verbo Divino, a Palavra de Deus em pessoa, tornou-se viva no seio de Virgem, e como pela descida do Espírito Santo na Páscoa de Jesus, que se completou em pentecostes, nasceu a Igreja com a sua liturgia, assim o mesmo Espírito Santo torna viva e atuante na Igreja e em cada um de nós a Palavra de Deus, que também hoje é, na verdade, o Filho de Deus mesmo.

Do mesmo modo como na liturgia da Palavra o Espírito Santo opera a nossa salvação, assim também ele nos dá condições de dar nossa resposta de ação de graças e louvor ao Pai. Só porque o Pai nos santifica pelo seu Filho no Espírito Santo, podemos nos dirigir a ele “por nosso Senhor Jesus Cristo na unidade do Espírito Santo”.

d) ...e na liturgia sacramental

Se o Espírito Santo leva a efeito a obra da salvação já na proclamação ou celebração da Palavra, quanto mais o faz na celebração de um rito sacramental! O núcleo celebrativo dos sacramentos é uma proclamação das maravilhas operadas por Deus para a salvação da humanidade. Só que essa proclamação não acontece apenas em linguagem verbal, mas também simbólica. Seja lembrado, como que entre parênteses, que o Espírito Santo não é a Palavra de Deus que se encarnou, mas que se manifestou através de símbolos como o vento, o sopro, a pomba, a água e o fogo. Nos ritos centrais dos sacramentos se faz o pedido que venha o Espírito santificador especialmente através dos gestos, quase sempre pela imposição das mãos e freqüentemente pela unção. Tais gestos reforçam a oração que assim se torna mais plenamente humana, porque também corporal. As palavras, sobretudo aquelas que chamamos de fórmulas sacramentais ou essenciais, explicam os gestos, por exemplo, o banho da água no batismo, a unção na crisma e na unção dos enfermos, a entrega do pão e do vinho consagrados em comida e bebida na eucaristia, a imposição das mãos principalmente nos sacramentos da penitência e da ordem. O mesmo pode ser dito quanto aos ritos secundários de vários sacramentos, principalmente da imposição das mãos e das unções, também nos sacramentais – por exemplo, numa dedicação de igreja ou uma bênção de abade e abadessa, igualmente nas bênçãos do dia-a-dia, e não somente naquelas que são reservadas aos ministros ordenados.

Seria bom poder refletir com mais detalhes e profundidade particularmente sobre a epíclese na eucaristia e nos outros sacramentos e sacramentais, mas as reflexões propostas no quadro que agora está a nossa disposição parecem ser suficientes para nos mostrar como a ação do Espírito Santo em nossa liturgia é essencial para que nela possa ser levada a efeito a nossa salvação.

2. O Espírito Santo manifesta-se em inúmeros elementos da liturgia

Além dos ritos centrais das nossas celebrações litúrgicas e de alguns ritos secundários que acabamos de lembrar, inúmeras outras expressões verbais e simbólicas, e até mesmo o silêncio, mostram a presença e ação do Espírito Santo na liturgia. Mesmo sendo impossível enumerar todos esses elementos, alguns deles, lembrando à guise de exemplo, já nos mostram que toda a liturgia é um contínuo pentecostes.

a) Elementos verbais

Podemos começar esta parte da nossa reflexão recordando as palavras com as quais começamos geralmente as nossas celebrações: Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Elas já exprimem e reforçam em nós a fé na presença e ação das três pessoas divinas que operam a salvação que estamos celebrando desde que o Espírito de Deus pairava sobre as águas, no inicio da criação que o Pai realizou pela sua Palavra, até o final dos tempos, quando “o Espírito e a esposa dizem: Vem, Senhor Jesus!” (cf. Ap 22,17-20), para que o Reino seja entregue ao Pai.
Muitas vezes quem preside uma celebração saúda a assembléia com as palavras finais da segunda carta de São Paulo aos Coríntios: “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco” (2Cro 13,13). A última parte dessa saudação é uma verdadeira epíclese. E a assembléia confirma que Deus nos reuniu no amor de Cristo. É o amor de Cristo que o levou a evangelizar os pobres e a entregar sua vida por eles; quer dizer, o amor também do Pai, o amor em pessoa, que é o Espírito Santo, que pousou sobre ele; o mesmo “amor de Deus que foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Reparemos nessa saudação as palavras “comunhão do Espírito Santo”. Essa comunhão se pede mais explicitamente nas segundas epícleses das orações eucarísticas da liturgia romana atual. Na segunda oração eucarística, por exemplo, pedimos “que, participando do Corpo e do Sangue de Cristo sejamos reunidos pelo Espírito Santo num só corpo”.

b) Gestos

Como no caso dos elementos verbais, também dos gestos podemos lembrar somente um ou outro exemplo, além da imposição das mãos e da unção, que já foram analisadas brevemente. Não só a imposição das mãos, mas igualmente sua elevação exprime a ação do Espírito Santo. Como pela imposição das mãos pedimos que ele venha (de cima), assim pela elevação das mãos e dos braços abertos (para cima) nos dirigimos a Deus, ao Pai pelo Filho no Espírito Santo.

A prostração – que conhecemos sobretudo do rito das ordenações – é um antigo ritual, às vezes acompanhada por uma forma epiclética ou uma imposição das mãos. A genuflexão pode ser vista como uma expressão gestual da exclamação do apóstolo São Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28) ou daquela de São Paulo – dizendo podermos fazê-la somente no Espírito Santo “Jesus é o Senhor” (1Cor 12,3).

Da reunião em assembléia litúrgica já falamos brevemente ao analisar a saudação paulina do fim da 2ª carta aos Corintios. Na assembléia reunida podemos realmente ver um novo pentecostes, em que o Espírito Santo reuniu representantes dos mais diversos povos, de modo que todos eles entenderam os apóstolos falar em sua própria língua, uma inversão da torre de Babel, que dispersou a humanidade em povos com línguas diferentes e que não mais se entenderam. De fato, não há outras assembléias debaixo do sol em que se reúnem pessoas de origem e condição tão diferentes como numa assembléia litúrgica.

c) Objetos

O objeto que fala mais claramente do Espírito Santo é certamente o óleo (de oliva ou outro óleo vegetal), usado na liturgia como óleo dos catecúmenos, dos enfermos e do sagrado crisma. Como os gestos que mencionamos, também o óleo é um símbolo bíblico do Espírito Santo. Sobretudo o crisma exprime a presença do Espírito Santo sobre quem é ungido com ele (o batizado, o crismado, o ordenado), como o Espírito pousava sobre o Messias, o verdadeiro Ungido do Senhor.

O bálsamo que é acrescentado ao óleo na confecção e bênção do crisma, exprime o bom odor de Cristo (cf. 2Cor 2,15), que cada cristão ungido pelo Espírito Santo deve irradiar. O mesmo sentido pode ter a água de cheiro, usada sobretudo no Nordeste do Brasil. Também o incenso pode expressar, além da adoração e do sacrifício, o bom odor de Cristo e dos cristãos.

d) O silêncio

O silêncio na liturgia não é uma interrupção da celebração, uma pausa, mas antes um ponto culminante da participação plena na liturgia, o espaço da mais intensa comunhão de vida com Deus. Ele é marcante, por exemplo, nas ordenações. Em silêncio, o bispo impõe as mãos sobre os ordenandos. Tal silêncio é, da nossa parte, expressão da mais profunda disponibilidade para o Espírito Santo e, por outro lado, Deus fala no silêncio. Para ouvi-lo devemos calar. É sumamente conveniente fazer um momento de silêncio depois da proclamação das leituras bíblicas. Um silêncio prolongado depois da comunhão, quase no final da missa, para que pelo Espírito Santo possamos interiorizar o que ouvimos, saborear a comida e a bebida que Deus mesmo nos ofereceu. Só assim a Palavra de Deus ouvida e a comunhão recebida trarão frutos em nossa vida.

