sexta-feira, 24 de outubro de 2014


A CELEBRAÇÃO LITÚRGICA DO MATRIMÔNIO

 

By Pe. Cristiano Marmelo Pinto[1]

 

1. Introdução

 

            A celebração litúrgica do matrimônio foi se desenvolvendo ao longo dos séculos na Igreja. Muitos de seus elementos foram absorvidos da celebração social do matrimônio nas culturas, principalmente da cultura greco-romana com alguns elementos do judaísmo, no que diz respeito ao caráter eucológico.

 

            Tendo já abordado sobre o processo de desenvolvimento histórico da celebração do matrimônio, pretendemos agora refletir sobre as partes que constituem a celebração litúrgica do matrimônio na Igreja.

 

            O Ritual do Matrimônio prevê duas situações para a celebração do matrimônio: a normal, que seria dentro da celebração da missa, e outra fora da missa. Iremos trabalhar a celebração dentro daquilo que seria sua normalidade, porém, não desconsiderando a possibilidade de sua realização fora da missa. Aliás, esta tem se tornado a maneira mais comum em nossas igrejas. Evidente que, no acompanhamento dos noivos, o sacerdote deve julgar sobre a conveniência de realizar uma ou outra forma do matrimônio.

 

2. O Ritual do Matrimônio (segunda edição típica)

 

            A segunda edição típica do Ritual do Matrimônio apresenta uma introdução geral bem elaborada. Nesta introdução geral, também chamada de praenotanda, estão consignadas as orientações doutrinais e pastorais acerca do matrimônio e sua celebração. Nesta introdução, a parte doutrinal aparece bem mais desenvolvida e enriquecida.

 

De forma bem concisa e vibrante, faz-se uma apresentação do matrimônio, à luz da história da salvação, expondo os diversos aspectos antropológicos, bíblicos, teológicos, morais e espirituais do matrimônio (n. 1-11). Destacam-se nela as alusões à aliança de Cristo com a Igreja e à ação do Espírito Santo, fonte da caridade, da qual brotam o amor indiviso e a mútua doação dos esposos[2].

 

Ela dá uma devida atenção aos aspectos práticos, relacionados com a preparação e celebração do matrimônio. No tocante às orientações para a preparação da celebração, a introdução fala que deve ser cuidadosa a celebração litúrgica e criteriosa a modalidade a ser utilizada, conforme a realidade pastoral (Cf. RM 29-31).

 

O Ritual do Matrimônio situa a sua celebração no contexto da celebração da eucaristia, atendendo a solicitação do próprio Concílio Vaticano II, que afirma na constituição Sacrosanctum Concilium que “habitualmente, celebre-se o matrimônio dentro da missa, após a leitura do Evangelho e homilia, antes da oração dos fiéis” (SC 78).

 

No rito latino, a celebração do matrimônio entre dois fiéis católicos normalmente ocorre dentro da santa missa, em vista do vínculo de todos os sacramentos com o mistério pascal de Cristo. Na eucaristia se realiza o memorial da nova aliança, na qual Cristo se uniu para sempre à Igreja, sua esposa bem-amada pela qual se entregou. Portanto, é conveniente que os esposos selem seu consentimento de entregar-se um ao outro pela oferenda de suas próprias vidas, unindo-o à oferenda de Cristo por sua Igreja, que se torna presente no sacrifício eucarístico[3].

 

Deste modo, o Ritual do Matrimônio põe em relevo a relação entre a celebração da eucaristia, memorial da nova aliança, onde Cristo se une a Igreja, sua esposa, e a mútua entrega dos esposos por meio do consentimento mútuo.

 

            O novo ritual dá igual relevo à liturgia da Palavra. Ele é enriquecido com diversas opções de leituras, aplicando a prescrição conciliar de ampliar as leituras dos lecionários. A constituição SC diz: “Nas celebrações litúrgicas restaure-se a leitura da Sagrada Escritura mais abundante, variada e apropriada” (n. 35). O Ritual do Matrimônio é acompanhado de um lecionário (ver capítulo V do ritual), no qual são reunidas diversas leituras tanto do Antigo como do Novo Testamento, bem como salmos e versículos para a aclamação.

 

            O novo Ritual do Matrimônio procura revisar os ritos próprios da celebração do matrimônio. O ato mais importante é o consentimento dos esposos. O ritual destaca o papel dos contraentes, afirmando que está acima da função de quem preside a celebração. O rito do consentimento é precedido de um breve interrogatório acerca dos requisitos básicos para a validade do consentimento.

 

Os esposos celebram a sua aliança com Deus e entre eles. Manifestam o seu consentimento absolutamente livre, o seu amor em todas as circunstâncias, o seu desejo de fecundidade e o seu compromisso como pais e educadores; comprometem-se a partilhar todos os bens e a formar uma comunidade que tenha um só coração, uma só alma, tudo em comum, e a ser um só corpo[4].

 

            No número 35, a Introdução Geral do Ritual do Matrimônio destaca os principais elementos da celebração do matrimônio. São eles: a liturgia da Palavra; o consentimento; a bênção sobre os esposos e finalmente a comunhão eucarística.

 

            Entre os elementos principais da celebração do matrimônio está a benção dos esposos (bênção nupcial), na qual se invoca a bênção de Deus sobre os esposos[5]. Esta bênção é o elemento mais antigo e original da liturgia do matrimônio cristão. Tem raiz na tradição oriental e a liturgia ocidental a incorporou à missa nupcial, depois do Pai-nosso. Sobre a bênção nupcial falaremos mais adiante.

 

            Quando uma das partes não é católica, porém batizada, a introdução indica o rito do matrimônio sem missa (nn. 79-117). Quando uma das partes é um catecúmeno, ou seja, alguém que está se preparando para ser batizado, ou então entre uma parte não cristã, o rito a ser usado é o da celebração do matrimônio entre uma pessoa católica e outra catecúmena ou não cristã (nn. 152-178).

 

            Outra peculiaridade do novo Ritual do Matrimônio é a possibilidade do matrimônio ser assistido por uma testemunha leiga, na falta do presbítero ou do diácono.

 

Onde faltam sacerdotes e diáconos, o bispo diocesano, com a prévia aprovação favorável da Conferência dos Bispos e obtida a licença da Santa Sé, pode delegar leigos para assistirem aos matrimônios. Escolha-se um leigo idôneo, que seja capaz de formar os noivos e de realizar convenientemente a liturgia do matrimônio[6].

 

            A reforma do Ritual do Matrimônio, aplicando os princípios e determinações do Concílio Vaticano II, deu passos importantes e positivos para a celebração do matrimônio. Deu uma concepção geral da liturgia sacramental, tendo em conta os frutos obtidos anteriormente ao Vaticano II. Como afirma G. Flórez,

 

a aproximação às fontes bíblicas, patrísticas e litúrgicas, a tradução dos textos litúrgicos para as línguas vernáculas, a participação ativa da comunidade cristã nas celebrações, a valorização e utilização da Palavra de Deus para alimentar a fé no significado dos sacramentos e em geral nos aspectos teológicos da ação litúrgica são passos importantes para o desenvolvimento do sentido litúrgico dos fiéis[7].

