“Admiração Eucarística”
a prática litúrgica como fonte para a teologia
Para o jesuíta Cesare Giraudo, a teologia também pode nascer à luz das celebrações litúrgicas. Segundo ele, é preciso desfazer a divisão milenar entre liturgia e reflexão teológica
Por: Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin
Tradução: Alessandra Gusatto
“Quando celebramos a santa missa, vamos ao Calvário com os pés da alma e os pés da fé, subimos todos o Calvário naquela primeira Sexta-feira Santa e retornamos ao túmulo do ressuscitado naquele primeiro Domingo da história”. Em outras palavras, “a Igreja vive a partir da Eucaristia”. Esse “estupor eucarístico” é que estimula a pesquisa e a obra do italiano Cesare Giraudo, considerado uma das maiores autoridades em liturgia na atualidade. Padre jesuíta, Giraudo esteve na Unisinos em março, participando da programação da Páscoa IHU 2010, com o curso “Eucaristia: da liturgia à vida”, entre os dias 22 e 25, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Nesta entrevista, concedida, pessoalmente, à IHU On-Line, Giraudo abordou alguns pontos centrais de sua reflexão – como epiclese, a importância da oração dos fiéis e o valor da expressão litúrgica “Kyrie eleyson” –, além de comentar os aspectos mais importantes da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. Segundo ele, a reforma serviu para aliviar o “edifício” da liturgia e restaurar a sua fisionomia, depois de tantos séculos, para revelar o seu “esplendor”.
Giraudo também defende a dimensão sacrifical da missa. Para ele, é preciso “não ignorar a dimensão sacrifical da missa, porque esta significa o evento pascal”. Na missa, “somos remetidos ao evento pascal para voltar a emergir na morte do Senhor Jesus e morrer ao nosso pecado, ao nosso egoísmo, e voltar a renascer na sua ressurreição”. Por isso, defende que a Igreja deveria encontrar “um caminho de misericórdia” para que todos os cristãos participem dos sacramentos, referindo-se a casais de segunda união e homossexuais. “O sacerdote deve dar a comunhão a todos aqueles que se apresentam para recebê-la. Quem se apresenta à comunhão recebe a comunhão. Depois, cada um, na sua consciência, estabelece o seu comportamento”, resume.
Sacerdote jesuíta italiano e doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Cesare Giraudo viveu muitos anos em Madagascar, na África, desenvolvendo seu ministério pastoral. Regressando à Europa, lecionou teologia dogmática e liturgia na Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional, em Nápoles. Atualmente, é professor do Pontifício Instituto Oriental, na Pontifícia Faculdade Teológica de Nápoles e na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Tem diversos livros publicados sobre liturgia. Aqui citamos os traduzidos para o português: Num só corpo. Tratado mistagógico sobre a eucaristia (Ed. Loyola, 2001), Redescobrindo a eucaristia (Ed. Loyola, 2002) e Admiração eucarística. Para uma mistagogia da missa (Ed. Loyola, 2008).
Giraudo é autor da Edição 50 dos Cadernos Teologia Pública, intitulado Ite, missa est! A Eucaristia como compromisso para a missão.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que significou a renovação litúrgica do Concílio Vaticano II e de Paulo VI?
Cesare Giraudo – A reforma litúrgica do Vaticano II foi um evento muito importante. É um pouco como restaurar edifícios: um edifício que atravessou os séculos, que partiu de um original iluminado, com uma arquitetura original muito clara, ao qual sucessivamente foram adicionados novos elementos que, no fim, deixaram o edifício original mais pesado. Basta observar a fachada de nossas igrejas ou prédios. Então, às vezes, quando se vê que aquele edifício não possui mais uma fisionomia precisa e que pertence a estilos diversos, em um certo ponto se faz uma restauração e se tenta, na medida do possível, retirar tudo aquilo que há de pesado e que foi adicionado durante os séculos. E se a operação é bem feita, no fim nos deparamos com o edifício em todo o seu esplendor.