3. O Espírito Santo nos diversos sacramentos e celebrações

Memória da obra salvífica de Deus, especialmente da morte e ressurreição de Jesus Cristo, se faz em todos os sacramentos e nas demais celebrações litúrgicas, embora às vezes mais explícita e outras vezes mais implicitamente. Em todos os sacramentos, incluindo o matrimônio, temos epíclese. Trata-se de invocação do Espírito Santo, geralmente acompanhada ou precedida pela imposição das mãos.

Na missa, invocamos, em todas as orações eucarísticas, com exceção da primeira, duas vezes o Espírito Santo: imediatamente antes do relato da instituição com a imposição das mãos sobre o pão e o vinho, e, depois da anamnese e oblação, sobre a assembléia.

No batismo, o Espírito Santo é invocado sobre a água batismal. Mesmo se no tempo pascal se usa água abençoada na vigília pascal, reza-se um louvor sobre a água no qual se lembra a ação do Espírito Santo. O batismo mesmo se realiza em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Na unção pós-batismal com o óleo de crisma evoca-se mais uma vez a ação do Espírito Santo, lembrando o novo nascimento da água e do Espírito.

Na confirmação, o rito central consta de invocação, com a imposição das mãos sobre todos os crismandos, do Espírito Santo Paráclito, o Espírito de sabedoria e inteligência, de conselho e fortaleza, de ciência, de piedade e do temor de Deus. O rito essencial é a unção com óleo, acompanhado das palavras: “Recebe, por este sinal, o Espírito Santo, dom de Deus”.

Na penitência, impõem-se as mãos durante a absolvição e menciona-se que Deus enviou o Espírito Santo para a remissão dos pecados.

Nas ordenações, o rito central consta da imposição das mãos em silêncio e da oração consecratória, durante a qual se inova, por exemplo, para os diáconos, o Espírito Santo para o ministério conferido. Na ordenação do bispo unge-se ainda a cabeça do ordenado e do presbítero as mãos.

Na unção dos enfermos, o presbítero impõe as mãos, reza um louvor sobre o óleo dos enfermos abençoado pelo bispo, ou ele mesmo benze o óleo para a unção, em ambos os casos invocando o Espírito Santo, para depois ungir o enfermo pedindo que o Senhor lhe venha em auxílio com a graça do Espírito Santo.

Na celebração do matrimônio, pede-se na bênção nupcial que Deus envie sobre o casal a graça do Espírito Santo, para que, impregnado da caridade divina, permaneçam fiéis na aliança nupcial.

4. Ao longo do Ano Litúrgico

A presença e ação do Espírito Santo ao longo do Ano Litúrgico mereceria um estudo à parte. Mas alguns acenos já nos podem mostrar como o Espírito de Deus está sempre presente, desde a celebração da espera da sua primeira vinda, no advento, até a espera da sua volta na glória, no fim do Ano Litúrgico.

Antes de mais nada devemos lembrar que, durante todo o Ano Litúrgico, celebramos sempre a memória do Mistério Pascal de Jesus Cristo e de toda a obra da salvação. Esta salvação foi operada na força do Espírito. Vários momentos desta ação do Espírito na história de Deus com a humanidade são celebrados explicitamente durante o ano. Por exemplo, na anunciação do Senhor, que comemoramos também no advento, além da preparação da encarnação do Filho de Deus no Antigo Testamento, particularmente por meio dos profetas. Explicitamente festejamos a ação do Espírito Santo na história da salvação também na festa do batismo do Senhor. Nos primeiros domingos do tempo comum lembramos como Jesus, na força do Espírito, assumiu sua missão de evangelizar os pobres, de curar os doentes, de revelar a todos o amor do Pai para conosco – que é, em pessoa, ele mesmo, o Espírito de Deus.

No primeiro domingo da quaresma acompanhamos Jesus sendo tentado no deserto, para onde o conduziu o Espírito (cf. Lc 4,1). No segundo domingo da quaresma estamos com Jesus no monte Tabor, onde ele nos mostra a obra redentora completa, que se realizará também em nós. No terceiro, quarto e quinto domingos da quaresma do ano A acompanhamos os catecúmenos em sua caminhada para a páscoa, guiados também nós pelo Espírito, que se manifesta nos pontos altos do evangelho da samaritana, do cego de nascença e de Lázaro ressuscitado, anunciando-nos a obra do Espírito na água do batismo – a ser recebido pelos catecúmenos e renovado na noite pascal pelos já batizados.

No tríduo pascal, no tempo da páscoa e em pentecostes comemoramos a vinda do Espírito Santo sobre a Igreja nascente, vinda que se atualiza também em nossas celebrações.

Na segunda parte do tempo comum é o Espírito Santo que nos faz entender as Escrituras, que nos possibilita a comunhão com o Pai e nos fala através do seu Filho. E é no Espírito Santo que podemos sempre de novo dar a nossa resposta de filhos ao Pai, chamando-o de Abba, em nossas celebrações e em nossa vida, até que no fim do ano litúrgico o Espírito clama com a esposa, que somos nós, a Igreja: “Vem, Senhor Jesus!” (cf. Ap 20,17-20).

Também nas festas marianas, da mãe de Jesus, e dos outros santos e santas, celebramos a obra do Espírito Santo, que levou esses nossos semelhantes àquela santidade que só Deus, através do seu Espírito, pode operar.

No entanto, o Espírito Santo está presente ao longo do Ano Litúrgico não apenas como aquele que preparou e cooperou com Jesus Cristo na obra da salvação da humanidade; ele coopera também conosco de modo que haja verdadeira memória, atualização eficaz desta salvação na Igreja e no mundo. Pois é nele que nos atinge aquilo que comemoramos. É através dele que a obra da salvação é levada a efeito em nós.

5. O Espírito Santo na Piedade Popular

Embora o Concílio Vaticano II não tenha incluído a piedade popular na liturgia em sentido próprio, na realidade é difícil marcar claramente uma linha de divisa entre liturgia e piedade popular, sobretudo quando – como o faz o Concílio – consideramos os sacramentos como pertencentes à liturgia.

Sintomático é, nesse sentido, o documento final de Puebla, que trata da liturgia, da oração particular e da piedade popular num único capítulo.

Se lembrarmos a história, particularmente a origem das devoções populares como o terço e o anjo do Senhor, constatamos que elas surgiram como liturgia popular. Mais ainda, se levamos em conta o sentido e conteúdo dessas devoções, como poderíamos negar que aqueles que só nelas se sentem na presença e em comunhão com Deus, assim possam ser salvos? Tal negação não é possível, porque não podemos excluir que o Espírito Santo esteja presente e atuante também nas devoções populares. Isso importa mais do que saber se uma devoção merece ou não a qualificação de “liturgia”.

Quando começamos nossas orações ou nosso dia “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, ou quando concluímos em salmo ou outra oração com o “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo”, quando assim nos abrimos para Deus por força do seu Espírito, ele está presente. Isso vale ainda mais quando no terço contemplamos os mistérios da encarnação, da paixão e morte e da glorificação do Senhor, quer dizer, a obra que realizou no Espírito. Por que ele estaria menos presente nessas orações devocionais do que na liturgia das horas, que elas queriam substituir? Uma razão é porque a liturgia das horas tinha-se tornado inacessível para o povo simples.

Qual a diferença qualitativa, por exemplo, da oração do hino “Vinde, Espírito Criador”, rezado por um leigo ou quando rezado por um ministro ordenado ou um monge, quando eles o rezam na liturgia das horas?

Não há motivo para duvidar de que o Espírito Santo esteja presente também em tais devoções e que ele santifica também esses devotos.

