A LITURGIA COMO AÇÃO INCULTURADA
(Inculturação da Liturgia)
Pe. Cristiano Marmelo Pinto
1. A LITURGIA COMO AÇÃO DE DEUS E DA IGREJA
A liturgia está no campo da ação (urgia). A liturgia é ação. É ação de Deus que se mantém fiel à sua Aliança com o povo. Ação de Deus que nos liberta, transforma, santifica. Deus está sempre agindo em favor de seu povo. Sua maior ação (lit-urgia) foi nos ter enviado seu Filho Jesus para nos salvar.
Mas a liturgia é também ação do povo cristão, que responde prontamente a Deus, prestando a ele o verdadeiro culto em espírito e verdade (cf. Jo 4,23-24). Ela é resposta à própria ação de Deus. Por isso, há na ação litúrgica um duplo movimento: da parte de Deus (movimento descendente), que vem ao encontro de seu povo para santificar e transformar, e da parte do povo cristão (movimento ascendente) que responde através das ações litúrgicas a Deus. Como afirma o Documento de Puebla “A liturgia, como ação de Cristo e da Igreja, é o exercício do sacerdócio de Jesus Cristo; é o ápice e a fonte da vida da Igreja” (PUEBLA, 918).
1.1. LITURGIA COMO AÇÃO DE DEUS
A liturgia é ação de Deus, como já foi dito. Ela é ação simbólica que nos faz participar do mistério de Deus. “Liturgia é comunhão e participação na vida e no mistério de Deus Pai, Filho e Espírito Santo” (PALUDO, 1996). A iniciativa na liturgia é sempre de Deus. É o Pai quem nos convoca, o Filho quem nos congrega e se dirige ao Pai em nosso favor, e o Espírito Santo nos transforma em oferendas vivas ao Pai.
A liturgia é ação de Jesus Cristo e, Jesus Cristo é a perfeita ação do Pai. Em Jesus o projeto de Deus de nos salvar é levado ao seu pleno cumprimento. Jesus é ação do Pai:
a) Através de sua vida;
b) Através de seus gestos e palavras;
c) Através de sua opção preferencial pelos pobres;
d) Através de sua entrega total no mistério de sua paixão, morte e ressurreição.
Com efeito, o Constituição Conciliar sobre a renovação da liturgia Sacrosanctum Concilium afirma que “Cristo age sempre e tão intimamente unido à Igreja, sua esposa amada, que esta glorifica perfeitamente a Deus e santifica os homens” (SC 7) . No final do presente artigo, o documento diz “toda celebração litúrgica, pois, como obra de Cristo sacerdote e de seu corpo, a Igreja, é ação sagrada num sentido único, não iguala em eficácia nem grau por nenhuma outra ação da Igreja” (SC 7) .
A liturgia é também ação do Espírito Santo que nos reúne, nos faz participar e rezar. Ele é o grande animador da celebração litúrgica. É o Espírito Santo quem faz com que a liturgia seja uma ação conjunta, ou seja, ação do Pai, ação de Cristo e ação da Igreja. Podemos afirmar que na ação litúrgica cada gesto, cada palavra, cada celebração, cada pessoa e/ou comunidade é um sinal da presença e da ação do Espírito Santo.
1.2. LITURGIA COMO AÇÃO DA IGREJA
A liturgia é também ação da Igreja, povo de Deus, que se reúne para celebrar o mistério de sua fé. Ela é resposta da Igreja ao apelo de Deus que quer a todos salvar. Ela é resposta a Cristo que nos convoca e também ao Espírito Santo. A Igreja se reúne para celebra, para render graças a Deus que age em favor de seu povo.