A liturgia vem de longe. A própria liturgia cristã é proveniente da liturgia judaica, do Antigo Testamento e, portanto, atravessou os séculos. Quando lemos sobre a liturgia cristã nos documentos dos Padres da Igreja , começando por Justino , vemos que ela tem uma linearidade perfeita. Por exemplo, a liturgia da missa: o rito introdutório, depois a liturgia da palavra, a liturgia eucarística, com os seus elementos internos, depois o rito conclusivo. Posteriormente, foram sendo adicionados muitos e muitos elementos, sobretudo na parte inicial da missa. A parte essencial foi penalizada, foi reduzida, também foi muito clericalizada, porque os sacerdotes disseram: “Eu faço tudo. Não se preocupem, rezem o terço”. Então, o Concílio Vaticano II disse: “Façamos essa bendita restauração! Tentemos tirar tudo o que foi acrescentado sucessivamente e que fez pesar o rito e veremos surgir uma celebração muito mais simples, mais nítida, mais linear”. Foi essa a operação que Paulo VI fez, e que o Concílio Vaticano II quis.
IHU On-Line – Um exemplo mais concreto?
Cesare Giraudo – Antes, o início da missa comportava muitas orações que não acabavam nunca. O Concílio e a reforma litúrgica reduziram a parte inicial. O “Confiteor” [oração penitencial] era dito duas vezes, e havia muitas outras orações, salmos que não terminavam mais. Reduziu-se essa parte inicial e deu-se espaço novamente às leituras. Antes, as leituras eram feitas rapidamente, pois o sacerdote lia em latim, em voz baixa, para si mesmo. Portanto, a leitura passava num piscar de olhos. Então, o Concílio, reduzindo essas partes que haviam sido acrescentadas, criou espaço para a Liturgia da Palavra, que deve ser proclamada nas línguas faladas de hoje, e não mais pelo sacerdote, mas sim por alguém competente, um leitor. E depois reintroduziram a oração dos fiéis [também conhecida como prece dos fiéis], um elemento importante que, estranha e misteriosamente, havia se perdido com o passar dos séculos. Então, tirando aquilo que tinha sido adicionado abusivamente, redescobriu-se aquilo que realmente conta.
IHU On-Line – O senhor aborda bastante a questão da oração dos fiéis na celebração da missa. Qual a sua importância?
Cesare Giraudo – Eu sou filho de um pedreiro, construtor de casas. Quando eu era menino, sempre ficava atrás do meu pai nos períodos de férias. E meu pai me deu a ideia da estrutura. Pintar uma casa é importante, mas é secundário, pode-se pintar hoje ou amanhã, tanto faz. Mas o que conta é construir bem, uma casa com bons fundamentos. A liturgia também tem a sua estrutura, tem os seus pilares importantes, suas vigas de sustentação. A liturgia se apoia sobre dois pilares. São Justino, mártir no ano 150, era um leigo, nunca celebrou uma liturgia, mas tinha uma compreensão estrutural da liturgia da missa e assim a descreve com base nos dois pilares importantes: discurso descendente da boca de Deus aos nossos ouvidos, e discurso ascendente das nossas bocas ao ouvido de Deus, a oração dos fiéis. O primeiro pilar importante é o discurso descendente, a proclamação das leituras, o momento em que a palavra sai da boca de Deus através da boca ministerial do leitor e chega a nossos ouvidos. Depois de entender a mensagem é que vem o segundo pilar: nós nos levantamos e delegamos as nossas súplicas, é o momento da oração dos fiéis.
Então, é importante falar sobre a liturgia com base na estrutura, pois, muitas vezes, falamos da liturgia enumerando os elementos: na missa se faz isto, aquilo, elenca-se 10, 20, 30 coisas. Mas se enumerarmos as coisas assim, não vemos a diferença: todos os elementos acabam tendo a mesma força. Mas não: existem elementos absolutamente pesados, importantes, que não podem ser deixados de lado, e existem outros que podem estar lá ou não, que têm um valor muito relativo.
IHU On-Line – No curso que o senhor ministrou na Páscoa IHU 2010, o senhor apresentou duas metodologias possíveis para o estudo da eucaristia: a mistagogia patrística e a sistemática escolástica. Pode nos explicar o que são?