6. O Espírito Santo na vida que celebramos na liturgia

Agora não se quer dizer que toda a vida seja liturgia. Assim não usaríamos mais o termo “liturgia” no seu sentido próprio. Mas, como levamos a vida para dentro da liturgia, agradecendo aquilo que vivemos de bom e pedindo perdão por aquilo que omitimos ou não fizemos bem, como as nossas súplicas brotam dos nossos problemas, dificuldades e sofrimentos, assim a liturgia tem também sua repercussão na vida, se ela for autenticamente celebrada. A liturgia cristã não pode estar desligada da vida, já que Cristo na última ceia celebrou sua vida e morte e nos disse que devemos fazer o mesmo em memória dele. A liturgia é o ponto culminante para o qual tende toda a vida e ação da Igreja e ao mesmo tempo, é a fonte donde provém toda a sua força (cf. SC 10).
Não é sem razão que na própria liturgia se estabelece, às vezes, explicitamente um paralelo entre a ação do Espírito Santo na criação do mundo e a transformação do mundo em Reino de Deus, numa nova criação. Lembremos a esse respeito a reflexão tantas vezes repetidas na festa de pentecostes: Enviai, Senhor, o vosso Espírito, e tudo será criado, e renovareis a face da terra.

Quantos impulsos para o advento de um mundo novo surgem também em nossos dias das celebrações das nossas comunidades! Ou pensemos nos incentivos que nos são dados por João Paulo II, como o fizeram também seus antecessores! A fonte de tudo isso não estaria na liturgia?

7. O Espírito Santo na inculturação da liturgia

Menos ainda do que sobre os outros aspectos da presença e ação do Espírito Santo na liturgia, pode-se apresentar uma reflexão abrangente com respeito à inculturação. Certamente não podemos negar que o Espírito Santo tenha renovado a nossa liturgia também nas décadas pós-conciliares. Parece que isso vale ainda mais no Brasil do que em outras partes do mundo, embora os passos que se deram em nosso país para uma inculturação oficial sejam, por enquanto, tímidos.

Podem-se comparar as nossas celebrações de hoje às de antes do Concílio Vaticano II. Ou, então, as celebrações realizadas no Brasil – sobretudo as das Cebs -, com as liturgias da Europa e do norte da América. Pode-se perceber ai – para usar as palavras do Papa Pio XII a respeito do movimento litúrgico – “o passo do Espírito Santo na Igreja” aqui e agora.


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Depois do que refletimos sobre o Espírito Santo na liturgia, não podemos mais duvidar da presença do Espírito Santo em nosso coração, no coração da Igreja e do mundo, sobretudo quando estamos reunidos na celebração da liturgia. O dom de Deus por excelência, o Espírito Santo, e todos os seus dons, estão sendo derramados sobre aqueles que não se fecham diante dele. Também e sobretudo na liturgia podemos continuar nossa caminhada com o nosso grande defensor e consolador, cheios de esperança, pelo terceiro milênio adentro.

A Função da Beleza na Religião

Dietrich Von Hildebrand



A beleza desempenha importante papel no culto religioso. O ato mesmo de adoração à divindade encerra o desejo de envolver o culto com a beleza. Estigmatizar a preocupação com o belo no culto religioso como "esteticismo" — como fizeram recentemente, com crescente acrimônia, alguns católicos — é revelar uma concepção deformada do culto religioso e da natureza do belo.

É o que se vê claramente quando se considera a natureza do "esteticismo", em vez de se usar o termo apenas com slogan destruidor.

O esteticismo é uma perversão na maneira de considerar a beleza. O esteta saboreia coisas belas como quem saboreia vinho. Não as trata com o respeito e a compreensão do valor intrínseco que requer uma resposta adequada, mas como fontes de satisfação meramente subjetiva. Mesmo dotado de refinado bom gosto, mesmo que seja um notável connaisseur, o tratamento do esteta não pode fazer de maneira alguma justiça à natureza do belo. Acima de tudo, é indiferente a todos os demais valores inerentes ao objeto. Qualquer que seja o tema de uma situação, vê-o somente do seu ponto de vista da satisfação e do prazer estético. Não consiste sua falha em superestimar o valor da beleza, mas em ignorar os outros valores fundamentais, sobretudo os morais.

Tratar uma situação de um ponto de vista que não corresponde ao seu tema objetivo é sempre uma grande perversão. Por exemplo, é perverso que um homem trate de um drama humano que exige compaixão, simpatia e ajuda, como se fosse mero objeto de estudo psicológico. Fazer da análise científica o único ponto de vista em qualquer assunto é radicalmente antiobjetivo e até mesmo repulsivo; é desrespeitar e anular o tema objetivo. Além de ignorar qualquer ponto de vista que não seja o "estético" e qualquer outro tema que não seja o da beleza, o esteta também deforma a natureza real da beleza em sua profundidade e grandeza. Como já mostramos em outros livros, toda idolatria de um bem necessariamente exclui a compreensão de seu verdadeiro valor. A maior e mais autêntica apreciação de um bem somente é possível se o vemos em seu lugar objetivo na hierarquia dos seres, disposta por Deus.

Se alguém se recusasse a ir à missa porque a igreja é feia e a música medíocre, seria culpado de esteticismo, pois estaria substituindo o ponto de vista estético ao ponto de vista religioso. Antítese do esteticismo é apreciar a elevada função da beleza na religião, é compreender o legítimo papel que lhe cabe desempenhar no culto e o desejo das pessoas religiosas em revestir de grande beleza tudo o que se refere ao culto divino. Esta apreciação justa da beleza é até um crescimento orgânico da reverência, do amor a Cristo, do ato mesmo de adoração.

Infelizmente alguns católicos dizem, hoje, que o desejo de dotar de beleza o culto se opõe à pobreza evangélica. É um erro grave e que parece freqüentemente inspirado em sentimento de culpa por terem eles sido indiferentes às injustiças sociais e negligenciado os legítimos reclamos da pobreza. É então em nome da pobreza evangélica que nos dizem que as igrejas devem ser graves, simples, despojadas de todos os adornos necessários.

Os católicos que fazem essa sugestão confundem a pobreza evangélica com o caráter prosaico e monótono do mundo moderno. Deixaram de ver que a substituição da beleza pelo conforto, e do luxo que muitas vezes o acompanha, é muito mais antitético à pobreza evangélica do que a beleza — mesmo esta em sua forma mais exuberante. A noção funcionalista do que é supérfluo é muito ambígua, simples seqüela do utilitarismo. Contradiz as palavras do Senhor: Nem só de pão vive o homem. No livro Nova Torre de Babel, procuramos mostrar que a cultura é um bem superabundante, algo que necessariamente parece supérfluo à mentalidade utilitarista. Graças a Deus, esta não foi a atitude da Igreja e dos fiéis através dos séculos. São Francisco, que em sua própria vida praticou a pobreza evangélica ao extremo, jamais afirmou que as igrejas devessem ser vazias, despojadas, sem beleza. Pelo contrário, igreja e altar nunca seriam suficientemente belos para ele. Diga-se o mesmo de Cura d'Ars, São João Batista Vianney.

Acontece um ridículo paradoxo quando, em nome da pobreza evangélica, são demolidas e substituídas as igrejas mais preciosas artisticamente — e a que custo! — por igrejas prosaicas e monótonas. Não é a beleza e o esplendor da igreja, a casa de Deus, que são incompatíveis com o espírito de pobreza evangélica e que escandalizam o pobre; são muito mais o luxo e o conforto desnecessários, hoje tão em voga. Se o clero deseja retornar à pobreza evangélica, deve reconhecer que em regiões como nos Estados Unidos e na Alemanha o clero possui os carros mais elegantes, as melhores máquinas fotográficas, os aparelhos mais modernos de TV. Beber e fumar muito é, certamente, oposto à pobreza evangélica; mas não, decerto, a beleza e o esplendor das igrejas.

De um lado, afirmar-se que as igrejas deveriam ser despojadas, porém, ao mesmo tempo, paróquias e campus de escolas católicas estão levantando feios edifícios para assuntos sociais, dotados de todo tipo de luxo desnecessário. Isto é feito em nome de problemas sociais e do espírito de comunidade. Até mesmo nos conventos verifica-se desenvolvimento análogo. Essas novas estruturas não são apenas opostas à pobreza evangélica; criam, também, uma atmosfera tipicamente mundana. Cadeiras reclináveis e tapetes espessos com maciez não muito saudável. Esses edifícios reúnem, artificialmente, três propriedades negativas: dispendiosos (o que diretamente se opõe à pobreza evangélica), feios e convidativos a concessões pessoais, típicas da degeneração que, hoje, ameaça os homens.