 

            A reforma do Ritual do Matrimônio o enriqueceu grandemente. Deu unidade à ação litúrgica, fazendo com que a celebração do matrimônio seja composta com todos os elementos litúrgicos que têm significado importante na tradição litúrgica e na realidade antropológica e sacramental do matrimônio, podendo adotar elementos culturais que valorizem a própria celebração.

 

            A celebração do matrimônio, tal como é ordenada no novo Ritual do Matrimônio põe em relevo dois elementos que ao longo da história da celebração do matrimônio tiveram importância diferente: o primeiro é o consentimento dos esposos, elemento imprescindível da celebração, e o segundo é a bênção nupcial, que é o mais firme elo da tradição litúrgica do matrimônio.

 

            É evidente que a celebração litúrgica do matrimônio, tal como é disposta no novo ritual, exige uma boa preparação de todas as partes e, principalmente, dos noivos. “A preparação da celebração do sacramento deve ser feita com cuidado, enquanto possível, com a presença dos noivos”[8]. O pároco deve analisar as condições para propor a melhor forma de celebração, se dentro ou fora da missa; juntamente com os noivos, caso seja possível, escolher bem as leituras, que serão comentadas na homilia; a maneira dos noivos exprimirem o consentimento; a fórmula da bênção das alianças; a bênção nupcial, as preces e os cantos e até mesmo o modo da ornamentação (Cf. RM 29-31).

 

3. Características da liturgia do matrimônio

 

            A celebração dos sacramentos, em particular a eucaristia, constituem a expressão máxima da oração da Igreja. Conforme afirma o Concílio Vaticano II: “A liturgia é o cume para o qual tende a ação da Igreja, e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força” (SC 10). Por meio dos sacramentos, Cristo se une à Igreja para realizar nela sua obra de salvação. Sendo pois, oração de Cristo e da Igreja, os sacramentos expressão e comunicam por meio de palavras e símbolos e com uma ação litúrgica, o que a graça de Cristo quer realizar na Igreja e em seus membros.

 

            Para comunicar o mistério da graça de Deus, a liturgia sacramental busca, nos textos da Sagrada Escritura, sua fonte primordial, pois é nela que contém por excelência a revelação de Deus, mas também, recorre a tudo o que pode contribuir para expressar de maneira clara e objetiva o mistério celebrado.

 

            No que diz respeito à celebração litúrgica do matrimônio, a liturgia da Igreja recorre em primeiro lugar aos textos bíblicos em que se revela o projeto de Deus a respeito do matrimônio. Mas a liturgia sacramental não se limita apenas aos textos específicos, vai além, buscando em outros textos da Sagrada Escritura tudo o que pode ser útil para promover uma plena e frutuosa celebração do sacramento.

 

            Além dos textos bíblicos, a liturgia sacramental também fundamenta-se nos sinais, pois eles são meios para expressar, representar e comunicar as realidades significadas pelos sacramentos. G. Flórez afirma que:

 

o sinal entra pelos sentidos até o interior do espírito humano e tem uma força de projeção comunitária que a palavra nem sempre pode alcançar por si só. O sinal tem uma capacidade especial para fazer chegar à comunidade uma mesma mensagem, para significar, representar e comunicar a unidade e a universalidade da graça de Jesus. Porém, tem também suas limitações próprias. Precisa do concurso da palavra para poder expressar com clareza e luminosidade o que quer significar e comunicar[9].

 

            Na celebração do matrimônio cristão se encontra uma variedade de ritos, que procederam das mais diferentes culturas e tradições. Eles ajudam a sua celebração, porém, o mais essencial é a decisão dos noivos de se unirem. A identidade teológica do matrimônio está na decisão dos noivos de contraírem matrimônio perante Deus e a Igreja.

 

As palavras do consentimento matrimonial exercem a função de sinal no sacramento do matrimônio. Diferentemente de outros sacramentos, não se trata, nesse caso, de um elemento material, que se toma como meio de representação do que o sacramento significa e realiza, mas de um compromisso que os noivos contraem livremente e que os transforma em esposos[10].

 

            Embora a celebração do matrimônio tenha elementos da tradição bíblica e de diferentes culturas, a liturgia do matrimônio não é simplesmente um aglomerado de elementos ou ritos tirados dessas culturas e tradições, mas possui uma estrutura própria, que faz parte do culto da Igreja. Por meio da liturgia sacramental, a Igreja exerce sua missão de santificar os fiéis e de oferecer a Deus um culto agradável e verdadeiro.

 

Através da liturgia cristã do matrimônio, o Pai manifesta seu amor aos esposos, membros do corpo de Cristo, e a Igreja oferece ao Pai aquilo que mais lhe agrada, o amor de seu Filho, que se revela e manifesta no amor que os novos esposos sentem entre si[11].

 

            Deste modo, a união dos esposos se torna um sinal da união de Cristo com sua Igreja e como obra do Espírito Santo para enriquecer a Igreja com seus dons.

 

4. O lugar da celebração do matrimônio

 

            A Introdução Geral do Ritual do Matrimônio, bem como a Constituição Conciliar sobre a Liturgia Sacrosanctum Concilium, afirmam que o lugar normalmente do matrimônio é dentro da celebração da eucaristia. Porém, por motivos pastorais, há a possibilidade de ser celebrado fora da missa[12].

 

            Mas a celebração do matrimônio hoje esbarra em grandes dificuldades que devem nos questionar em relação ao modo de preparação para a sua celebração. Vê-se que os noivos, que procuram a Igreja para a celebração do matrimônio, encontram-se despreparados com uma fraca iniciação cristã, em alguns caso praticamente ausente. Como afirmo no meu recente livro,

 

outro problema que encontramos quando casais de noivos procuram a Igreja para pedir o sacramento do matrimônio é a falta de fé. Este constitui um dos mais graves problemas por revelar que o processo de iniciação cristã tem se mostrado ineficiente, não despertando em nossos jovens uma fé madura e responsável[13].

 

            Enquanto o processo de iniciação cristã não levar os jovens à maturidade da fé, parece que a melhor forma para a celebração do matrimônio é fora da missa. É inadmissível a celebração do matrimônio na missa em que os noivos não possam participar plenamente, inclusive da mesa eucarística.

 

            O Ritual do Matrimônio apresenta três possibilidades para a sua celebração: celebração do matrimônio dentro da missa; celebração do matrimônio fora da missa; e celebração do matrimônio entre uma pessoa católica e outra catecúmena ou não-cristã.             

 

5. As partes da liturgia do matrimônio

 

            As partes da liturgia do matrimônio são as seguintes:

a)      Ritos Iniciais (entrada e acolhida)

b)      Liturgia da Palavra

c)      Rito Sacramental do Matrimônio

d)      Liturgia Eucarística (quando celebrado dentro da missa)

e)      Rito Finais

 

Não faremos aqui um tratado sobre cada parte da celebração litúrgica do matrimônio. Mas queremos traçar alguns elementos dos ritos que compõem a celebração do matrimônio. Não consideraremos a princípio a celebração dentro da missa, embora seja o seu lugar por excelência, mas explanaremos o que é próprio do sacramento do matrimônio.

 

a) Ritos Iniciais (entrada e acolhida)

 

            Os ritos iniciais são compostos pelas seguintes partes: entrada dos noivos e acolhida, admoestação.