Cesare Giraudo – Nós falamos muito do método. O método é importante. O estudante não pode esperar que seus professores lhe ensinem tudo, pois as coisas são muito vastas. É suficiente que lhe seja ensinado o método. Se alguém sair da universidade com um método na área específica que o interessa, poderá caminhar tranquilo na sua profissão. Ora, quando falamos dos sacramentos, sobretudo da eucaristia, temos dois métodos, duas metodologias, e só duas. Porque cada uma delas se caracteriza pela sua relação com o milênio, com um dos dois milênios. Nós temos, atrás de nós, dois milênios de reflexões cristãs, cada um caracterizado pela sua própria metodologia.
Nos tempos dos Padres da Igreja, nos primeiros séculos, nos tempos de Ambrósio , de Cirilo de Jerusalém, de Agostinho , esses grandes bispos da Igreja antiga, quando explicavam o sacramento da eucaristia e também do batismo, explicavam a partir da experiência celebrativa que havia acontecido. Assim, os catecúmenos eram batizados na noite de Páscoa, tinham a experiência celebrativa do sacramento do batismo, da crisma e da eucaristia, e depois o bispo, no dia seguinte, na segunda-feira, os convocava à escola da Igreja e lhes explicava, a partir da experiência celebrativa que haviam tido, o que o sacerdote disse, o que cada um viu, fez, respondeu. A partir da experiência, explicavam-lhes o que o batismo e, sobretudo, a eucaristia são. Ou seja, explicar os sacramentos a partir da liturgia. A liturgia era realmente o livro da escola. As crianças, os jovens, os adultos que iam à escola, o que levavam consigo? O missal, porque este era seu manual de escola.
Mais tarde, no segundo milênio, tudo mudou, porque disseram: “A Igreja é boa para rezar, o missal é bom para rezar, mas para fazer teologia bastam as nossas cabeças”. Então, fizeram uma teologia abstrata, destacada da realidade. Enquanto que, no primeiro milênio, nos tempos dos Padres, a teologia era feita na Igreja, à luz da celebração. Depois separaram as duas coisas dizendo que a liturgia é uma coisa, e a reflexão teológica é outra.
Eu digo que temos duas metodologias: uma boa, aquela escolástica; a outra [patrística] excelente, ótima. Se escolhermos a metodologia excelente, eu digo: “Veja, nós não perderemos nada das conquistas da teologia escolástica de São Tomás [de Aquino] , mas seremos capazes de corrigir aquelas fraquezas metodológicas que de fato existiram”. Porque São Tomás não é a fé cristã. É um grande pensador que disse coisas maravilhosas, mas não podemos fechar os olhos para os limites da escolástica.
IHU On-Line – Como podemos lidar com a afirmação da dimensão "sacrificial" da eucaristia na cutltura contemporânea? Como compreender essa dimensão numa sociedade repleta de tantos sacrifícios por motivos econômicos, culturais, etnico-raciais, dentre outros?
Cesare Giraudo – A palavra sacrifício tem muitos significados. Agora, quando a palavra sacrifício é aplicada ao sacrifício da cruz, muitas vezes, temos medo dessa palavra, pois ela nos faz pensar na Sexta-feira Santa, na morte de Jesus, que nos incute medo. Mas quando falamos de sacrifício, sacrifício da cruz, não podemos nos esquecer que a Sexta-feira Santa não é o ponto final, mas é a ponte que nos abre ao Domingo de Páscoa, é a passagem para o Domingo de Páscoa. Então, quando dizemos “o sacrifício da cruz”, tenhamos presente que esse é o evento pascal, o evento do Cristo morto e ressuscitado. Ora, a dimensão da ressurreição é absolutamente positiva. Nunca devemos esquecer que, quando falamos de sacrifício, essa palavra quer dizer a ressurreição, a vitória final.