Por vezes os argumentos iconoclastas tomam outra feição. Ouve-se, ocasionalmente, algum vigário dizer que a missa é algo abstrato e que as igrejas, especialmente o altar, deveriam ser despojados. Na verdade, a Santa Missa é um mistério surpreendente e que transcende a toda compreensão pela só razão, mas não é, absolutamente, abstrato.

Abstrato é algo especificamente racional; opõe-se a real, concreto, individual. O mundo do sobrenatural, a realidade revelada, transcende o mundo da razão, mas não implica nenhuma oposição ao real e ao concreto. É, pelo contrário, realidade definitiva e absoluta, se bem que invisível. A Missa é, assim, um epítome da realidade concreta, do nunc (agora), pois o próprio Cristo se faz verdadeiramente presente.

A força e o impacto existencial da Sagrada Liturgia têm suas raízes exatamente no fato de não ser abstrato e dirigir-se não só à nossa inteligência ou simplesmente à fé, mas, sobretudo, de falar, de inúmeras maneiras, à totalidade da pessoa humana. Imerge o fiel na sagrada atmosfera do Cristo, pela beleza e esplendor sagrado das igrejas, pelo colorido e beleza das vestimentas, pelo estilo de linguagem e sublimidade musical do Cantochão.

Católicos progressistas dizem, às vezes, que aqueles que combatem a iconoclastia, se ocupam do "inessencial".

De fato, não é essencial que seja bonita a igreja, onde se celebra a Santa Missa e distribui a Comunhão aos fiéis. São essenciais apenas as palavras que perfazem a transubstanciação. Sendo este o sentido da frase, nada objetaremos. Se o termo "inessencial" significar "sem significação", então se está querendo dizer que coisas como a beleza das igrejas, a Liturgia e a música são "triviais" e a acusação é completamente errada, porque existe uma relação profunda entre a essência de alguma coisa e sua expressão adequada. A respeito da Santa Missa esta observação é particularmente verdadeira.

O modo como é apresentado esse mistério, sua visível manifestação, desempenha papel definido e não pode ser considerado sujeito a mudanças arbitrárias, apesar de ser incomparavelmente mais importante aquilo que se expressa do que sua expressão. Se bem que o tema efetivo da Missa seja tornar presente o mistério do Sacrifício de Cristo na Cruz e o Mistério da Eucaristia, deve-se dar grande peso à atmosfera sagrada criada pelas palavras, ações, acompanhamento musical e igreja onde se celebra. nada disso pode ser considerado de interesse meramente estético.

Contrapõe-se a todo esse menosprezo gnóstico do conteúdo e da forma externa o princípio especificamente cristão de que as atitudes espirituais devem encontrar também expressão adequada na conduta do corpo, nos seus movimentos e no estilo de nossas palavras. A Liturgia inteira está penetrada desse princípio. Analogamente, o salão e o edifício onde se desenrolam cerimônias sagradas devem irradiar uma atmosfera que lhe corresponda. É certo que a realidade dos mistérios nada sofre se a sua expressão for inadequada. Há, contudo, um valor específico em dar-lhe expressão adequada.

Como se erra, portanto, ao considerar a beleza das igrejas e da Liturgia como coisas que nos podem distrair e afastar do tema real dos mistérios litúrgicos para algo superficial! Quem diz que igreja não é museu e que o homem realmente piedoso é indiferente a essas coisas acidentais, apenas revela sua cegueira à magnífica função desempenhada pela expressão adequada (e bela). Em última análise, trata-se de uma cegueira à própria natureza humana. Mesmo que essas pessoas se proclamem "existencialistas", continuam muito abstratas. Esquecem que a beleza autêntica encerra mensagem específica de Deus, que nos eleva as almas. Como dizia Platão: "À vista da beleza, crescem asas às nossas almas". Mais ainda: da beleza sagrada relacionada à Liturgia nunca se afirma que seja temática, como nas obras de arte; pelo contrário, como expressão, têm a função de servir. Longe de obnubilar ou de se substituir ao tema religioso da Liturgia, ajuda a torná-lo fulgurante.

Valor não é sinônimo de "ser indispensável". O princípio básico da superabundância em toda a criação e em todas as culturas manifesta-se, exatamente, nos valores não indispensáveis a certa finalidade ou tema. A beleza da natureza não é indispensável à economia da natureza. Nem a beleza da arquitetura é indispensável para nossas vidas. Mas, o valor da beleza, na natureza e na arquitetura não é diminuído pelo fato de ser um dom, que de muito transcende a mera utilidade. Desse modo, a beleza é importante não só quando é ela mesma o tema (caso da obra de arte), mas também quando a serviço de outro tema. Destacar que a Liturgia deve ser bela não é colorir religião com tratamento estético. A aspiração pela beleza, na Liturgia, nasce do sentido do valor específico que se apóia na adequação da expressão.

A beleza e a sagrada atmosfera da Liturgia são algo não só precioso e valioso por si mesmo (na qualidade de expressões adequadas dos atos religiosos de adoração), mas são, também, de grande importância para o desenvolvimento espiritual das almas e dos fiéis. Repetimos: aqueles que, no movimento litúrgico, têm insistido na afirmação de que orações e hinos cansativos denominam o ethos religioso dos fiéis, apelando para o que no interior humano está longe do que é religioso, lançam-no em uma atmosfera que obscurece e embaça o semblante de Cristo. É de enorme importância a beleza sagrada para a formação do verdadeiro ethos do fiel. No livro Liturgia e Personalidade, falamos em detalhe da função profunda da Liturgia em nossa santificação, sem sacrifício de ser o culto de Deus seu tema central. Na Liturgia louvamos e agradecemos a Deus, associamo-nos ao sacrifício e à prece do Cristo. Convidando-nos a orar a Deus com o Cristo, a Liturgia exerce papel fundamental em nossa transformação em Cristo. Esse papel não se restringe ao aspecto sobrenatural da Liturgia. Integra, também, sua forma, a sagrada beleza que toma corpo nas palavras e na música da Santa Missa ou do Ofício Divino. Desprezar esse fato é sinal de grande primitivismo, mediocridade e falta de realismo.

Um dos maiores objetivos do movimento litúrgico tem sido o de substituir orações e hinos inadequados por textos sagrados das preces litúrgicas oficiais e pelo Canto Gregoriano. Assistimos, hoje, a uma deformação do movimento litúrgico quando muitos tentam substituir os sublimes textos latinos da Liturgia por traduções nativas, com gírias. Chegam mesmo a mudar, arbitrariamente, a Liturgia no intuito de "adaptá-la aos nossos tempos". O Canto Gregoriano vai dando lugar, na melhor hipótese, à música medíocre, quando não ao jazz ou ao rock and roll. Essas grotescas substituições empanam o espírito de Cristo incomparavelmente mais do que o fizeram certos tipos antigos e sentimentais de devoção. Esses eram inadequados. Aqueles, além de inadequados, são antitéticos à sagrada atmosfera da Liturgia. É mais do que uma deformação; isso lança o homem em uma atmosfera tipicamente mundana. Apela no homem para algo que o torna surdo à mensagem de Cristo.

Mesmo quando se substitui a beleza sagrada, já não pela vulgaridade profana, mas por abstração neutra, incorre-se em sérias conseqüências para as vidas dos fiéis, pois, como indicamos, a Liturgia católica se dirige à personalidade total do fiel. O fiel não é atraído ao mundo de Cristo apenas por sua crença ou por símbolos estritos. São levados a um mundo mais alto pela beleza do altar, pelo ritmo dos textos litúrgicos, pela sublimidade do Canto Gregoriano ou por músicas verdadeiramente sacras, tais como a Missa de Mozart ou de Bach. Até mesmo o perfume do incenso tem função significativa, nesse sentido. O emprego de todos os canais capazes de introduzir-nos no Santuário é profundamente realista e profundamente católico. É autenticamente existencial e realiza função notável em ajudar-nos a elevar nossos corações.