A liturgia é ação de pessoas que, animadas por sua vida de fé, buscam viver em comunidade, ou seja, a liturgia é ação da Igreja, reunida em assembléia litúrgica, movida pela sua fé (cf. SC 26). A liturgia é ação do povo de Deus, é um fazer, um agir em conjunto. Ela é ação em que a comunidade (assembleia litúrgica) é o sujeito. O que fundamenta a participação e ação de todo o povo de Deus na ação litúrgica é o batismo. Pelo batismo recebemos o sacerdócio comum a todos que nos torna capazes de reconhecer, adorar e honrar a Deus que é nosso Pai.
Porém, a liturgia não é ação de uns pouco, é de todos. A Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium afirma que “as ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, sacramento da unidade [...] São, pois, ações de todo o corpo da Igreja” (SC 26) . A comunidade constitui a base de toda ação litúrgica respondendo a ação convocatória do Pai, por Cristo no Espírito. É uma ação conjunta que supõe:
a) Sentir-se convocado por Deus, ou seja, toda ação litúrgica começa por uma convocação para a reunião, o encontro de pessoas;
b) Participação consciente e ativa, ou seja, a participação consiste na integração da pessoa na assembleia litúrgica, formamos um corpo, o corpo do Senhor. A pessoa deve inserir-se num agir comunitário;
c) Agir corresponsável – significa que a ação litúrgica requer corresponsabilidade de todos na assembleia. Todos devem tomar parte nas ações litúrgicas fazendo com empenho.
A ação litúrgica da Igreja não é uma ação desordenada. Ela é um espaço onde se manifesta os dons e carismas do Espírito Santo e se desenvolvem como serviço para a edificação do corpo de Cristo, que é a Igreja. Estes serviços nas ações litúrgicas se transformam em ministérios, funções e ofícios. O Espírito Santo distribui seus dons e carismas para o bem comum de todos. Os ministérios e outros serviços prestados na ação litúrgica não são propriedade de ninguém, mas dom para toda a comunidade. A assembleia litúrgica é uma realidade ministerial, onde cada um executa sua ação ministerial específica para o bem do conjunto.
2. A LITURGIA COMO AÇÃO INCULTURADA
Quando falamos da liturgia como ação, esta ação se dá por meio de gestos, palavras, sinais, símbolos, silêncio, etc. É uma ação concreta e contextualizada numa determinada realidade, numa cultura concreta. A ação de Deus é uma ação encarnada, assim como a ação litúrgica é uma ação encarnada numa cultura específica. Se Deus optou por ter um rosto entre nós, também a liturgia precisa ter um rosto, um jeito, precisa ser situada historicamente. É neste sentido que falamos que a liturgia é uma ação inculturada.
A liturgia cristã, ao se formar, passou por um longo processo de inculturação de elementos culturais dos lugares onde a fé cristã se fazia presente. A liturgia não nasce como algo totalmente novo, mas tendo suas raízes na herança judaica sinagogal, ela vai incorporando elementos das culturas que estavam em harmonia com a fé e a tradição. Também acontece um processo de exclusão de tudo o que não era compatível com a fé cristã. Todo o processo de inculturação da liturgia acontece pelo método da assimilação e reinterpretação dos ritos, sinais, símbolos, gestos, etc. conferindo a estes um novo significado a partir da fé em Jesus Cristo. Recebem elementos cristãos.
A incorporação de elementos cultuais e culturais de diversas culturas começa dentro do judaísmo e logo atinge o mundo helênico. De uma postura inicialmente rígida, aos poucos os cristãos passam a assumir elementos da cultura pagã à liturgia.
Após o edito de Milão a liturgia sofre profundas influências da cultura romana. Antes os cristãos se reunião nas casas (domus eclesiae). Com o edito, as celebrações passam para as basílicas romanas. O rito romano se enche de solenidade. Os cerimoniais pontificais eram adaptações dos cerimoniais da corte. A Igreja institui suas festas litúrgicas em substituição às festas pagãs, etc.