Tudo isso aplicado à eucaristia é importante, pois, hoje, muitas vezes, os nossos sacerdotes têm medo de falar da dimensão sacrifical da missa. Então, quando a iniciam, limitam-se a sublinhar a dimensão convivial: “Estamos aqui reunidos, irmãos e irmãs, para festejar juntos ao redor de uma única mesa…”. E por que dizem isso? Porque pensam: “Se eu que estudei tanto, estudei livros tão grossos, já tenho dificuldade para entender o que significa a dimensão sacrifical, como posso querer que os outros entendam?”. E assim pulam essa dimensão, limitando-se a sublinhar a outra. Eu digo que muitos sacerdotes católicos são cripto-protestantes, protestantes escondidos, com boas intenções, obviamente. Limitam-se a destacar a dimensão da ceia. Ora, João Paulo II, na sua carta encíclica “Ecclesia de Eucaristia” , fez soar o alarme. E disse: “Fiquemos atentos para não ignorar a dimensão sacrifical da missa, porque esta significa o evento pascal”.
Quando celebramos a santa missa, leigos e fiéis juntos, vamos ao Calvário com os pés da alma e os pés da fé, subimos todos o Calvário naquela primeira Sexta-feira Santa, retornamos ao túmulo do ressuscitado naquele primeiro Domingo da história. Somos remetidos ao evento pascal para voltar a emergir na morte do Senhor Jesus e morrer ao nosso pecado, ao nosso egoísmo, e voltar a renascer na sua ressurreição. Mas para sermos coenvolvidos no evento pascal, devemos comer, beber, fazer a comunhão sacramental. Então, são as duas faces da Eucaristia (ceia e sacrifício) que devem ser mantidas juntas. Esta é a mensagem da encíclica de João Paulo II: a Igreja vive a partir da Eucaristia. E eu gostei muito dessa mensagem e a retomei em um livro que intitulei “Estupor eucarístico”, que foi publicado agora em português pelas Edições Loyola, sob o título “Admiração eucarística”.
IHU On-Line – Mas o sacrifício é sofrimento ou amor? Alguns teólogos defendem que Jesus nos salvou pelo amor, e não pelo sofrimento.
Cesare Giraudo – O sofrimento não é um valor em si mesmo. Mas o sofrimento tem valores. Tomemos uma pessoa que nunca sofreu. Bem, sobre isso você coloca a mão no fogo: essa pessoa é uma pessoa egoísta, fechada sobre si mesma. Do contrário, uma pessoa que sofreu na sua vida é uma pessoa aberta para o sofrimento dos outros. E com isso não dizemos que o sofrimento é um bem: o sofrimento é um mal, mas traz consigo um bem. E então o sacrifício comporta sofrimento ou amor? Comporta as duas coisas juntas. Há um provérbio em italiano que diz: “Não há rosas sem espinhos“. Quando você vê uma rosa, o que quer da rosa? O seu perfume, a beleza das suas cores, mas você não pode sentir o perfume da rosa prescindindo de seus espinhos. E em malgache [língua falada em Madagascar] também há um provérbio que diz: “Aquilo que é doce é fruto daquilo que é amargo”. Certamente, na nossa vida, buscamos as coisas doces e belas, mas estas são alcançadas na medida em que aceitamos os sofrimentos, as experiências amargas da vida.
IHU On-Line – Qual o significado do “Kyrie eleyson” na celebração da missa?
Cesare Giraudo – “Kyrie eleison” é uma expressão em grego. É uma daquelas expressões que são intraduzíveis, como tantas outras expressões hebraicas: amém, aleluia, hosana, que permaneceram assim em todas as liturgias em qualquer língua. A expressão “Kyrie eleison”, que é muito antiga, é usada, sobretudo, como resposta aos pedidos da oração dos fiéis. Mas o que significa “Kyrie eleison”? Em português, vocês traduziram por “Senhor, tende piedade de nós”, uma tradução que é boa, mas insuficiente. Em italiano, traduziram como “Signore, peità” [Senhor, piedade], mas é uma expressão que dá pena, é miserável.