Se é verdade que considerações de cunho pastoral poderão recomendar como desejável o uso do vernáculo, o Latim da Missa — na missa silenciosa, dialogada e, especialmente, cantada com o Gregoriano — jamais deveria ser abandonado. Não se trata de guardar o latim de Missa por certo tempo até que os fiéis se habituem à missa em vernáculo. Como a Constituição da Sagrada Liturgia claramente determina, é permitido o uso do vernáculo, mas a Missa em Latim e o Canto Gregoriano conservam toda sua importância. Foi essa a intenção do motu proprio de São Pio X, que afirmou ser o Latim da missa, como o Canto Gregoriano, responsável também pela formação da piedade dos fiéis, através da atmosfera sagrada e única gerada por sua dicção. Assim, os anseios de muitos católicos e do movimento Una Voce não se dirigem contra o uso do vernáculo, mas contra a eliminação da Missa em Latim e do Canto Gregoriano. Eles apenas estão pedindo que se cumpra, realmente, a Constituição da Sagrada Litugia.

Contudo, certos católicos de hoje manifestam o desejo de mudar a forma exterior da Liturgia, adaptando-a ao estilo de vida de nossa época dessacralizada. Esse desejo denota cegueira com relação à natureza da Liturgia, bem como ausência de respeito reverencial e gratidão pelos dons sublimes de dois mil anos de vida cristã. Acreditar que as formas tradicionais podem ceder o lugar a algo melhor é dar provas de uma ridícula auto-suficiência. E esse conceito é particularmente incongruente nos que acusam a Igreja de "triunfalismo". De um lado, eles consideram falta de humildade a Igreja proclamar que Ela só é detentora da plena revelação divina (em vez de perceber que essa proclamação se fundamenta da natureza da Igreja e decorre de sua missão divina). De outro lado, demonstram ridículo orgulho quando simplesmente assumem que nossa época moderna é superior às anteriores.

Podem-se ouvir, hoje, razões de protesto declarando, por exemplo, que o texto do Glória e de outras partes da Missa estão repleto de expressões cansativas de louvor e glorificação a Deus, quando deveriam fazer mais referências a nossas vidas. É um contra-senso que revela como tinha razão Lichtemberg ao dizer que, se fosse dado a um macaco ler as epístolas de São Paulo, ele veria sua própria imagem refletida nelas. Admiram-se os nossos "teólogos" modernos não apresentarem, dentro em breve, uma nova versão do "Pai Nosso", como o fez Hitler. O "Pai Nosso" claramente enfatiza o primado absoluto de Deus, tão distante da mentalidade típica moderna. Um único pedido diz respeito ao bem-estar terrestre: "o pão nosso de cada dia"... O restante diz respeito ao próprio Deus, a seu Reino, a nosso bem-estar eterno.



(Extraído de "Cavalo de Tróia na Cidade de Deus". Publicado em PERMANÊNCIA, Nos. 142-143 Set-Out. 1980)


A Beleza e a Dignidade na Liturgia Eucarística

Por Matheus Roberto Garbazza Andrade


Senhor, amo a beleza de vossa casa, e o tabernáculo onde reside a vossa glória” (Sl 25,8)

A Igreja está fundamentada sobre o ‘Tríduo Sacro’, sobre a total entrega de Jesus aos seus. Destes dias de grande tensão, emana todo o mistério eclesial e se consuma a obra da salvação humana, planejada por Deus desde o início dos tempos. Dividido em diversos ‘acontecimentos’, que são intimamente interligados, esse tríduo é também a síntese do amor divino. Deus é amor, e por esse grande amor pelo gênero humano Ele aceitou se entregar por nós.

Na quinta-feira, antes de Seus braços abertos traçarem entre o céu e a terra o sinal da nova aliança, sabendo que iria reconciliar todas as coisas pelo sangue a ser derramado na Cruz (Cf. Missal Romano, Oração Eucarística VII - Sobre a reconciliação I), Cristo tomou pão e vinho, e instituiu o sacrifício do seu corpo e sangue. Em seguida, ordenou que os apóstolos o perpetuassem até que Ele voltasse. Desse mesmo modo, Jesus cumpria a promessa que havia feito: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 20).

Mais tarde, naquela mesma noite, Ele foi entregue aos seus algozes. Sexta-feira, na Cruz, enquanto se entregava como vítima imaculada, Jesus reordenou todas as coisas, efetuando realmente o sacrifício que na noite anterior estabelecera. Pela sua morte na cruz, criatura e Criador foram reconciliados. Num gesto de humilhação, o Rei do universo deixar-se morrer, o Verbo encarnado realiza a salvação dos homens. A cruz é o coração da fé católica, e “pelo poder radiante da Cruz, vemos com clareza o julgamento do mundo e a vitória de Jesus crucificado” (Missal Romano, Prefácio da Paixão do Senhor, I).

Somente a noite sabe a hora em que Cristo ressurgiu dos mortos, no Domingo. Os apóstolos, de certa forma desiludidos com o aparente fracasso de seu mestre, estavam recolhidos, com medo dos judeus e dos romanos. Cristo, entretanto, venceu a morte. Ressuscitou ao terceiro dia, como havia dito. A ressurreição é a ‘coroa’ da missão de Jesus, e por ela o Pai abraça Jesus novamente, acolhendo-o na glória celeste. Pela ressurreição, os homens são renovados na esperança, porque a glória celeste é prometida também à raça de Adão. Sem a glorificação de Cristo, todo o seu tempo teria sido, de certa forma, perdido. Entretanto, triunfou sobre a morte e venceu o mal, trazendo a alegria aos seus apóstolos.

“Ó Deus, quão estupenda caridade,/ Vemos no vosso gesto fulgurar:/ Não hesitais em dar o próprio filho,/ Para a culpa dos servos resgatar” (Missal Romano, Precônio Pascal).

De toda a obra sacerdotal de Cristo, resulta o mais precioso tesouro da Igreja: A Sagrada Eucaristia. “A Eucaristia constitui, de fato, o ‘tesouro’ da Igreja, a preciosa herança que seu Senhor lhe deixou” (Sua Santidade, Bento XVI – intervenção no Ângelus de 19/06/2006). O dom do Corpo e Sangue do Senhor é um dom inestimável, porque “neste sacramento, se condensa todo o mistério da nossa salvação” (Santo Tomás de Aquino – Summa Teologiae, III, q. 83, a. 4c).

Na Eucaristia, os fiéis são inseridos, misteriosamente, nas realidades celestes. Realiza-se nela, realmente, a ligação entre céu e terra, entre a Igreja militante e a Igreja triunfante. “Para nós, o banquete eucarístico é uma antecipação real do banquete final, preanunciado pelos profetas (Is 25, 6-9) e descrito no Novo Testamento como ‘as núpcias do Cordeiro’ (Ap 19, 7-9) que se hão de celebrar na comunhão dos santos” (Sua Santidade, Bento XVI – Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, 31). Essa antecipação sacramental das realidades vindouras serve como alívio dos tormentos da terra de exílio e, ao mesmo tempo, como força para a vida cotidiana. “A Eucaristia é verdadeiramente um pedaço de céu que se abre sobre a terra; é um raio de glória da Jerusalém celeste, que atravessa as nuvens da nossa história e vem iluminar o nosso caminho” (Sua Santidade, João Paulo II – Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia, 19).

O Santíssimo Sacramento também é dotado de um intenso caráter cósmico, que envolve as realidades dos mais diversos lugares e está sempre em sintonia com toda a criação. A Eucaristia perpassa todas as realidades, todos os tempos. “Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo. Une o céu e a terra. Abraça e impregna toda a criação. O Filho de Deus fez-Se homem para, num supremo ato de louvor, devolver toda a criação Àquele que a fez surgir do nada” (Idem, ibidem, 8).

