Relação mistério e corpo na liturgia, pela inteireza do ser
Eurivaldo Silva Ferreira
(Mestrando em Teologia Sistemática na PUC-SP)
Na liturgia, que é a celebração do mistério de Cristo, a participação ativa, plena, consciente e frutuosa, de que fala a Sacrosanctum Concilum, nos remete a um quê de característica que perpassa os nossos conhecimentos extrassensoriais. É preciso que se tenha em mente que é o corpo que se apropria desses mecanismos e “se lança” nessa participação.
Não se trata de uma síntese automática, que se dá por impulso de um ou outro elemento externo, assim como acontece quando ligamos um aparelho eletrodoméstico à tomada. Parte-se da experiência vivida e acompanhada através de um processo de integração com o todo, com o ambiente, com o espaço, com a natureza, com o universo, com o cosmos. Ser humano, homem e mulher, participam ativamente da vida do mundo no qual estão inseridos. Sem dúvida, não “exploram” esse mundo sem antes conhecê-lo, seja pelo aspecto de apropriação, seja pelo aspecto de investigação, a fim de que dele possa aproveitar e usufruir o máximo possível.
É a partir desse horizonte que mergulhamos no fazer liturgia, do celebrar a liturgia. Como se dá isso? Nossos corpos aceitam a possível proposta de que eles participam da natureza pela qual a liturgia é destinada, o louvor a Deus e a glorificação de nossos corpos, seres humanos animados pelo Espírito que em nós habita, reunidos em assembleia. Nesta assembleia, o mistério que é revelado pela ação ritual, exige de nós uma compreensão do todo. Isto é, não apenas compreendemos parte do mistério pela admissão racional, pelo lado intelectual, mas trata-se de dizer que boa parte da compreensão mistérica adentra nossos poros, nossos sentidos, penetra nossos ossos, vai até as entranhas dos nossos órgãos. Isso só acontece quando entramos com inteireza na ação ritual.
Estar inteiro compreende que corpo, mente e coração estão plenos de sua capacidade laudativa de entrar em sintonia com o mistério. Então estar inteiro é estar em sintonia. Não se trata apenas de dizer: meu corpo está aqui, mas se ele não tiver com suas potencialidades ativadas para a esperada participação que resulta numa atitude de frutuosidade para a vida de quem celebra e para a vida do mundo, de nada valerá a presença física no espaço celebrativo. De fato, quando o corpo toma consciência, através de elementos cognitivos ou de elementos extra-sensoriais, aí acontece a inteireza do ser, justamente porque é necessário que o mistério que se é agradado através da súplica e do louvor, possa reconhecer na dimensão da corporeidade a experiência da criatura criada.
Na dimensão da prece e da súplica, o corpo, ser criado, almeja que seu criador o escute, mas não basta uma escuta física, como a que tomamos no nosso aparelho auditivo. É necessário reportar a escuta da divindade para o âmbito extra-celebrativo. Nesta escuta, em que ambos se recordam de que um dia firmaram um acordo, define-se um diálogo sobre o qual se estabelecem condições para a garantia desse acordo. Foi assim que aconteceu com os povos antepassados, em que Deus, querendo se comunicar e também escutar, firmou uma Aliança, estabelecendo uma relação de amorosidade para com estes povos.
É nesse contexto de Aliança que fazemos memória, como fato continuador do acordo feito entre Deus e seu povo, contado por inúmeras vezes na Sagrada Escritura. Só com essa memória é que conseguimos colocar em atitude de espera aquela alegria que nos é aguardada na vinda do Reino.
No entanto, apesar da conjuntura eclesial em que nos encontramos, é necessário a interrogação. De fato, no contexto celebrativo de nossas igrejas e comunidades, perguntamos o que é celebrar, o que celebramos, como nossos corpos celebram, estamos inteiros nas celebrações? Como nossos ritos nos ajudam na compreensão da corporeidade? Nossos corpos conjugam ritualidade e corporeidade, em sintonia?
Há um mistério que vamos desvelando através de ritos, os quais nos vão envolvendo, e nós vamos assimilando. São nossos corpos que participam desses ritos, não há outro jeito. O rito nos possibilita entrar em contato com a divindade, no nosso caso o Deus amoroso, Pai e Mãe de bondade que nos dá Jesus, como Filho, no qual nos aponta para a esperança do Reino vivido e desejado por seu Pai. Com toda plenitude, nós fazemos isso na celebração eucarística, fazendo memória da ceia de Jesus. Na memória ritual nós comemos e bebemos, eis o sentido que faz com que nossa corporeidade compreenda e adentre a ação ritual, o paladar. Este é apenas um exemplo, podemos explorar outro mais, a escuta da Palavra, por exemplo.
Assim, quando respondemos a aclamação memorial que se encontra no centro da oração eucarística, ao proclamarmos este mistério da fé, estamos impulsionando nossos corpos na dimensão do futuro, do que há de vir, ao mesmo tempo que fazemos memória daquilo que aconteceu. Essa memória é feita no hoje de nossa existência, de nossas vidas, entremeadas de debilidades e angústias, de sonhos e esperanças, de alegrias e tristezas (Gaudium et Spes), todos esses sentimentos nós os carregamos em nossos corpos.
A exploração dos ritos através de nossas capacidades corporais é o que delineia nossas celebrações. Não só o racional entra nessa exploração, mas somos introduzidos na compreensão ritual, teológica e espiritual, características das quais se atribui o rito. Sem nossos corpos de nada valeria o rito, ficaria apenas no racional, no imaginário de nossas elucubrações. Afinal, de que valeria celebrarmos se não estivéssemos inteiros, se não fôssemos dotados de corporeidade?
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