 

            O Ritual do Matrimônio prevê duas modalidades para ser feita à acolhida dos noivos na igreja. Na primeira modalidade o sacerdote dirige-se à porta da igreja e acolhe os noivos, mostrando que a Igreja participa da sua alegria. Em seguida faz-se a procissão para o presbitério[14]. A segunda modalidade dá-se da seguinte forma: o sacerdote dirige-se ao seu lugar no presbitério. Quando os noivos chegam ao seu lugar, o sacerdote os acolhe e cordialmente os saúda, mostrando que a Igreja participa da alegria deles[15].

 

            No entanto, é costume que a entrada dos noivos aconteça da seguinte forma: entra os padrinhos e madrinhas seguidas do noivo acompanhado da sua mãe. Aos pés do presbitério ele espera a chegada da noiva. A noiva entra conduzida pelo pai e encaminha lentamente até o noivo que está à sua espera. Estando próxima do presbitério, o pai a entrega para o noivo e os dois se dirigem para seu lugar, onde são acolhidos pelo sacerdote.

 

            O Conselho Pontifício para a Família orienta que:

 

com uma particular e concreta atenção aos nubentes e à sua situação, o celebrante, evitando de modo absoluto as preferências de pessoa, deverá, ele mesmo, interrogar-se sobre a verdade dos símbolos que a ação litúrgica usa. Assim, ao acolher e saudar os nubentes, os seus pais, se presentes, as testemunhas e a assembleia, será o intérprete vivo da comunidade que acolhe os nubentes[16].

 

            Terminada a acolhida o sacerdote faz o sinal da cruz e, em seguida, voltado para o povo, de braços aberto, saúda com uma das fórmulas propostas pelo Ritual do Matrimônio.

 

            Após esta saudação, o Ritual do Matrimônio propõe duas fórmulas de alocução para dispor os noivos à celebração do matrimônio. Na primeira fórmula o sacerdote dirige-se aos presentes convidando-os a participar e acompanhar os noivos com a amizade e a oração fraterna. Faz um esboço da celebração, convidando a todos para ouvir atentamente a Palavra de Deus e em seguida elevar as orações, por meio de Jesus Cristo, a Deus Pai, para que ele acolha, abençoe e mantenha os noivos sempre unidos. Na segunda, o sacerdote dirige-se diretamente aos noivos, mostrando a eles que a Igreja participa da alegria deles e os recebe de coração, bem como aos pais, parentes e amigos.

            Omite-se o ato penitencial. Se o matrimônio for celebrado dentro da missa, o Ritual do Matrimônio prevê que nos dias em que se permite as missas rituais, seja utilizada a missa de casamento com suas leituras próprias. Nos dias assinalados pela Tabela dos dias litúrgicos, usa-se a missa do dia, conservando a bênção nupcial e a fórmula própria da bênção final. Quando o matrimônio acontecer em dia de domingo, e é participado por toda a comunidade paroquial, deve-se celebrar a missa do dia, seja nos domingos do tempo de natal ou do tempo comum[17].

 

            No rito previsto para a celebração do matrimônio fora da missa, prevê-se uma oração para encerrar os ritos iniciais[18].

 

b) Liturgia da Palavra

 

            Após os ritos iniciais, realiza-se a liturgia da Palavra. Pode-se escolher três leituras para a celebração do matrimônio, sendo a primeira do Antigo Testamento, mas no tempo pascal, esta deverá ser tirada do Apocalipse.

 

            O Ritual do Matrimônio foi enriquecido imensamente com um conjunto de textos bíblicos que exprimem mais peculiarmente a importância e a dignidade do matrimônio no mistério da salvação[19]. Os textos selecionados para compor o lecionário do matrimônio são abundantes e adaptam as diversas situações.

 

            A liturgia da Palavra é parte integrante e essencial da liturgia. Ela é de grande importância para uma celebração digna e proveitosa para o matrimônio, tanto para os noivos como para toda a comunidade reunida.

 

            Após a proclamação do Evangelho faz-se a homilia. O sacerdote expõe o mistério do matrimônio cristão, a dignidade do amor conjugal, a graça sacramental e os deveres dos esposos.

 

Após a leitura do Evangelho, o sacerdote exponha, partindo do texto sagrado, o mistério do matrimônio cristão, a dignidade do amor conjugal, a graça do sacramento e os deveres do casal, levando sempre em conta a situação das pessoas[20].

 

            A Palavra de Deus proclamada na celebração do matrimônio expressa o sentido do amor humano revelado na história da salvação. No amor entre um homem e uma mulher revela-se o amor de Deus pelo povo da Aliança e de Jesus Cristo por sua Igreja. São Paulo irá dizer que “este mistério é grande” (Ef 5,32).

 

            c) Rito Sacramental do Matrimônio

 

            Terminada a liturgia da Palavra com a homilia, inicia-se o rito sacramental do matrimônio. Este rito é composto das seguintes partes: diálogo antes do consentimento, consentimento, aceitação do consentimento, bênção e entrega das alianças e preces dos fiéis.

 

Estando todos de pé, e tendo se colocado as testemunhas em lugar adequado, o sacerdote dirige aos noivos algumas palavras sobre a grandeza do sacramento do matrimônio conforme propõe o Ritual do Matrimônio ou usando outras palavras. Na fórmula proposta pelo ritual recorda-se a ligação existente entre o batismo e o matrimônio. Pelo batismo os noivos foram consagrados e agora com o sacramento do matrimônio, serão enriquecidos e fortalecidos por Cristo com a finalidade de que sejam fiéis um ao outro e assumam com responsabilidade os deveres do matrimônio.

 

            Diálogo antes do consentimento

 

            Os noivos são interrogados sobre a sua liberdade, a fidelidade e a aceitação de assumirem a educação dos filhos, dom de Deus para o casal. A este interrogatório cada um deve responder pessoalmente diante de todos.

 

N. e N., viestes aqui para unir-vos em matrimônio. Por isso, eu vos pergunto perante a Igreja: é de livre e espontânea vontade que o fazeis? (cada um responde: Sim!)

 

Abraçando o matrimônio, ides prometer amor e fidelidade um ao outro. É por toda a vida que o prometeis? (cada um responde: Sim!)

 

Estais dispostos a receber com amor os filhos que Deus vos confiar, educando-os na lei de Cristo e da Igreja? (cada um responde: Sim!)[21]

 

            Este interrogatório feito aos noivos sobre a liberdade, fidelidade e o desejo de terem filhos e os educarem na lei de Cristo e da Igreja, tem hoje grande importância, considerando que vivemos numa sociedade contrária em contrair compromissos permanentes, uma mentalidade divorcista e anti-natalidade. O interrogatório pretende proclamar publicamente durante a ação litúrgica do matrimônio e diante da comunidade reunida as condições necessárias para tornar possível o sacramento do matrimônio.

 

Os esposos celebram a sua aliança com Deus e entre eles. manifestam o seu consentimento absolutamente livre, o seu amor em todas as circunstâncias, o seu desejo de fecundidade e o seu compromisso como pais e educadores[22].

 

            Consentimento e aceitação

 

            O consentimento pode ser realizado de dois modos: uma fórmula dialogal onde os nubentes se declaram um ao outro dando o seu consentimento em receber a outra parte por esposa ou esposo. Sem dúvida que a primeira fórmula é a mais apropriada.

 

O noivo diz: Eu, N., te recebo, N., por minha esposa e te prometo ser fiel, amar-te e respeitar-te na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias de nossa vida.