A Eucaristia é em certo aspecto um sacramento ‘didático’. Através de sua celebração, o povo fiel recebe os ensinamentos da Igreja e do Evangelho. É força evangelizadora, porque “nela, o discípulo realiza o mais íntimo encontro com seu Senhor e dela recebe a motivação e a força máximas para a sua missão na Igreja e no mundo” (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, 67).

O mistério eucarístico é celebrado pela Igreja por meio da Divina Liturgia. Por seus ritos, a obra sacerdotal de Cristo crucificado-ressuscitado é continuamente perpetuada para as gerações cristãs. É por meio da Liturgia que o tesouro eucarístico vem até a Igreja.

Sendo o mistério eucarístico um dom tão grande, tão excelso, não admite descuidos, reduções e instrumentalizações. É justamente pela importância vital da liturgia eucarística que a Igreja sempre buscou salvaguardá-la com todas as forças, buscando sempre que o Santíssimo Sacramento fosse tratado com o devido decoro, o decoro que compete ao Cordeiro, o Rei do Universo. Pois “o Cordeiro que foi imolado é digno de receber o poder, a divindade, a sabedoria, a força e a honra. A Ele glória e poder através dos séculos” (Missal Romano, antífona de entrada da Solenidade de Cristo Rei, ano A).

A Igreja julga que a ela é dirigida a ordem de Jesus, quando ia celebrar a ceia derradeira com seus apóstolos: que preparassem uma sala ampla e mobiliada, como convinha à realização daquele ato. Por isso, ela estabelece como deve ser a preparação e a disposição das pessoas, dos lugares, dos ritos e dos textos para a celebração da Santíssima Eucaristia. Desse modo, ela garante que a nobreza e a dignidade necessárias sejam devotadas à Liturgia, donde emana toda a vida cristã.

A nobreza na Liturgia, porém, não tem um valor meramente estético. Por meio dela, revela-se o esplendor da verdade cristã, a verdade de Cristo. Assim como apareceu transfigurado perante os discípulos, revelando a sua glória celeste, Ele deve ser revelado na celebração eucarística, cercado de toda honra que o gênero humano Lhe pode devotar. O papa Bento XVI explica o valor da beleza na celebração litúrgica: “é necessário que, em tudo quanto tenha a ver com a Eucaristia, haja gosto pela beleza; dever-se-á ter respeito e cuidado também pelos paramentos, alfaias, os vasos sagrados, para que, interligados de forma orgânica e ordenada, alimentem o enlevo pelo mistério de Deus, manifestem a unidade da fé e reforcem a devoção” (Sua Santidade, Bento XVI – Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, 41).

Acusa-se a Igreja, entretanto, de triunfalismo e de certa soberba ao esmerar-se na nobreza da Liturgia. Para alguns, não é possível ver – ou talvez não queiram – a necessidade de se tratar com solenidade a Eucaristia. Pois, com tantas mazelas no mundo, seria realmente necessário dedicar ouro e outras riquezas ao altar do Senhor? O próprio Mestre, entretanto, já havia respondido a essas questões.

Quando Maria unge o Senhor em Betânia, os discípulos se escandalizam. “Para que este desperdício?”, perguntaram eles (Cf. Mt 26, 8). Frente às necessidades dos pobres, aquele gesto parecia um desperdício imperdoável. Jesus, porém, teve uma atitude diferente. “Ele pensa no momento já próximo da sua morte e sepultura, considerando a unção que Lhe foi feita como uma antecipação daquelas honras de que continuará a ser digno o seu corpo mesmo depois da morte, porque indissoluvelmente ligado ao mistério da sua pessoa” (Sua Santidade, João Paulo II – Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia, 47). São JoseMaría Escrivá, meditando sobre essa mesma passagem, escreve: “Aquela mulher que, em casa de Simão, o leproso, em Betânia, unge com rico perfume a cabeça do Mestre, recorda-nos o dever de sermos magnânimos no culto de Deus. Todo o luxo, majestade e beleza me parecem pouco. E contra os que atacam a riqueza dos vasos sagrados, paramentos e retábulos, ouve-se o louvor de Jesus: ‘Opus enim bonum operata est in me’ - uma boa obra foi a que ela fez comigo” (São JoseMaría Escrivá, Caminho – 527).

Ademais, a nobreza da Liturgia de forma alguma é um ultraje aos mais necessitados. Pelo contrário, mesmo os mais pobres não exitam em dispor de seus bens para manter o culto divino. Pois o mandamento mesmo diz que é preciso amar – e honrar – a Deus sobre todas as coisas. “A riqueza litúrgica não é a riqueza de uma casta sacerdotal; é riqueza de todos, também dos pobres, que, com efeito, a desejam e não se escandalizam absolutamente com ela. Toda a história da piedade popular mostra que mesmo os mais desprovidos sempre estiveram dispostos instintiva e espontaneamente a privar-se até mesmo do necessário, a fim de honrar, com a beleza, sem nenhuma avareza, ao seu Senhor e Deus” (RATZINGUER, J/ MESSORI, V. – A Fé em Crise? O Cardeal Ratzinguer se interroga. São Paulo, EPU, 1985, pág 97).

Se a necessidade de se empregar a maior beleza e nobreza possível à Liturgia é tão visível, tão necessária, por que é preciso se ater a esse assunto? Pois, se o Magistério eclesiástico e os santos ensinam que é preciso honrar a Deus e sua casa com o melhor que se tem, que mais se tem a dizer sobre esse assunto?

Infelizmente, não faltam trevas a turvar a beleza litúrgica, e a privar o Sacramento das honras a ele devidas. Pois com o passar dos anos a Liturgia foi se limitando cada vez mais ao útil, ao meramente funcional. Nada que estivesse presente na celebração aparentemente enfeitando pôde, na maioria dos lugares, perseverar. Com esse afastamento da beleza, em muitos lugares se pode notar um empobrecimento da Liturgia. Isso se deve não somente à mentalidade moderna de tornar tudo mais fast, mais rápido e simples, mas também a uma perda do sentido da Santa Missa. Em alguns lugares, o mistério eucarístico, “despojado do seu valor sacrificial, é vivido como se em nada ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao redor da mesa” (Sua Santidade, João Paulo II – Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia, 10).

Essa triste realidade contribui muito para o afastamento da beleza nas celebrações. Passou a existir uma grande familiaridade com a celebração litúrgica (Cf. o comentário de J. Aldazábal na Instrução Geral Sobre o Missal Romano – Terceira Edição. São Paulo, Paulinas, 2007, pág 26). Tratando-se o mistério como se fosse ‘de casa’, muitos passaram a fazer concessões por conta própria. Assim, pouco a pouco, liturgistas fizeram uma liturgia acessível demais. Além de retirar todo – ou quase – valor artístico das celebrações, isso contribuiu para uma perda do caráter sagrado da Liturgia. “Certa Liturgia pós-conciliar, tornada opaca ou enfadonha por causa do seu gosto pelo banal e pelo medíocre, capaz de provocar calafrios” (RATZINGUER, J/ MESSORI, V. – A Fé... Pág. 91 [Citação do livro Das Fest des Glaubens, de Ratzinguer]).

Outro ponto que contribuiu, sem dúvida, ao empobrecimento da Liturgia, e até mesmo o seu ‘rebaixamento’ ao nível humano – deixando de se referir às realidades celestes para refletir ‘a vida do povo’ – é a instrumentalização a que se referia o papa João Paulo II. Em alguns lugares, grupos políticos passaram a se valer das celebrações para seus próprios propósitos, que quase sempre vão contra aos ensinamentos eclesiásticos. Com isso, a Liturgia passa a ser não mais um prenúncio do céu, mas um veículo de ideais políticos heterodoxos.