Não pretendemos abordar todo o processo da formação da liturgia cristã nos primeiros séculos do cristianismo, pois não é nosso objetivo nesta reflexão. Mas levantamos alguns elementos para percebermos que a liturgia cristã se forma tendo como base a cultura onde a fé se torna presente. Este processo é contínuo, de modo que ainda hoje é necessário que a liturgia seja inculturada às diversas realidades dos diferentes povos onde a fé cristã está presente. É neste sentido que o Concílio Vaticano II pretendeu reformar toda a liturgia da Igreja, para facilitar o processo de inculturação da mesma aos diferentes povos e culturas. “A Igreja não pretende impor a uniformidade litúrgica. [...] Interessa-lhe manter e incentivar as riquezas e os dons das diversas nações e povos” (SC 37) .
A reforma da liturgia e principalmente com o retorno à liturgia romana clássica, ou seja, aquelas que os cristãos de Roma celebravam nos primeiros séculos do cristianismo, serviu para que sobre esta base sólida, pudesse ser incorporado elementos das diferentes culturas, enriquecendo a própria liturgia e dando a ela um rosto específico em cada lugar onde se celebra, desde que o que é substancial à liturgia, ao rito romano, não seja ferido. Assim se expressa a Constituição Conciliar: “Mantida a unidade substancial do rito romano, admite-se, na própria revisão dos livros litúrgicos, legítimas variações e adaptações aos diversos grupos, regiões e povos, principalmente nas missões” (SC 38).
3. AS TENTATIVAS DE REFORMA DA LITURGIA ROMANA
O Concílio Vaticano II empreendeu uma profunda reforma da liturgia romana. Para isto foi buscar na liturgia romana clássica sua forma mais pura para reformar toda a liturgia. Houve várias tentativas de reforma da liturgia ao longo da história da Igreja e da própria liturgia. De modo que temos as reformas dos papas Gregório VII, conhecida como reforma gregoriana, Inocêncio III e a própria reforma do Concílio de Trento que, embora tendo seus saldos positivos, terminou por engessar a liturgia romana, não permitindo nenhuma adaptação posterior a ele.
O Concílio de Trento tinha como principal preocupação impedir os abusos que estavam ocorrendo na liturgia e que eram alvos de constantes críticas dos reformadores protestantes, porém não conseguiu devolver à liturgia seu caráter mais primitivo de simplicidade, clareza, sobriedade, etc. A reforma do Concílio de Trento não conseguiu alcançar a liturgia no seu período clássico, mas deu continuidade à tradição medieval. A liturgia continuou algo privado e sem a participação do povo. O ponto negativo de Trento foi que caiu no fixismo e no rubricismo litúrgico.
No ano de 1786 aconteceu o chamado Sínodo de Pistóia que propôs uma reforma da liturgia em que se procurava voltar ao autêntico espírito e forma mais clássica e pura da liturgia romana. Infelizmente não obtiveram muito êxito, porém, ao que nos parece, este Sínodo pode ter sido o advento do que mais tarde, no início do século XX, vem a ser o movimento litúrgico.
O movimento litúrgico propôs um retorno à liturgia romana clássica, através de pesquisas históricas e teológicas sobre a tradição litúrgica. O papa Pio XII descreve este movimento como sinal da providência de Deus no nosso tempo, como um movimento do Espírito Santo na Igreja. Foi graças ao movimento litúrgico que o Concílio Vaticano II pôde abrir as portas da Igreja para uma verdadeira reforma e adaptação da liturgia e redigir seus princípios. O objetivo do movimento litúrgico é alcançado pelo Concílio Vaticano II que procura voltar à simplicidade original da liturgia e à clareza do rito Romano, possibilitando sua adaptação às mais diversas culturas e tradições dos povos. É sobre esta base que podemos falar de inculturação da liturgia a partir da reforma litúrgica empreendida pelo Concílio Vaticano II.