 

A noiva diz: Eu, N., te recebo, N., por meu esposo e te prometo ser fiel, amar-te e respeitar-te na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias de nossa vida[23].

 

Na segunda fórmula, os noivos respondem as perguntas do sacerdote dando o seu consentimento. Esta segunda é proposta caso haja algum motivo pastoral.

 

Não há dificuldade de observar que o consentimento, expresso em forma de diálogo, é muito mais vívido para significar a parte dos esposos no sacramento, sem que seja obstáculo a questão teológica sobre o ministro do sacramento[24].

 

            O consentimento mútuo dos noivos é ponto essencial da celebração do matrimônio. Por isso, deve-se destacar bem a grandeza do gesto e suas palavras. Os noivos se doam e aceitam mutuamente diante de toda a comunidade reunida e diante de Deus.

 

            Após o consentimento mútuo, dá-se a aceitação do consentimento por parte do sacerdote que o acolhe “por uma frase deprecativa que coloca mais em destaque a ação de Deus do que o papel do ministro”[25].

 

Deus confirme este compromisso que manifestastes perante a Igreja e derrame sobre vós as suas bênçãos! Ninguém separe o que Deus uniu[26]!

 

Bênção das alianças

 

            O matrimônio possui um símbolo muito rico: as alianças. Como todo símbolo na liturgia, elas querem trazer à memória, tornar presente o que significam: o amor e a fidelidade que os nubentes prometeram um ao outro. Elas realçam este aspecto que deve ser lembrado pelos novos esposos por toda a vida. Porém, como todo símbolo utilizado na liturgia, elas devem também remeter os esposos para aquele que é o significado maior de sua união, que torna-se também, símbolo da união de Cristo com sua Igreja. Os esposos cristãos vivem seu matrimônio em Cristo e dele devem dar testemunho, expressando no amor humano o amor que fez com que Cristo entregasse sua vida incondicionalmente pela sua Igreja. Um amor que se doa constantemente, sem limites. A aliança é um dos elementos fundamentais na revelação de Deus com o povo de Israel, que encontra sua expressão definitiva em Jesus Cristo. Deste modo, a aliança estabelecida pelos esposos também possui um caráter definitivo e indissolúvel. Para viver o amor e a fidelidade simbolizados pelas alianças, os esposos invocam a ajuda de Deus.

 

            O sacerdote abençoa com uma das fórmulas propostas pelo Ritual do Matrimônio.

 

Deus abençoe estas alianças que ides entregar um ao outro em sinal de amor e fidelidade. Amém[27].

 

            Em seguida dá-se a entrega das alianças. Os esposos colocam as alianças no dedo anular um do outro dizendo a seguinte fórmula:

 

N., recebe esta aliança em sinal do meu amor e da minha fidelidade. Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo[28].

 

            É importante lembrar que durante a bênção e a entrega das alianças não deve haver música, pois neste momento, assim como no consentimento, a palavra tem a primazia. Todos devem ouvir bem o que os nubentes estão dizendo.

 

            Preces dos fiéis

 

            O rito sacramental do matrimônio é concluído com a oração da comunidade.  “A oração dos fiéis que se segue quer recolher a oração dos próprios esposos e de toda a assembleia por aqueles que se uniram em matrimônio”[29]. O matrimônio estabelece um novo lar e enriquece a comunidade dos fiéis. Por este motivo, todos elevam a Deus suas preces em favor dos esposos, do novo lar.

 

Mas, porque todos sabem o que a experiência humana revela todos os dias: que é grande a dificuldade que há de viver o amor na fidelidade, na generosidade, na unidade de um só coração, eis que a assembleia inteira elevará a Deus sua oração, para que a graça se faça tão imperativa que possa surpreender estas duas liberdades e não lhes permita se desligarem nunca[30].

 

            d) Liturgia Eucarística (quando celebrado dentro da missa)

 

            A forma ordinária ou normal para a celebração do matrimônio é dentro da missa[31]. Embora a forma corrente a que nos acostumamos celebrar este sacramento seja fora da missa, isto por diversas razões. A partir do Concílio Vaticano II, a liturgia eucarística para o matrimônio ficou muito enriquecida. O missal romano apresenta três opções de formulários para a celebração do matrimônio dentro da missa.

 

Para a liturgia eucarística do sacramento do matrimônio faz-se tudo segundo o rito da missa; destacando três momentos: a participação dos esposos na apresentação dos dons, a introdução da recordação dos esposos na oração eucarística, a comunhão sobre as duas espécies[32].

 

            Apresentação dos dons

 

            Na apresentação dos dons, o Ritual do Matrimônio propõe que o casal possa levar até o altar pão e vinho[33]. Este gesto deve ressaltar a íntima união entre o matrimônio e a eucaristia.

 

            Oração sobre as oferendas e Prefácios

 

            O Missal Romano apresenta três opções de oração sobre as oferendas. Porém, seu conteúdo não se difere muito. Para a oração eucarística, o missal apresenta três prefácios que são de livre escolha. Estes prefácios apresentam toda a teologia do matrimônio. Os três situam o matrimônio na perspectiva da economia da salvação, inserida no mistério pascal de Cristo.

 

O primeiro é gelasiano e o texto do sacramentário foi integralmente copiado. Vê na união conjugal a multiplicação dos filhos adotivos, de forma que a Igreja cresce graças ao matrimônio; o segundo destaca a aliança de Deus com seu povo; o terceiro exalta o amor de Deus que consagra o amor humano[34].

 

            Bênção nupcial

 

            Certamente o elemento mais característico do matrimônio dentro da liturgia eucarística é a bênção nupcial.

 

A importância dessa bênção é ressaltada pelo contexto do lugar em que se situa: logo depois do Pai nosso, e substituindo a oração seguinte ao Pai nosso e à da paz; isso põe esta oração numa clara relação com a comunhão eucarística, expressamente mencionada[35].

 

Como afirma Valter M. Goedert:

 

A bênção nupcial está inserida no contexto das bênçãos bíblicas, lembrando a fecundidade matrimonial como expressão da bênção divina e da aliança de Cristo com a Igreja, que fundamenta e dá sentido à fecundidade sacramental[36].

 

            O Ritual do Matrimônio apresenta três fórmulas para a bênção nupcial. A primeira encontra-se no n. 74. As demais fórmulas estão nos nn. 242-244 do ritual. A primeira fórmula já aparece no Sacramentário Gregoriano e foi muito usada na Igreja latina durante muitos séculos. As outras duas são de formação mais recentes. Por este motivo, daremos preferência à primeira fórmula para a bênção nupcial.

 

            Na segunda edição típica do Ritual do Matrimônio, a primeira fórmula passou por importantes mudanças ao final do texto, fazendo menção mais explícita ao Espírito Santo.

 

            G. Flórez afirma que, o novo ritual na sua segunda edição típica,

 

introduz novidades oportunas na fórmula litúrgica da bênção nupcial. Em primeiro lugar, na exortação inicial, o sacerdote pede à comunidade que ore para que Deus derrame a bênção de sua graça sobre os novos esposos, não somente sobre a esposa (n.73). A oração que figura no texto da missa consta de uma tríplice invocação e de uma tríplice prece e termina pedindo pelos dois esposos (n. 74). A tríplice oração atende primeiro a ambos os esposos, depois à esposa e em terceiro ao esposo[37].