Se desejamos entender as duas palavras, a primeira palavra é “Kyrie”, que significa “Senhor, ó Senhor”. A segunda é “eleyson”, um verbo da língua grega que é interessante que seja lido na sua essência hebraica, pois, sob o grego do Novo Testamento, sempre está o hebraico, a língua sagrada para os judeus e para nós. Quando prestamos atenção à língua hebraica, o que está sob esse verbo? Há uma palavra muito interessante, que, quando traduzida em italiano ou português, significa “ventre materno”. Quando o filho está em dificuldade, são as entranhas da mãe que se agitam para ir ao encontro do filho, porque o filho é parte irrenunciável da mãe. Ora, Deus é pai e mãe ao mesmo tempo. Uma vez, o Papa João Paulo I , no seu pontificado brevíssimo, o Papa do Sorriso, disse: “Caros fiéis, Deus é pai e mãe”. Lembro-me que os jornalistas começaram a escrever rios de artigos dizendo: “Oh, vejam que coisa linda que o Papa disse: que Deus é mãe”. Mas os jornalistas não sabiam que a escritura diz isso: Deus é pai e mãe ao mesmo tempo.
Portanto, quando os doentes, os cegos, os leprosos se dirigem a Jesus, o que dizem a Ele? Dizem: “Senhor, tende piedade de nós, 'Kyrie eleison'”. Ora, Jesus, filho primogênito do Pai, reassume tudo do Pai. Por isso, Jesus tem as entranhas paternas e maternas com relação a nós. Então, quando os leprosos do Evangelho lhe gritavam “Senhor, piedade”, diziam “Senhor, dá livre vazão às tuas entranhas maternas e paternas. Deixa-te comover por nós”. E Jesus, efetivamente, se deixa comover, cura os cegos, lhes dá a visão, cura os leprosos etc. Essa expressão é muito interessante. Por isso, seria bom mantê-la assim, em grego, “Kyrie eleison”. Por que jogar fora tudo aquilo que havia de latim ou aquelas poucas palavras gregas como “Kyrie eleison”? Elas têm um significado. São palavras que fazem a unidade dos cristãos. Quando um cristão vem de outro país com outra língua e vê esta ou aquela palavra que já são usadas em seu país, isso é um valor. Então, a tendência para alguns seria retomar o “Kyrie eleison” e também retomá-lo como resposta à oração dos fiéis. Isso seria muito bonito.
IHU On-Line – E o que é a epiclese, conceito abordado pelo senhor em seu curso?
Cesare Giraudo – A questão da epiclese é muito rica. Significa súplica, a invocação para que Deus Pai mande o Espírito Santo sobre o pão e sobre o vinho para que se tornem o corpo e sangue do Senhor. E, depois, a segunda súplica, para que O mande sobre nós para que nos tornemos um só corpo, o corpo místico da Igreja. Os Padres da Igreja, Ambrósio especialmente, eram muito sensíveis à epiclese. Portanto, com a pergunta “Queres saber como se consagra com as palavras celestes?”, Ambrósio se refere à parte central de seu cânone romano que vai da súplica-convite do Espírito Santo sobre os dons à súplica do Espírito Santo sobre nós, que têm, em seu interior, o relato institucional com as palavras do Senhor.
Com a teologia abstrata do segundo milênio, toda a atenção se voltou única e exclusivamente sobre as palavras da consagração, reduzidas depois aos termos “Isto é o meu corpo”, “Isto é o meu sangue”. E não prestaram mais atenção ao resto. Por isso, a epiclese, que continuou existindo mesmo assim na liturgia e ainda hoje a encontramos, saiu completamente do horizonte dos teólogos, dos liturgistas, com um grave dano para a compreensão da teologia da eucaristia. E somente agora a Igreja voltou a descobrir a riqueza dessa oração, da oração eucarística em seu todo.
IHU On-Line – O que o senhor pensa sobre a retomada do missal de Pio V, da chamada Missa Tridentina, por parte de Bento XVI?
Cesare Giraudo – O Papa Bento XVI foi bom, eu diria até muito bom. Quis ir ao encontro da nostalgia de alguns grupos de cristãos, que dizem ser muito aficionados ao latim e que não querem renunciar a ele. Por isso, pediram para poder usar o missal em latim de São Pio V , precedente à reforma litúrgica. Mas a questão não é que esses fiéis queiram bem ao latim pelo latim. O latim serve um pouco como uma barreira para sustentar determinadas visões da Igreja e do mundo de hoje. Já que esses grupos de fiéis de direita, sem ofender ninguém, pediram para obter isso, o Papa, muito bom, disse: “Sim, vocês também podem usá-lo”. Assim, concedeu um uso duplo do missal, recolocando o missal de Pio V ao lado do missal da reforma litúrgica de Paulo VI, que continua sendo o missal de base.