Por isso, é muito importante que se continue refletindo sobre o incomensurável valor da beleza na celebração eucarística. Cabe apresentar, portanto, alguns exemplos práticos da presença da beleza na Liturgia, expondo os ensinamentos emanados do Magistério sobre esse assunto. A Igreja deve ser a cidade da glória (Idem, ibidem, pág. 96), e isso transparece pela beleza de seu culto.

I – A beleza dos gestos e das atitudes: O santo padre João Paulo II exortava os cristãos a deixarem transparecer a fé por sinais exteriores. Por isso, toda a assembléia litúrgica deve demonstrar seu respeito e adoração a Deus pela dignidade de seus gestos e posturas. Principalmente o sacerdote celebrante, e os ministros que o auxiliam, devem agir sempre com deferência aos sagrados mistérios. Movimentos sóbrios, genuflexões e inclinações, conforme indicam as normas, demonstram o respeito às coisas sagradas e também o sentido de serviço à liturgia, pois ela não pertence ao celebrante e nem mesmo à comunidade.

O mistério eucarístico deve ser celebrado em clima de oração e reflexão, e não afoitamente. O Missal pede a dignidade dos gestos, para que exprimam a unidade dos fiéis e para que ajudem a entender melhor o sentido de cada parte da missa. “Os gestos e posições do corpo, tanto do sacerdote, do diácono e dos ministros como do povo, devem contribuir para que toda celebração resplandeça pelo decoro e nobre simplicidade” ( Instrução Geral sobre o Missal Romano [IGMR], 42).

II – Respeito às normas litúrgicas: O sínodo dos bispos de 2005, que refletiu sobre a Sagrada Eucaristia, dedicou atenção à ‘ars celebrandi’, a arte de celebrar retamente os santos mistérios. Respondendo aos anseios do sínodo, o papa Bento XVI escreve que a ars celebrandi está, primordialmente, na fiel obediência às normas litúrgicas propostas pela Igreja (Cf. Sua Santidade, Bento XVI - Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, 38). “Normas litúrgicas ajudam a proteger a celebração dos mistérios sagrados, especialmente a Sagrada Eucaristia, de serem danificados por adições ou subtrações que danificam a fé e podem, por vezes, até tornar uma celebração sacramental inválida. O povo de Deus tem, assim, celebrações garantidas na linha da fé tradicional da fé Católica e não é deixado à mercê de idéias pessoais, sentimentos, teorias ou idiossincrasias” (ARINZE, Francis Cardeal. Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Discurso para o “Gateway Liturgical Conference”, em 8 de abril de 2005).

III – A orientação da Liturgia: Durante a maior parte da vivência litúrgica da Igreja, o Santo Sacrifício foi celebrado em direção a Deus. Os altares eram primeiramente construídos buscando-se o oriente, na direção da Terra Santa. Isso era simbólico da presença divina. Mais tarde, o Sacrário ocupou esse lugar, na abside. Também os ritos orientais mantêm, até os dias atuais, tal orientação. Estando à frente do povo, voltado para o altar, o sacerdote manifesta claramente a sua função e sua dignidade inigualáveis.

“A abside orientada evoca o céu. Será reservada obrigatoriamente para uma imaginária celestial. Isto é válido não só para as igrejas do Oriente, mas para as absides de nossas igrejas românicas. O sacerdote, ao celebrar no altar, verá, se levantar os olhos, alguma representação simbólica da glória celestial, alguma evocação teofânica em relação com a Escritura. Celebrará verdadeiramente de frente para Deus. Quem não sente que tal disposição convém admiravelmente a tantos textos do Ofertório e do Cânon?” (FOUMÉE, Jean. A Missa de Frente para Deus. Tradução de Luís Augusto Rodrigues Domingues).

Manter essa orientação da liturgia é altamente significante, e contribui sumamente para manifestar a beleza da celebração, porque traduz certamente o sentido de certas partes da missa, que são voltadas para Deus, e não para os homens. Apesar de ser, em algumas ocasiões, útil que o sacerdote se volte para o povo durante a celebração.

IV – Valorização da língua latina: Há séculos o latim é a língua oficial da liturgia de rito romano. A Igreja sempre encontrou variadas razões para manter o uso da língua tradicional na celebração da Eucaristia, e mesmo dos outros sacramentos. O latim é uma língua imutável, visto que não sofre alterações normais a uma língua ‘viva’, o que o torna ideal como ‘guarda’ da doutrina cristã, mantendo sempre constante o significado de palavras e expressões. “O uso da língua latina, vigente em grande parte da Igreja, é um caro e nobre sinal de unidade e um eficaz remédio contra toda corruptela da pura doutrina” (Sua Santidade, Pio XII – carta encíclica Mediator Dei, 53).

Além de guarda da doutrina, o latim certamente contribui para enlevar os fiéis, uma vez que traduz um sentimento de se estar em um outro lugar durante a liturgia, manifestando certamente o caráter escatológico da celebração, conduzindo os presentes ao céu: Hic domus Dei est, et porta caeli! (Gn 28, 17) - Esta é a casa de Deus e a porta do céu. O Concílio Vaticano II ordenou: “deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos” (Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição Sacrossanctum Concilium, 36), e também pede: “tomem-se providências para que os fiéis possam rezar ou cantar, mesmo em latim, as partes do Ordinário da missa que lhes competem” (Idem, 54).

V – O canto gregoriano: Um fator especial na liturgia é o canto. A execução cantada de algumas partes contribui especialmente para o enlevo espiritual dos fiéis e para uma mais frutuosa celebração, sendo o canto litúrgico é um verdadeiro ofício a ser desempenhado. Desde as épocas mais remotas foi preocupação dos Santos Padres formar escolas de canto, e com o desenvolvimento da liturgia surgiram muitos estilos musicais, de grande aproveitamento. Entretanto, o canto gregoriano ocupa lugar de destaque na Liturgia, por ser a síntese de todas as características que se esperam da música sacra.

As qualidades artísticas presentes no gregoriano são fatores importantes para a composição da beleza na celebração. Ele é uma arte verdadeira, sendo caracterizado pela santidade e pela coerência para com o momento celebrativo, especialmente por não causar uma sensação desagradável. “O canto gregoriano foi sempre considerado como o modelo supremo da música sacra, podendo com razão estabelecer-se a seguinte lei geral: uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproxima no andamento, inspiração e sabor da melodia gregoriana, e será tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo supremo” (Sua Santidade, Pio X – Motu Proprio Tra Le Sollicitude, 3).

O canto gregoriano faz-se mais necessário hoje, com a visível banalização da música litúrgica, sob a influência das correntes musicais modernas, tornando os cantos ‘litúrgicos’ de duvidoso gosto artístico. O gosto musical da geração atual, movido por uma certa mutação cultural, foi “corrompido e degenerado, a partir dos anos 60, pela música rock e por outros produtos semelhantes” (RATZINGUER, J/ MESSORI, V. – A Fé... Pág. 96). Aqui também o Concílio se pronuncia: “A Igreja reconhece como canto próprio da liturgia romana o canto gregoriano; terá este, por isso, na ação litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar” (Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição Sacrossanctum Concilium, 116).

VI – O Altar: O altar, onde se torna presente o sacrifício da cruz, é símbolo do próprio Cristo, ‘sacerdote, altar e cordeiro’. Portanto, na Igreja, goza de alta dignidade, sendo o centro da ação litúrgica. O missal pede que, nas igrejas, haja sempre um altar fixo, que simboliza perenemente a pedra viva que é Jesus Cristo. Deve ser construído de forma que, espontaneamente, sejam voltadas para ele as atenções.
Como sinal da dignidade do altar, é louvável que seja ornamentado com flores, manifestando o caráter festivo da celebração. Entretanto, deve-se observar a moderação, sobretudo em tempos de penitência e espera, como o são a quaresma e o advento. O missal diz, ainda, que deve ser coberto com uma toalha branca. Ressaltando a necessidade de que o conjunto da celebração forme uma bela harmonia, diz que a toalha deve combinar em formato, tamanho e decoração com o altar.