 

            As mudanças mais importantes são as seguintes: introduz-se um parágrafo sobre o esposo, de modo que não somente a esposa é destinatária da bênção, mas ambos; resume-se o elenco das santas mulheres que a Sagrada Escritura apresenta como exemplo de esposa e mãe, por motivo catequético; e a conclusão, praticamente nova.

 

            Acrescentou-se ao ritual, como já havíamos dito, outras duas fórmulas para a oração da bênção nupcial. A primeira faz uma tríplice invocação em favor dos esposos (n. 242). A segunda, mais breve, intercede numa mesma prece sobre ambos os esposos (n. 244).

 

            Nos três formulários de bênção aparece uma invocação a Deus pedindo que envie sobre os esposos o Espírito Santo. “Enviai sobre eles a graça do Espírito Santo, para que, impregnados da vossa caridade, permaneçam fiéis na aliança conjugal” (primeiro formulário); “infundi em seus corações a força do Espírito Santo” (segundo formulário); e “que a força do Espírito Santo inflame, do alto, os seus corações” (terceiro formulário).

 

            Quanto ao conteúdo do primeiro formulário, diz G. Flórez:

 

A bênção nupcial começa evocando três dados que são decisivos para a compreensão do sacramento do matrimônio: a união do primeiro casal querida por Deus, a união de Cristo com a Igreja significada no matrimônio e a bênção que Deus faz do matrimônio. As preces que prolongam a bênção nupcial pedem a graça e a fidelidade para os esposos; o amor, a paz e as virtudes das santas mulheres da Bíblia, para a esposa; e um coração cheio de confiança, respeito e amor por sua esposa, para o esposo. A bênção conclui pedindo a unidade dos esposos na fé e na obediência a Deus, na fidelidade conjugal e na integridade dos costumes, a fim de que possam dar testemunho de Cristo e alcançar a bem-aventurança dos santos[38].

 

            A bênção nupcial vem ganhando notável importância nas adaptações do Ritual do Matrimônio, que pede para que ela não seja omitida e que se faça com a mais devida solenidade. Deste modo procura-se recuperar e revalorizar um dos elementos mais característicos da celebração do matrimônio.

 

            A comunhão

 

            É previsto que o casal possa comungar sob as duas espécies, juntamente com seus pais, testemunhas e parentes. Também no rito fora da missa, o casal poderá receber a comunhão eucarística. Deve-se, porém, observar a conveniência de haver ou não a comunhão.

 

e) Ritos finais

 

            A celebração do matrimônio é concluída com uma última bênção. Esta bênção pode ser simples, caso seja celebrado fora da missa, ou então, uma das bênçãos proposta pelo Ritual do Matrimônio[39].

 

6. Conclusão

 

            A celebração litúrgica do matrimônio se transformou num grande desafio pastoral e litúrgico para nossa Igreja. A liturgia do matrimônio tem se distanciado da sua finalidade tanto pelo despreparo dos noivos, que desconhecem o verdadeiro sentido sacramental do matrimônio e de sua celebração, como também por parte daqueles que deveriam zelar pela celebração digna do sacramento.

 

            A celebração do matrimônio deve expressar sua natureza e sacramentalidade, obedecendo aos requisitos litúrgicos para a realização da celebração. Com a renovação conciliar da liturgia, a celebração do matrimônio foi imensamente enriquecida. Para resgatar sua celebração como prescreve as normas e a própria natureza da liturgia, é preciso empenhar-se para promover uma adequada e correta preparação dos noivos.

 

            É evidente que o problema tem sua origem já na ineficiente iniciação cristã a que muitos têm recebido em nossas igrejas. Porém, é dever nosso, nos preocupar com a preparação e celebração do matrimônio.  Os documentos da Igreja falam de uma preparação remota (que tem início na catequese), uma preparação próxima (durante o noivado) e uma preparação imediata (em vista da celebração litúrgica do matrimônio). Esta preparação imediata é aquela que precede imediatamente à celebração do sacramento e se distingue das demais, porque agora tem lugar uma catequese mais diretamente litúrgico-sacramental sobre o batismo, sobre a confirmação [...], sobre a penitência, sobre a eucaristia e sobretudo sobre o sacramento do matrimônio[40].



[1] Presbítero da Diocese de Santo André, São Paulo. Mestre em Teologia Sistemática com Especialização em Liturgia pela PUC-SP. Membro da coordenação do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Liturgia, Ciência e Cultura da Faculdade de Teologia da PUC-SP. Coordenador da Comissão Diocesana de Liturgia da Diocese de Santo André.
[2] CLEMENTE, José Carlos Isnard, “Apresentação”. In: Ritual do Matrimônio. São Paulo: Paulus, 1993.
[3] Catecismo da Igreja Católica, n. 1621.
[4] PAREDES, José Cristo Rey García. O que Deus uniu... p. 412.
[5] FLÓREZ, Gonzalo. Matrimônio e família... p. 289.
[6] RM, n. 25; CIC, cânon 1112.
[7] FLÓREZ, Gonzalo. Matrimônio e família... p. 291.
[8] RM, n. 29.
[9] FLÓREZ, Gonzalo. Matrimônio e família... p. 277.
[10] Ibidem, p. 277.
[11] Ibidem, p. 278-279.
[12] Cf. RM. n. 29; SC 78.
[13] PINTO, Cristiano Marmelo. Celebrar o matrimônio hoje. p. 44-45.
[14] RM, nn. 45-47.
[15] RM, nn. 48-51.
[16] CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A FAMÍLIA. Preparação para o sacramento do matrimônio, n. 67.
[17] Cf. RM, n. 54.
[18] Cf. RM, n. 89. Ver também outras orações propostas nos números 223 a 228.
[19] Cf. RM, nn. 179-222 (vários textos a serem usados no rito do matrimônio e na missa “pelos esposos”).
[20] RM, n. 57.
[21] RM, n. 60.
[22] PAREDES, José Cristo Rey García. O que Deus uniu..., p. 412.
[23] RM, n. 62.
[24] FERNÁNDEZ, Conrado F. Matrimônio. In: CELAM. Manual de liturgia III. São Paulo: Paulus, 2005, p. 282.
[25] ÉVENOU, J. O matrimônio. In: MARTIMORT, A. G. A Igreja em oração. Vol. 3. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 178.
[26] RM, n. 64. O Ritual do Matrimônio propõe ainda uma outra fórmula. Cf. n. 64, segunda fórmula.
[27] RM, n. 66. Outras fórmulas propostas pelo Ritual do Matrimônio, ver os nn. 229-230.
[28] RM, n. 67.
[29] BOROBIO, Dionisio. Celebrar para viver: liturgia e sacramentos da Igreja. São Paulo: Loyola, 2009, p. 382.
[30] CHARBONNEAU, Paul-Eugène. Curso de preparação ao matrimônio. São Paulo, Herder, 1971, p. 147-148.
[31] Cf. RM, n. 29.
[32] DANNA, Valter. Due cuori, una Chiesa: percorso per la preparazione dei fidanzati alla vita cristiana nel matrimonio. Torino: Effata Editrice, 2004, p. 101.
[33] Cf. RM, n. 70.
[34] NOCENT, Adrien. O matrimônio cristão. In: NOCENT, A. Os sacramentos: teologia e história da celebração. (Anamnesis 4), São Paulo: Paulinas, 1989, p. 400-401.
[35] FLÓREZ, Gonzalo. Matrimônio e família... p. 283.
[36] GOEDERT, Valter Maurício. Casamento: fidelidade na esperança. São Paulo: Paulinas, 2005, pp. 80-81.
[37] FLÓREZ, Gonzalo. Matrimônio e família... Nota 43. p. 290.
[38] Ibidem., Nota 44. p. 290.
[39] Cf. RM, nn. 77.249-250.
[40] BOROBIO, Dionisio. Patoral dos sacramentos. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 251.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