4. A INCULTURAÇÃO DA LITURGIA NO CONCÍLIO VATICANO II
O retorno da liturgia romana clássica foi extremamente importante para o processo de inculturação da liturgia, pois o Concílio queria oferecer um modelo litúrgico, uma editio typica (edição típica), caracterizada pela sobriedade, simplicidade e clareza do rito romano, para que sobre esta base fossem realizadas as adaptações da liturgia romana conforme os costumes culturais de cada povo. Embora a inspiração da reforma fosse o período clássico da liturgia romana, alguns elementos posteriores permaneceram, de modo que podemos afirmar que a liturgia reformada do Concílio Vaticano II não foi totalmente pura, mas permanecendo elementos da liturgia de Pio V, da Idade Média, do período carolíngio e não apenas os elementos do período clássico da liturgia. Mas devemos olhar com naturalidade este fato. Não é possível eliminar por completo os períodos anteriores. “A restauração da forma clássica implicava devolver à liturgia as características próprias da celebrada em Roma [...] a saber: simplicidade, sobriedade, brevidade, praticidade e clareza” (RUSSO, 2007).
Podemos distinguir o processo de adaptação da liturgia empreendido pelo Vaticano II em duas etapas: a primeira que consiste na elaboração da editio typica (edições típicas) dos livros litúrgicos, fase esta já terminada, e a segunda que é o processo de adaptação dessa forma typica às várias culturas e necessidades pastorais. Nós estamos nesta segunda fase.
4.1. A SACROSANCTUM CONCILIUM E A INCULTURAÇÃO DA LITURGIA
O Concílio Vaticano II não usa o termo inculturação, mas fala de adaptação. Este conceito é posterior ao Concílio. Ele trata da adaptação da liturgia nos artigos 37-40 da Constituição Conciliar sobre a Liturgia Sacrosanctum Concilium. Estes números fazem parte de toda a seção e tratam da reforma da liturgia, que vai do artigo 21 ao 40. “Este bloco compreende três partes: a) introdução (= SC 37); b) a segunda parte (= SC 38-39) referente às variações legítimas dentro do rito romano, e finalmente c) a terceira parte (= SC 40) referente às adaptações mais profundas da liturgia” .
a) Princípios gerais da adaptação (SC 37)
O artigo 37 da Sacrosanctum Concilium começa dizendo que o Concílio não pretende impor uma uniformidade na liturgia. Ele mostra-se flexível diante dos elementos culturais que possam contribuir com a fé cristã. “O pluralismo proposto é de natureza cultural” (CHUPUNGCO, 1992). A Igreja propõe o rito romano (editio typica) como base para a adaptação. As igrejas podem admitir elementos das culturas desde que se harmonizem com o autêntico espírito da liturgia. Deste modo, este artigo fixa condições para a admissão desses elementos na liturgia. Adaptação litúrgica é, portanto, a admissão de elementos tirados das culturas e adaptados à liturgia para o bem do grupo particular . Enquanto a SC 4 fala dos ritos já reconhecidos, a SC 37 vai além, e fala dos novos ritos que possam surgir, tendo como base o rito romano.
b) Primeiro grau de adaptação (SC 38-39)
Estes dois artigos falam das diversidades legítimas no rito romano, desde que salve a unidade substancial. Esta unidade substancial é garantida pelos livros litúrgicos oficiais, onde são apontados os casos de adaptações. Essas adaptações não afetam nem a estrutura fundamental nem a inspiração do rito romano. As adaptações não equivalem somente às partes externas da liturgia, mais também ao rito, a estrutura e ao texto, desde que esteja prescrito nos livros. Refere-se aos sacramentos, sacramentais, procissões, língua litúrgica, música sacra e arte litúrgica (cf. SC 39).