Isso criou um pouco de desconforto dentro da Igreja, quase como se a Santa Igreja, a Igreja de Roma, a autoridade, quisesse desfazer a reforma litúrgica. Mas não foi isso. O Papa o fez por motivos de ecumenismo interno. Então, quem quiser celebrar com o missal de Pio V, que o use. Mas não nos esqueçamos que se um Concílio quis que a reforma litúrgica fosse feita, se um Concílio quis que o edifício fosse restaurado, quer dizer que isso era necessário. Ora, a reforma litúrgica foi feita, belíssima no seu projeto, realmente quase perfeita. Mas, pelo contrário, foi frágil, terrivelmente fraca em nível de recepção. Por isso, muitos receberam a reforma litúrgica de maneira muito superficial, mudando continuamente, com celebrações superficiais e pobres. Por isso, com razão, o Papa disse: “Fiquem atentos: não podemos perder o sentido do sagrado”.
Então, esse “motu proprio” do Papa que dá a possibilidade de usar o missal de São Pio V, mesmo que nos tenha colocado em crise, soa como um sinal de alarme, dizendo: “Fiquemos atentos: não podemos perder a dimensão sagrada, o sentido do sagrado e da seriedade da celebração”. Por isso, nós, sacerdotes, leigos comprometidos, devemos trabalhar muito na formação dos sacerdotes, dos futuros sacerdotes, dos leigos para entender o sentido da liturgia. Eu, na minha pequenez, tenho me empenhado muito nesse sentido.
IHU On-Line – Comparando os últimos Papas, como eles viveram e refletiram sobre as questões litúrgicas?
Cesare Giraudo – Aquele que teve mais oportunidades para refletir sobre a liturgia foi Paulo VI, evidentemente, que foi encarregado pelo Concílio para editar as edições dos livros litúrgicos. Todos os especialistas lhe traziam os originais para que ele os visse, e ele fazia as suas observações, que foram depois registradas em livros. Portanto, ele seguiu mais de perto a revisão do missal e de todos os livros litúrgicos. Dos Papas que vieram depois, João Paulo I não teve tempo, ficou um mês somente. João Paulo II, nos seus 27 anos de pontificado, não se interessou pessoalmente pela liturgia. Esta ia para frente por conta própria. O seu nome ficou ligado à terceira edição do missal romano, pois foi ele que a quis e fez alguns pequeníssimos retoques. O Papa Bento XVI, no momento, ainda não ligou o seu nome à liturgia de forma positiva, senão indiretamente através dessa sua intervenção, de retomada também, com relação ao missal de São Pio V. Isso corresponde um pouco à sua sensibilidade. Ele fez essa operação por um excesso de bondade para ir ao encontro das exigências de alguns.
IHU On-Line – O senhor propõe uma releitura da teologia da redenção a partir de um mito pré-cristão transmitido por um idoso de Madagascar? Que mito é esse?
Cesare Giraudo – Eu vivi dez anos no Madagascar, sempre trabalhando com a pastoral direta e trabalhava muito com os idosos. No grupo, éramos três sacerdotes; os outros dois eram irmãos mais velhos do que eu e trabalhavam com a pastoral dos jovens, e eu, mais jovem, trabalhava com a pastoral dos idosos. E me dei conta de que os idosos sabem, têm experiência, conhecem a tradição. Então, eu realizava encontros, semanas de estudo, em que os idosos participavam, pessoas de 70, 80 anos que ficavam toda a semana refletindo. Eles me contaram muitas coisas belíssimas, alguns mitos teológicos. Bem, coloquemos a palavra mito entre aspas. Essa palavra tem um grande significado para a história das religiões. São relatos fundamentais, que têm a mesma força e sacralidade que os relatos que temos na Bíblia, como em Gênesis 2 e 3, a história de Adão e Eva. Se quisermos, aquilo que a Bíblia é para nós, para eles se trata de uma sagrada escritura, escrita na mente e na tradição.