A Reforma do Ano Litúrgico
a partir do Concílio Vaticano II
By Pe. Cristiano Marmelo Pinto

Introdução

Ainda no calor das comemorações dos 50 anos do Concílio Ecumênico Vaticano II, a 6ª Semana Diocesana de Liturgia se dispõe a tratar de um dos assuntos cruciais de nossa liturgia: o ano litúrgico. Compreender o valor sacramental e o seu desenrolar contribuirá de maneira determinante para que nossas celebrações litúrgicas sejam conforme os anseios do Concílio Vaticano II. Seu principal objetivo foi resgatar a participação de todo o povo de Deus no ato litúrgico, de modo que a Igreja, Corpo Místico de Cristo, unida a Cabeça que é Jesus, possa obter a graça que emana de toda ação litúrgica. Participar significa: fazer parte, tomar parte, no acontecimento salvífico que é celebrado. É pois, ser inserido e inserir-se no mistério celebrado.

O mistério celebrado, ou seja, toda a história da salvação, que tem seu centro o mistério pascal de Cristo e se prolonga na história atual por meio da vivência dos cristãos discípulos e discípulas de Jesus Cristo, encontra seu desenvolvimento no desenrolar do ano litúrgico.

Por muito tempo houve um desvio de eixo na liturgia e consequentemente na celebração do ano litúrgico, dando muitas vezes lugar a vida dos santos e sua celebração, do que o próprio mistério de Cristo que, embora deva ser celebrado na vida de seus discípulos que alcançaram a salvação eterna, não era considerado a centralidade de nossa liturgia.

Não se pode, contudo negar que no decorrer dos séculos, as festas dos santos foram aumentando em número desproporcionado. Por isso o santo Concílio justamente decretou: para que as festas dos santos não prevaleçam sobre as festas que comemoram os mistérios da salvação, muitas delas ficarão a ser celebradas só por uma Igreja particular ou nação ou família religiosa, estendendo-se a toda a Igreja apenas as que recordam santos de importância verdadeiramente universal.[1]

O Concílio Vaticano II ao tratar do ano litúrgico procura devolver a centralidade do mistério pascal de Cristo na liturgia, resgata o sentido do tempo na liturgia como lugar de vivência da obra propõe algumas modificações a serem realizadas.

Nossa reflexão pretende abordar tão somente do que é tratado na Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, que dedicou todo um capítulo da referida constituição para tratar do ano litúrgico e sua reforma. Ele é abordado nos números 102 a 111. O Concílio abordou aquilo que era necessário e mais urgente, deixando para que as devidas adaptações e reforma do calendário litúrgico fossem realizadas posteriormente.

Natureza do ano litúrgico

A santa mãe Igreja considera seu dever celebrar, em determinados dias do ano, a memória sagrada da obra de salvação do seu divino Esposo. Em cada semana, no dia a que chamou domingo, celebra a da Ressurreição do Senhor, como a celebra também uma vez no ano na Páscoa, a maior das solenidades, unida à memória da sua Paixão.

Distribui todo o mistério de Cristo pelo correr do ano, da Encarnação e Nascimento à Ascensão, ao Pentecostes, à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor.

Com esta recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de torná-los como que presentes a todo o tempo, para que os fiéis, em contacto com eles, se encham de graça (SC 102).

A Igreja celebra a obra de salvação na experiência do tempo lunar que, que forma as semanas. Na experiência semanal do tempo, temos a celebração semanal da páscoa, o Dia do Senhor, o domingo. Temos a celebração semanal da páscoa, o domingo, e a celebração anual da páscoa, o Tríduo Pascal.

Nem sempre se utilizou a expressão: “ano litúrgico”. Até o século XVI era denominado “ano da Igreja”. Um século mais tarde passa-se a usar a expressão: “ano cristão”. Foi nos primórdios do Movimento Litúrgico, com Próspero Guéranger que começa a ser chamado de “ano litúrgico”. Pio XII na Encíclica Mediator Dei, de 1947, incorpora a expressão no Magistério da Igreja, de modo que ele aparece na Sacrosanctum Concilium e demais documentos da reforma litúrgica.

Podemos definir o ano litúrgico como “a celebração do mistério de Cristo e da obra da salvação no decorrer do ano[2]. A Igreja revela e vive a totalidade do mistério de Cristo ao longo do ano litúrgico, desde a encarnação, nascimento até a ascensão e pentecostes, bem como a expectativa da vinda do Senhor. Como afirma Goedert:

O ano litúrgico reúne o ciclo das celebrações anuais da Igreja que atualiza o mistério de Cristo no tempo [...]. Não apenas recorda as ações de Jesus, nem somente renova a lembrança de ações passadas, mas sua celebração tem força sacramental e especial eficácia. Recorda-nos e faz presente o que Deus realizou pelos homens em Cristo e o que hoje continua a ser realizado pelo Espírito Santo na Igreja, como também o que devemos realizar para responder na fé e imitar na vida o exemplo de Cristo.[3]

A memória da Virgem

Na celebração deste ciclo anual dos mistérios de Cristo, a santa Igreja venera com especial amor, porque indissoluvelmente unida à obra de salvação do seu Filho, a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, em quem vê e exalta o mais excelso fruto da Redenção, em quem contempla, qual imagem puríssima, o que ela, toda ela, com alegria deseja e espera ser (SC 103).

ASacrosanctum Concilium no número 103 dá um lugar de destaque a Virgem Maria devido sua íntima união com a obra da salvação realizada em Jesus Cristo, seu Filho. Como afirma LLABRÉS: “A memória de Maria na liturgia aparece unida primordialmente à memória dos eventos salvíficos realizados por Jesus.[4]

Há de se destacar dois aspectos ao celebrar a memória da Virgem Maria na liturgia:

a) Na memória de Maria, a Igreja cultua a Deus

Ao celebrar a memória da Virgem Maria, a Igreja cultua a Deus que, como ela mesmo canta no magnificat:“Fez grandes coisas em seu favor” (Lc 1,49). De fato, ao celebrarmos os mistérios de Cristo na vida da Bem-aventurada Virgem Maria, damos graças ao Senhor que olhou para sua serva, Maria, e fez grandes coisas em seu favor. Maria aparece na Sagrada Escritura indissoluvelmente unida a obra de Cristo e, por conseguinte a obra da salvação (cf. Mt 1,22-23; Lc 1,28-38; 2,35; Jo 2,4-6; 19,25-27). Mesmo depois da paixão, morte, ressurreição e ascensão de Jesus aos céus, Maria continua unida a Igreja nascente (cf. Atos 1,14). Deste modo, celebrando a memória de Maria na liturgia, fazemos memória de toda a obra da salvação que Deus Pai realizou em seu Filho Jesus Cristo. “Ao honrar Maria, a Igreja quer glorificar a Cristo, de quem vêm a Maria todos os privilégios. A Igreja admira Maria, o fruto mais excelente da redenção”[5]. A Constituição Dogmática Lumen Gentium afirma que:

Este culto, tal como existiu sempre na Igreja, é de todo singular, mas difere essencialmente do culto de adoração que é prestado ao Verbo encarnado e do mesmo modo ao Pai e ao Espírito Santo, e muito contribui para ele. Pois que as várias formas de devoção para com a Mãe de Deus, que a Igreja aprovou – dentro dos limites da doutrina Sá e ortodoxa, segundo as circunstâncias como sinal de esperança segura e de consolação, aos olhos do povo de Deus peregrino (LG 68).

b) Maria aparece como modelo a ser imitado

Fazendo memória da Virgem Maria a Igreja celebra “tudo o que ela deseja e espera com alegria ser” (SC 103). A Constituição Dogmática Lumen Gentium nos oferece uma riquíssima reflexão acerca do valor de Maria para a vida da Igreja. Ela dedica todo o capítulo 8 para tratar de Maria no mistério de Cristo e da Igreja. A Constituição afirma que “A mãe de Deus é a figura da Igreja” (LG 63). E continua dizendo que:

A Igreja, contemplando a santidade misteriosa de Maria, imitando a sua caridade, e cumprindo fielmente a vontade do Pai, pela Palavra de Deus fielmente recebida torna-se também ele mãe: pela pregação e pelo batismo gera, para uma vida nova e imortal, os filhos concebidos do Espírito Santo e nascidos de Deus. E é também virgem, que guarda a fé jurada ao Esposo, íntegra e pura; e, à imitação da Mãe do seu Senhor, conserva, pela graça do Espírito Santo, virginalmente íntegra a fé, sólida a esperança, sincera a caridade (LG 64).

Santos e santas no culto da Igreja ao longo do ano litúrgico

A Igreja inseriu também no ciclo anual a memória dos mártires e outros santos, os quais, tendo pela graça multiforme de Deus atingido a perfeição e alcançado a salvação eterna, cantam hoje a Deus no céu o louvor perfeito e intercedem por nós. Ao celebrar o “dies natalis” (dia da morte) dos santos, proclama o mistério pascal realizado na paixão e glorificação deles com Cristo, propõe aos fiéis os seus exemplos, que conduzem os homens ao Pai por Cristo, e implora pelos seus méritos as bênçãos de Deus (SC 104).

A Igreja, segundo a tradição, venera os santos e as suas relíquias autênticas, bem como as suas imagens. É que as festas dos santos proclamam as grandes obras de Cristo nos seus servos e oferecem aos fiéis os bons exemplos a imitar. Para que as festas dos santos não prevaleçam sobre as festas que recordam os mistérios da salvação, muitas delas ficarão a ser celebradas só por uma igreja particular ou nação ou família religiosa, estendendo-se apenas a toda a Igreja as que festejam santos de inegável importância universal (SC 111).

ASacrosanctum Concilium dedica dois números ao culto e as festas dos santos. São os números 104 e 111. Segundo Julián L. Martín: “O culto litúrgico dos santos começou historicamente com a veneração dos mártires, uma forma de culto aos defuntos assumido pelos cristãos, mas relacionado desde os primeiros tempos com a morte do Senhor e com a confissão de seu senhorio pascal.”[6]

O primeiro culto aos santos a se desenvolver na Igreja foi o culto aos mártires. Para Bergamini: “Este culto não é senão um aspecto do mistério pascal. Se os mártires, com seus sofrimentos, testemunharam Cristo, com maior razão é Cristo que neles testemunhou o Pai.[7] O culto dos mártires inicialmente era somente local. Com o tempo passou-se para outras Igrejas e posteriormente estendeu-se para a Igreja Universal.

Com o passar dos séculos, foi-se acrescentando outros santos ao calendário litúrgico. Porém, foi-se sobrecarregando o calendário litúrgico com comemorações dos santos a tal ponto de obscurecer a celebração do mistério do Senhor no ano litúrgico. Desde modo: “Muitos domingos haviam sido suprimidos, pois seus lugares foram ocupados por celebrações de santos.”[8]Após tentativas fracassadas de restabelecer a primazia do mistério do Senhor sobre as festas dos santos, Pio X, mediante o Motu Proprio Abhinc duos annos, restaura a prevalência dos domingos sobre as festas dos santos.

Esta restauração tem seu coroamento no Concílio Vaticano II. Ele restabelece a centralidade do mistério pascal de Cristo sobre as demais festas. Conforme Auge: “O ano litúrgico celebra uma única realidade, o mistério pascal de Cristo. [...] A Igreja ao celebrar cada ano o‘dia natalis’ dos mártires e dos santos, celebra o ‘realizar-se’ neles do mistério pascal do Senhor.”[9] O santo participa da plenitude do mistério pascal de Cristo, e sua santidade existe em função desta participação.

Ao venerar os santos, a Igreja reconhece e proclama a graça vitoriosa de Cristo, único salvador e redentor dos homens. Ela rende graças ao Pai pela misericórdia que nos é concedida no Cristo e se torna presente e atuante em alguns de seus membros e, consequentemente, em todo o corpo da Igreja.[10]

No culto dos mártires e dos outros santos (cf. SC 104), prestando neles culto a Deus, podemos distinguir três aspectos:

1. A Igreja dá graças a Deus, admirável nos seus santos. Celebrando seu natalício (dia da morte), a Igreja prega o mistério pascal de Cristo;

2. Os santos são vistos como modelo a serem imitados. A graça divina recebida e vivida pelos santos os torna sinal e testemunho de fé, nos servindo de modelo a ser seguido;

3. Por seus méritos e presença diante de Deus, os santos tornam-se nossos intercessores junto a Deus.

O número 111 da Sacrosanctum Concilium restabelece a centralidade e a primazia do mistério pascal de Cristo sobre as festas dos santos. Para isso, a Igreja vai estabelecer critério para a permanência de alguns santos no calendário universal do ano litúrgico, bem como, para que outros santos permaneçam somente nas celebrações locais, seja numa Igreja particular (diocese), nação ou família religiosa. Permanecem no calendário litúrgico para toda a Igreja somente os santos de “inegável importância universal” (cf. SC 111).

Todavia, não contou apenas o critério da universalidade geográfica; também se levou em conta a universalidade da vida cristã, em virtude da qual deviam estar representados todos os estados de vida e toda a variedade de expressões e realizações das virtudes e da santidade cristãs, como: a ação missionária e caritativa, o apostolado dos leigos, a vida contemplativa, a ascese, etc. Igualmente a universalidade no tempo, em virtude da qual foram incorporados no calendário romano representantes de todos os séculos.[11]

Exercícios de piedade

Em várias épocas do ano e seguindo o uso tradicional, a Igreja completa a formação dos fiéis servindo-se de piedosas práticas corporais e espirituais, da instrução, da oração e das obras de penitência e misericórdia (SC 105).