SC 38 enumera as diversas ordens a que se deve adaptar a liturgia: os vários grupos étnicos, regiões e povos, principalmente em terras de missão. A adaptação supõe neste caso, a possibilidade de variações na mesma região.
c) Segundo grau de adaptação (SC 40)
O objetivo deste artigo é de aplicar à liturgia o princípio de adaptação nas atividades missionárias. Mais o texto final permite que também nas igrejas locais fora das terras de missão possam ser feitas adaptações. SC 40 faz referência a uma adaptação mais profunda na liturgia. Por exemplo, nos livros litúrgicos. Este artigo propõe o procedimento para este tipo de adaptação: o primeiro as conferências episcopais propõe a Santa Sé para aprovação; o segundo, admite o que é essencialmente necessário e depois apresenta para a Santa Sé aprovar; o terceiro propõe a assistência de peritos e especialistas.
Tanto a SC 37 quanto a SC 40 falam de elementos culturais que podem ser admitidos na liturgia: tradições, costumes, temperamentos e índole, qualidades e dotes de espírito dos vários povos. Enquanto SC 38-39 prevê que o rito seja adaptado as culturas, SC 40 considera a possibilidade de admitir elementos das culturas na liturgia romana.
5. ADAPTAÇÃO, ACULTURAÇÃO E INCULTURAÇÃO
Depois de refletido os princípios da adaptação litúrgica que o Concílio Vaticano II propôs, agora precisamos clarear o que vem a ser de fato a inculturação da liturgia. Podemos distinguir três etapas da reforma da liturgia romana: adaptação, aculturação e inculturação.
a) A primeira etapa refere-se à adaptação da liturgia romana nas diferentes culturas. Temos neste processo a passagem do latim para a língua vernácula e as edições típicas (editio typica) dos livros litúrgicos com suas traduções. O resgate da liturgia romana clássica servirá de base para todo o processo.
b) A segunda etapa podemos chamar de aculturação, ou seja, o processo de encontro de duas culturas, de interação cultural. Refere-se ao encontro da liturgia romana com as diversas culturas. Para alguns autores este seria o primeiro passo para a inculturação. É o processo em que se faz um estudo comparativo entre a liturgia romana e os elementos culturais correspondentes. Conforme a SC, as conferências episcopais “decidirám com competência e prudência o que se pode e é oportuno admitir no culto divino” .
"A aculturação litúrgica é a interação entre a liturgia romana e a cultura local. Ela consiste em estudar os elementos culturais que possam ser assimilados e em estabelecer o método para assimilá-los de acordo com as leis intrínsecas que governam tanto o culto cristão quanto a cultura [...] A aculturação é uma abordagem inicial que necessita ser completada pelo processo de inculturação" (CHUPUNGCO, 1992).
c) A terceira etapa é o que propriamente chamamos de inculturação. A inculturação é um processo pelo qual um rito, símbolos, gestos, etc., passam a ser dotado de um significado cristão. A estrutura original do rito é mantida, bem como os elementos rituais e celebrativos, porém modifica-se o significado. Podemos dizer que pelo processo de inculturação a liturgia passa a ter o rosto de cada povo.
6. O QUE É INCULTURAÇÃO DA LITURGIA?
Depois do Concílio Vaticano II, o tema da inculturação adquiriu status nas discussões da Igreja, passou a ser um elemento importante na transmissão do Evangelho. Como já vimos a inculturação da liturgia não é algo novo, mas dinâmico. A história da liturgia nos dá bons exemplos de como este processo sempre foi presente tanto na formação da liturgia romana como no seu desenvolvimento histórico. “A inculturação pode ser descrita como o processo pelo qual os textos de ritos usados no culto pela Igreja local estão de tal modo inseridos na estrutura da cultura, que absorvem seu pensamento, sua linguagem e seus modelos rituais” (CHUPUNGCO, 1992). A inculturação da liturgia consiste pois na inserção da liturgia romana em determinada cultura e na assimilação de seus elementos culturais (ritos, símbolos, gestos, linguagem, festas, música, arquitetura...), de modo que a liturgia passa a ter o jeito de quem a celebra.