Essas histórias têm milhares de anos, são muito antigas. Uma delas fala justamente da redenção que passa pelo sacrifício do animal sagrado. Para os judeus, o animal sagrado é o cordeiro, em particular, o cordeiro pascal. A reconciliação, a redenção se dá através do sacrifício do cordeiro pascal. Em Madagascar, se fala do sacrifício do boi, que é o animal sagrado por excelência. Então, quando há um caso de dificuldade, uma ruptura da relação por um determinado comportamento, aquela pessoa deverá ser aspergida com o sangue do animal. Haverá um rito sacrifical, uma oração ao Criador em que se suplica a Deus que intervenha e recoloque essa pessoa na situação certa, graças justamente à aspersão do sangue do boi.
Esse texto é um pouco difícil. Para entendê-lo melhor, seria necessário mais tempo. Mas é uma história maravilhosa que nos ajuda a entender a eficácia do sacrifício do cordeiro pascal, mas, sobretudo, a eficácia do verdadeiro cordeiro pascal, em cuja morte nós renascemos para a vida nova. Eu me interessei muito pelos problemas da inculturação, escavando sempre na tradição dos antigos. Porque, às vezes, os missionários pensaram que todas essas coisas eram uma questão de idolatria, paganismo. Mas não, isso é revelação autêntica, inicial, incipiente, que espera ser completada pelo anúncio do Evangelho.
IHU On-Line – Qual a sua opinião sobre uma maior participação das mulheres na celebração da missa?
Cesare Giraudo – Certamente, a Igreja, por muitos anos, foi muito machista, muito clerical e, assim, penalizou o povo de Deus. Os sacerdotes começaram a dizer: “A gente faz, fiquem tranquilos, fiquem nos bancos, nós fazemos tudo”. Assim, clericalizaram a liturgia. E, ao mesmo tempo, a liturgia foi também masculinizada, no sentido de que a mulher na Igreja não podia superar a barreira do balaústre, aquela mesa da comunhão que havia nas igrejas antigas. Se a mulher fosse além dela, era um pecado mortal. As mulheres só podiam ultrapassar aquela barreira no sábado, quando faziam a limpeza da Igreja. Tudo isso agora já foi superado, e não existe mais, por sorte. A Igreja se purificou disso.
Mas qual pode ser a participação da mulher na missa? Eu penso que, sobretudo, no papel das leituras. Paulo VI revisou aquelas que se chamavam antigamente as ordens menores, que hoje se chamam leitorado e acolitato. Ele disse que os leigos também podem ter acesso ao leitorado. Assim, Paulo VI manteve o leitorado instituído – ir ler com a bênção preliminar – somente para os homens, pois Paulo VI teve um pouco de medo desse vento que vinha do Atlântico, da América, soprando sobre o Ocidente, que era a reivindicação do sacerdócio feminino. E disse: “Não, por agora o reservemos aos homens”. Mas nada impede que um dia o Papa abra oficialmente à mulher o leitorado instituído, que ela também possa ser instituída com uma bênção como uma leitora na Igreja. Agora, a mulher já pode ler, podemos dizer, como leitora extraordinária. E depois, hoje são todos extraordinários, porque esse leitorado instituído se perdeu de vista. Em todo caso, a mulher lê e isso é uma coisa boa. Eu penso que esse discurso deve ser moderado, não se trata de mandar um exército de pessoas a ler, mas se trata de mandar poucas pessoas, que são preparadas, que seguem cursos específicos de preparação, sejam elas homens ou mulheres. Pois ler na Igreja, proclamar a palavra de Deus é muito difícil, muito comprometedor.
IHU On-Line – O que o senhor pensa sobre a participação de divorciados de segunda união na comunhão eucarística? E de homossexuais? As regras atuais não transformam a eucaristia em uma forma de exclusão?