VII – Os livros litúrgicos: Também merecem menção os livros litúrgicos utilizados na celebração. Entre eles, lecionário e evangeliário merecem destaque, por serem sinais da palavra de Deus. Portanto, requerem beleza na sua feitura e merecem sinais de veneração, como o beijo e a incensação. Os “livros de onde se tiram as leituras da palavra de Deus sejam verdadeiramente dignos, decorosos e belos” (Lecionário Dominical - Elenco das leituras da missa, 35).

VIII – A nobreza dos vasos sagrados: “Entre as coisas necessárias para a celebração da missa, honram-se especialmente os vasos sagrados e, entre eles, o cálice e a patena, onde se oferecem, consagram e consomem o vinho e o pão” (IGMR, 327). Devido a grande importância dos vasos que se utilizam na celebração, mormente os que ficam em contato com o Corpo e o Sangue do Senhor, devem ser feitos de material nobre e condizente com a dignidade da função que desempenham.

As normas litúrgicas são enfáticas ao destacar a necessidade de que os vasos litúrgicos sejam verdadeiramente artísticos, e que sejam feitos de material nobre: “Sem dúvida, requer-se estritamente que este material, de acordo com a comum valorização de cada região, seja verdadeiramente nobre, de maneira que, com seu uso, tribute-se honra ao Senhor e se evite absolutamente o perigo de enfraquecer, aos olhos dos fiéis, a doutrina da presença real de Cristo nas espécies eucarísticas. Portanto, reprove-se qualquer uso, para a celebração da Missa, de vasos comuns ou de escasso valor, no que se refere à qualidade, ou carentes de todo valor artístico, ou simples recipientes, ou outros vasos de cristal, argila, porcelana e outros materiais que se quebram facilmente. Isto vale também para os metais e outros materiais, que se corroem (oxidam) facilmente” (Congregação para o Culto Divino e a Disciplina Dos Sacramentos – Instrução Redemptionis Sacramentum, 117).

IX – As vestes sagradas: “A veste litúrgica usada pelo sacerdote durante a celebração eucarística deve, em primeiro lugar, demonstrar que ele não se encontra lá em privado, mas que está lá em lugar de alguém – de Cristo. O seu privado e individual devem desaparecer, a fim de ceder espaço a Cristo” (RATZINGUER, Joseph. Introdução ao Espírito da Liturgia. Prior Velho, Portugal. Paulinas, 2006. Pág 159). Cada veste que se utiliza na celebração eucarística possui simbolismo próprio, manifestando um caráter do mistério pascal. Portanto, é necessário que sejam feitas com qualidade, e que não sejam abandonadas mesmo aquelas que não são obrigatórias, mormente, no Brasil, a casula, que é uma veste própria do sacerdote que celebra a missa, simbolizando a Cruz de Cristo, o fardo que o sacerdote, também pelos fiéis, carrega em seus ombros. É uma veste muito simbólica do sacrifício de Cristo e do valor incomparável do sacerdote.

Segundo o missal, convém que a dignidade das vestes sacras transpareça não da ‘multiplicidade de ornatos’, de enfeites demasiados, mas principalmente da forma e do material dos quais são feitas. Convém, portanto, que sejam feitas conforme o modelo tradicional, aprovado pela Igreja, e não a partir da imaginação livre, embora a Sé romana reconheça a liberdade de cada região, desde que convenham ao uso sagrado (Cf. IGMR, 343-344).

X – Luzes, cheiros e sons: A liturgia, organicamente desenvolvida, envolve os sentidos corporais na celebração, contribuindo sobremaneira para comunicar as realidades celestes. Apesar de não fazerem parte, essencialmente, da celebração eucarística – e por isso mesmo vão sendo abolidos silenciosamente do culto – velas, incenso e campainhas agregam beleza e significado à liturgia.

São obrigatórios, pelas rubricas, apenas dois castiçais. Entretanto, permitem-se quatro ou seis, conforme a solenidade, e até sete quando é o bispo diocesano a celebrar. Apesar disso, em muitos lugares, utiliza-se apenas um, como ‘decoração’, não dando valor ao seu significado. “Os castiçais requeridos pelas ações litúrgicas para a celebração manifestem a reverência e o caráter festivo da celebração” (IGMR, 307).

A campainha é outro artefato litúrgico que, infelizmente, passou a ser considerado “antigo”, “sem sentido”, “retrógrado” e afins. O dispositivo com um conjunto de sinos, que recebe diversos nomes, possuiu lugar cativo na liturgia durante anos, sempre sinalizando o milagre eucarístico, os hinos de glória, a alegria das procissões. Hoje, infelizmente, o som marcante que multidões se acostumaram a ouvir enquanto Cristo, na hóstia santa, era elevado, está desaparecendo silenciosamente (literalmente) das igrejas. Sem dúvidas, esse belo som das campainhas concorre para a nobreza da celebração, salientando suas características.

Desde os tempos bíblicos, a incensação significa reverência e oração para as pessoas ou objetos. Significa também a adoração às espécies consagradas. “O modo suave, natural e materno como o turíbulo difunde o perfume do incenso pelos vários espaços do recinto sagrado é semelhante ao modo natural, suave e materno com que a Igreja fala a seus filhos. Ele se sentem conquistados pela maternalidade do turíbulo. (...) Tudo o que a Igreja faz, o faz com beleza” (Plínio Corrêa de Oliveira in Catolicismo, nº 544 – abril de 1996). Ademais, a IGMR prevê que “o incenso pode ser usado facultativamente em qualquer tipo de Missa” (nº 276). O modo tradicional de incensar, principalmente as oferendas – em forma de três cruzes e três círculos, traduz bem a reverência com as coisas sagradas.

“A liturgia não vive de surpresas ‘simpáticas’, de intervenções ‘cativantes’, mas de repetições solenes” (RATZINGUER, J/ MESSORI, V. – A Fé... Pág. 94). De modo algum, a beleza e a solenidade da liturgia são um problema para o povo fiel, e nem mesmo um empecilho à actuosa partcipatio de que fala o Concílio Vaticano II. Através da beleza e da solenidade da celebração eucarística se encontram as verdades celestes, e a força para continuar a caminhada na fé. A Liturgia é a identidade do católico, devendo ser reconhecível em todos os confins da terra. “Também por isso ela deve ser ‘predeterminada’, ‘imperturbável’, porque através do rito se manifesta a santidade de Deus. Ao contrário, a revolta contra aquilo que foi chamado ‘a velha rigidez rubricista’, (...) arrastou a liturgia ao vórtice do ‘faça-você-mesmo’, banalizando-a, porque reduzindo-a à nossa medíocre medida” (Idem, ibidem, pág. 95).

Sem dúvida, o maior e melhor exemplo para a beleza e solenidade das celebrações litúrgicas é a Virgem Maria, Tota Pulchra, Toda Formosa. Cheia da graça e da glória de Deus, Ela é a estrela a guiar a Igreja. “A beleza da liturgia celeste, que deve refletir-se também em nossas assembléias, encontra nela um espelho fiel” (Sua Santidade, Bento XVI - Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, 96). Que a Mãe de Deus “renove na nossa vida o enlevo eucarístico pelo esplendor e a beleza que refulgem no rito litúrgico, sinal da própria beleza infinita do mistério santo de Deus” (Idem, Ibidem, 97). A liturgia terrena, a exemplo da Virgem Santíssima, possa deixar transparecer a liturgia celeste, manifestando a glória divina por sua nobre simplicidade, e como o deseja a Igreja, una e santa.

Bom Despacho, aos nove de novembro de 2008, solenidade da dedicação da Basílica do Latrão.


Para citar:
ANDRADE, Matheus Roberto Garbazza. Apostolado Sociedade Católica: A Beleza e a Dignidade na Liturgia Eucarística. Disponível em: http://www.sociedadecatolica.com.br/modules/smartsection/item.php?itemid=325 Desde 17/12/2008