A inculturação da liturgia não consiste em inventar algo novo, mas na admissão de elementos culturais no interior da liturgia, de modo que, a liturgia não seja algo estranho a nenhum povo. Os elementos fundamentais da liturgia permanecem, o que modifica é o jeito de pensar, a linguagem, sua ritualidade, etc., ou seja, os elementos externos, aqueles que são passíveis de mudanças. Como afirma a Constituição Conciliar sobre a Liturgia “há, na liturgia, uma parte imutável, de instituição divina, e outras sujeitas a modificações, que podem e devem variar no decurso do tempo” (SC 21).
Pela força da natureza da liturgia, os elementos culturais a serem assimilados devem submeter-se a uma avaliação crítica, de modo que estejam em harmonia com o verdadeiro espírito da liturgia. Outras manifestações culturais tais como: transe, hipnose, etc. não são compatíveis com a liturgia cristã. Estes elementos devem ser deixados de fora. “A inculturação litúrgica deve levar em consideração não só a doutrina da fé, mas também as exigências da liturgia cristã” (CHUPUNGCO, 1992).
Todo processo de inculturação comporta alguns riscos. Mesmo que o Concílio recomenda prudência, certos riscos sempre aparecerão. Faz parte do processo de inculturação da liturgia. Por isso a necessidade de se estudar profundamente os elementos culturais para averiguar se eles são compatíveis com a mensagem do Evangelho e com a natureza própria da liturgia cristã, para então ser admitido seu uso na liturgia. Mas, a respeito destes riscos falaremos mais adiante.
7. A CRIATIVIDADE NA INCULTURAÇÃO DA LITURGIA
Uma questão freqüente, que pode gerar confusão, é a respeito da criatividade na liturgia. Por criatividade não entendemos como que tirar do nada alguma expressão e introduzir à liturgia sem nenhuma ligação ou nexo com o que está sendo celebrado, e o que é pior, com a própria natureza da liturgia. Não se deve introduzir elementos estranhos à liturgia. “No processo de inculturação, os elementos da cultura que não conseguem harmonizar-se com a regra da fé, da moralidade e do culto cristão deverão ser deixados de lado” (CHUPUNGCO, 1992). Acertadamente Alberto Beckhäuser diz que “por criatividade não se deve entender tirar como que do nada expressões litúrgicas. A verdadeira criatividade é orgânica. Está ligada aos ritos precedentes” (BECKHÄUSER, 2004).
A criatividade em primeiro lugar consiste em celebrar bem a liturgia. Saber dar vida aos textos litúrgicos, para não se tornarem “letras mortas”. Como já afirmamos acima, não consiste em criar coisas estranhas à liturgia, mas celebrar com criatividade a liturgia. É saber adaptar os textos, ritos e símbolos litúrgicos à realidade onde se celebra. Criatividade é saber escolher os textos corretos para cada situação da vida da comunidade celebrante. É saber explorar com criatividade os diversos símbolos, ritos, orações, ministérios.
8. ALGUNS PERIGOS DA INCULTURAÇÃO
Também afirmamos que a inculturação comporta algum risco. Em primeiro lugar deve-se compreender bem o que significa inculturação da liturgia e qual o seu processo. Este processo é dinâmico e aberto, porém, fundamentado em critérios seguros, oferecidos pela Constituição Conciliar sobre a Liturgia, Sacrosanctum Concilium.
Algumas críticas ao processo de inculturação da liturgia têm também seu fundamento, visto que em alguns lugares e celebrações tem se introduzido elementos que não são adequados à ação litúrgica e muito menos à fé cristã. Por isso é preciso muita reflexão, estudo, antes de inserir determinados gestos, símbolos na liturgia.