Cesare Giraudo – Não sou eu quem pode resolver o problema. Certamente, na minha experiência pastoral em Madagascar, eu sofri por causa disso, porque quando um jovem e uma jovem me diziam: “Queremos nos casar”, eu sempre dizia: “Vão devagar, com calma”. Porque eu sabia bem que se eu abençoasse aquele casamento, um ou dois meses depois ele acabaria, e aqueles jovens teriam dificuldades para toda a vida. Porque, em Madagascar, o matrimônio ainda hoje é muito instável, acaba facilmente, assim como em nossos países, seja na Europa ou no Brasil.
Então, eu vejo cristãos que possuem uma fé verdadeira, mas que se encontram em uma situação desconfortável. Não podem ir para frente, não podem voltar. Têm o compromisso matrimonial de um lado, têm um compromisso familiar de outro. Então, eu me pergunto: a Igreja não poderia encontrar um caminho possível para eles? Ou até um caminho de misericórdia, como muitas vezes os orientais chamam? Não se trata de abençoar a situação atual, de dizer “Fizeram certo ao acabar com o primeiro casamento”. Não se trata de aprovar isso. Trata-se simplesmente de dizer, na situação atual, que esse cristão e essa cristã têm a necessidade dos sacramentos, o sacramento da confissão, o sacramento da eucaristia. A Igreja não poderia encontrar um caminho de misericórdia para conceder a esses cristãos os sacramentos? Mas não sou eu quem estabelece isso.
Também se falou disso durante o Sínodo dos Bispos, há dois ou três anos, sobre a eucaristia, e um bispo disse: “Aqui, só o Papa pode resolver o problema”. E nós aguardamos com confiança por uma intervenção magisterial do Papa. E o que o Papa diz para os divorciados e que também se aplica a outras pessoas em dificuldade, homossexuais etc., é que naturalmente seria preciso que essas pessoas pudessem fazer um caminho com um guia, um sacerdote. Não se trata de dar o aval, de dizer: “Vocês fizeram certo”, mas é necessário que se entenda que na vida existem comportamentos difíceis e que, nesses comportamentos, devemos buscar retirar todo o egoísmo, tudo o que é diretamente contrário ao Evangelho. E depois tentar dar o nosso melhor, com a ajuda do Senhor, para nos adequarmos sempre melhor aos ideais do Evangelho, que permanece sendo um ideal. Não podemos dizer: “Eu coloco em prática os ideais do Evangelho”. Aquele que presume tê-lo posto em prática é o primeiro a ser infiel ao Evangelho. O Evangelho é um grande ideal, e devemos pedir ao Senhor que nos ajude a caminhar rumo a esse ideal com as dificuldades que são as nossas. O problema, porém, continua sendo complexo.
IHU On-Line – E o mesmo vale para os homossexuais?
Cesare Giraudo – Sim, eu diria que sim. Trata-se de refletir sobre esse caso. Não dá-lo por óbvio, porque, hoje, na sociedade, essas diferenças são consideradas normais. Portanto, não devemos confundir a normalidade com eventuais desconfortos. Poderíamos chamá-los por muitos nomes. Pelo contrário, hoje, há a tendência de dizer: “Você faz assim, você faz assado, faça como quiser”. Mas não, não podemos aceitar isto na Igreja. Com o respeito, naturalmente, pela opinião pessoal de cada um. Sobretudo, hoje em dia, somos muito flexíveis com relação a isso. Não devemos condenar ninguém. Jesus nunca condenou ninguém no Evangelho. Ele sempre desculpou o pecador, condenando, porém, o pecado ou o comportamento anômalo.
IHU On-Line – Portanto, os divorciados e os homossexuais, na sua própria consciência, podem participar da comunhão se o sacerdote não souber de sua situação?
Cesare Giraudo – O sacerdote deve dar a comunhão a todos aqueles que se apresentam para recebê-la. Nenhum sacerdote tem direito de olhar para a cara das pessoas e dizer: “A você sim, a você não”. A menos que venha alguém que esteja claramente bêbado, que não consegue ficar de pé. Se você lhe negar a comunhão, não estará lhe ofendendo. Todos podem ver o porquê. Mas, senão, quem se apresenta à comunhão recebe a comunhão. Depois, cada um, na sua consciência, estabelece o seu comportamento.
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