Passaremos agora a apontar alguns riscos e até mesmo desvios, que comprometem todo o processo de inculturação da liturgia e demonstram um completo desconhecimento do que de fato seja este processo.
a) A liturgia é ação de Deus e da comunidade que celebra. Por este motivo, a liturgia tem que estar ligada com a vida concreta do povo que a celebra. Gestos, símbolos e ritos que causem estranhamento à própria comunidade não são recomendados à liturgia;
b) Deve-se evitar espetáculos folclóricos na liturgia. Liturgia não é espetáculo, é ação ritual, é encontro com Deus. Toda ação litúrgica tem que expressar o mistério celebrado;
c) É preciso evitar também imitações nas celebrações. Cada comunidade é diferente da outra. O fato de se ter feito algum coisa numa determinada comunidade não significa que tem que ser feito noutra. Pode não ter nada haver com a comunidade;
d) Hoje é comum falar das missas onde o padre dá “show”. A celebração não é um lugar para show e muito menos cantorias. O canto litúrgico está intimamente ligado à liturgia;
e) Não se canta na celebração porque a música é bonita e emociona a todos. Liturgia não é lugar de sentimentalismo. Ela expressa nossos sentimentos, mas não sentimentalismo. E o que é pior, quando este sentimentalismo é provocado por aqueles que deveriam zelar pela correta celebração da liturgia;
f) Não pode ser introduzido na liturgia gostos ou sentimentos pessoais ou de um grupo determinado. A liturgia é comunitária e deve expressar o mistério pascal de Cristo. Isto acontece muito entre os cantores que querem impor à liturgia e à comunidade seus gostos musicais;
g) Não se pode confundir participação litúrgica com “todo mundo faz tudo”. Cada um deve fazer somente aquilo que lhe compete. Há partes que cabem somente ao presidente, outras cabem à comunidade, e outras aos demais ministérios litúrgicos;
h) Está se tornando rotineiro em algumas celebrações introduzir elementos da religiosidade popular que não fazem parte da celebração. Um bom exemplo são as procissões com o Santíssimo Sacramento em plena missa. A celebração da eucaristia não é momento de adoração ao Santíssimo, mas refeição.
i) Inculturação e criatividade não é “inventurgia”, mas fazer com que a liturgia além de ser expressão do mistério de Deus, também expresse o mistério de nossa vida, usando a nossa linguagem;
j) Não se pode descuidar das normas litúrgicas e de seu núcleo central. Às vezes, em nome de uma suposta criatividade, passa-se por cima das normas litúrgicas e fere-se o núcleo central da liturgia.
Enfim, haveria muitos outros riscos e erros que poderíamos expor. Porém, não pretendemos esgotar o assunto. O importante é seguir os critérios da inculturação litúrgica para poder usar com liberdade a criatividade em nossas celebrações. Também não podemos fazer as coisas por iniciativa própria. Existem instâncias na Igreja que têm a responsabilidade de julgar e aprovar que elementos culturais sejam admitidos na liturgia, isto é claro. A Sacrosanctum Concilium esclarece esta questão quando diz que “na Igreja, a regulamentação da liturgia compete unicamente à autoridade, isto é, à sé apostólica e, segundo a norma do direito, aos bispos” (SC 22.1). Em seguida, diz que “ninguém mais, nem mesmo um sacerdote, seguindo a própria inspiração, pode acrescentar, tirar ou mudar alguma coisa na liturgia” (SC 22.3).
9. CONCLUSÃO
Para concluir nossa reflexão, todo processo de inculturação da liturgia, longe de prejudicar, tem sempre a enriquecer a liturgia e a própria Igreja. A Igreja não quer uma liturgia rígida, estática, mas favorece a diversidade mesmo na liturgia. “Tendo admitido, e admitindo ainda hoje, uma diversidade de formas e de famílias litúrgicas, a Igreja considera que esta diversidade, longe de prejudicar a sua unidade, valoriza-a” (CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, 2004). E o Concílio Vaticano II afirma que “de acordo com a tradição, o Concílio declara que para a santa madre Igreja todos os ritos legitimamente reconhecidos são igualmente dignos de respeito, devem ser observados e promovidos” (SC 4).
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
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