A Constituição Sacrosanctum Conciliumtrata dos exercícios de piedade ou atos/práticas de piedade em dois números. No número 13 nos dá algumas orientações acerca dos exercícios de piedade. Diz-se que: “conquanto conformes às leis e normas da Igreja, são muito de se recomendar” (SC 13). Relaciona-os aos tempos litúrgicos ao afirmar que: “Importa, porém, ordenar esses atos de piedade, levando em conta os tempos litúrgicos, de modo que estejam em harmonia com a sagrada liturgia, nela se inspirem e a ele, por sua própria natureza muito superior, conduzam o povo cristão” (SC 13). De fato, como afirma Miguel Nicolau:

Os exercícios contribuirão para viver o principal da vida litúrgica, que há de ser o viver em graça de Deus e associar-se ao sacrifício de Cristo, e receber a sua graça sacramental na conveniente confissão e devota e preparada comunhão; ajudarão, com os modos de oração que ensinam, seguindo a vida de Cristo, a acompanhá-lo no ciclo do ano litúrgico, e a apreciar as orações litúrgicas, mediante aquele modo de orar, para que nos preparam na consideração repousada da oração até que o espírito se satisfaça.[12]

Fica evidente já no número 13 que os exercícios de piedade devem estar conformes e direcionar a vida litúrgica dos fiéis. Porém, faz-se necessário que esses exercícios acompanhem o mistério de Cristo ao longo do ano litúrgico, ajudando a melhor vivenciá-lo. É neste sentido que o número 105 da Sacrosanctum Concilium irá relacionar os exercícios de piedade com os tempos litúrgicos de modo que introduzam os fiéis na própria celebração do mistério de Cristo na liturgia.

Não se pode ignorá-la, muito menos descuidar dos exercícios de piedade. Como afirma o saudoso papa São João Paulo II: “A piedade popular não pode ser ignorada, nem tratada com indiferença ou desprezo, porque é rica em valores, e por si mesma expressa a atitude religiosa diante de Deu.”[13] De fato, “tanto as práticas de piedade do povo cristão quanto outras formas de devoção são acolhidas e recomendadas, desde que não substituam e não se misturem com as celebrações litúrgicas.”[14]

Para exemplificar essas práticas de piedade podemos citar algumas, tais como: o rosário, a oração do angelus, a via-sacra, as ladainhas, novenas, etc. Porém, aSacrosanctum Concilium chama a atenção para as “piedosas práticas corporais e espirituais, da instrução, da oração e das obras de penitência e caridade” (SC 105). Encaixa-se nessa perspectiva o jejum, a oração, a esmola, a espiritualidade do advento e quaresma, o repouso dominical e a prática da solidariedade e fraternidade. Mas, é importante que essas práticas não obscureçam a própria liturgia, ao contrário, devem direcionar para ela, mais ainda, devem estar em harmonia com a liturgia.[15]

Como afirma J. Castellano: “A piedade popular bem entendida é uma forma popular de proclamar o Evangelho, celebrá-lo, vivê-lo e adentrar na oração popular.”[16]Ele relaciona a piedade popular com os quatro pontos fundamentais presentes no Catecismo da Igreja Católica:

a) Sua unidade com a fé;

b) Sua harmonia com a liturgia;

c) Seu compromisso de vida cristã;

d) Apoio da oração pessoal e coletiva.

Segundo J. Castellano, o ano litúrgico é o caminho ordinário da vida da Igreja e a piedade popular nasce e se desenvolve nas pegadas das celebrações do ano litúrgico.[17]

Revalorização do domingo, Dia do Senhor

Por tradição apostólica, que nasceu do próprio dia da ressurreição de Cristo, a Igreja celebra o mistério pascal todos os oito dias, no dia que bem se denomina dia do Senhor ou domingo. Neste dia devem os fiéis reunir-se para participarem na Eucaristia e ouvirem a palavra de Deus, e assim recordarem a Paixão, Ressurreição e glória do Senhor Jesus e darem graças a Deus que os “regenerou para uma esperança viva pela Ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos”(1 Pedr. 1,3). O domingo é, pois, o principal dia de festa a propor e inculcar no espírito dos fiéis; seja também o dia da alegria e do repouso. Não deve ser sacrificado a outras celebrações que não sejam de máxima importância, porque o domingo é o fundamento e o centro de todo o ano litúrgico (SC 106).

O Concílio Vaticano II, dentro das preocupações da reforma da liturgia, propõe uma revalorização do domingo. O domingo constitui o núcleo elementar do ano litúrgico. O surgimento do domingo (Dies Domini – Dia do Senhor) está diretamente relacionado ao evento pascal de Cristo desde o início da Igreja. Como nos diz J. Ariovaldo: “O primeiro dia da semana se tornou, para os cristãos, um dia memorável, inesquecível, por causa da impressionante novidade da ressurreição.”[18]

Encontramos no número 106 da Sacrosanctum Conciliumas seguintes dimensões do domingo:

a) O próprio fato da sua tradição a partir da comunidade apostólica, do primeiro dia da primeira páscoa;

b) O domingo celebra o mistério pascal a cada oito dias;

c) O nome que se prefere é o de “dia do Senhor”;

d) Dia da reunião da comunidade cristã para escutar a Palavra e celebrar a Eucaristia;

e) Faz memória do mistério pascal de Cristo;

f) O domingo é para a comunidade cristã: festa primordial, dia de alegria e descanso;

g) Mantém sua prioridade sobre todas as outras celebrações;

h) É o fundamento e núcleo de todo o ano litúrgico.

São João Paulo II em seu pontificado dedica um documento para tratar da recuperação do domingo e sua santificação. Trata-se da Carta Apostólica Dies Domini, de 1998. Nela, ele afirma que: “O domingo, de fato, recorda, no ritmo semanal do tempo, o dia da ressurreição de Cristo. É a páscoa semanal, na qual se celebra a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, o cumprimento n’Ele da primeira criação e o início da nova criação.”[19] A Carta convida os cristãos “a redescobrir, com maior ímpeto, o sentido do domingo: seu mistério, o valor de sua celebração, seu significado para a existência cristã e humana.”[20]

A Carta Apostólica Dies Dominidivide-se em cinco capítulos bem distribuídos que nos apresenta o domingo em todas as suas dimensões:

Capítulo I – Dies Domini – o domingo é a celebração da obra da criação;

Capítulo II – Dies Christi – é o dia do Senhor ressuscitado e dom do Espírito;

Capítulo III – Dies Ecclesiae – é o dia da assembleia litúrgica;

Capítulo IV – Dies Hominis – dia de alegria, descanso e solidariedade;

Capítulo V – Dies Dierum – festa primordial e reveladora do sentido do tempo.

Eis ai um bom texto para refletir o domingo dentro das perspectivas do Concílio Vaticano II. Já há algum tempo, o domingo vem sofrendo certa desvalorização da parte dos muitos cristãos que o substitui por outras obrigações. É urgente recuperar sua importância para uma sadia vivência cristã de nossa fé, que tem sua centralidade no mistério pascal de Cristo, celebrado dominicalmente.

Revisão do ano litúrgico

Reveja-se o ano litúrgico de tal modo que, conservando-se ou reintegrando-se os costumes tradicionais dos tempos litúrgicos, segundo o permitirem as circunstâncias de hoje, mantenha o seu caráter original para, com a celebração dos mistérios da redenção cristã, sobretudo do mistério pascal, alimentar devidamente a piedade dos fiéis. Se acaso forem necessárias adaptações aos vários lugares, façam-se segundo os art. 39 e 40 (SC 107).

Oriente-se o espírito dos fiéis em primeiro lugar para as festas do Senhor, as quais celebram durante o ano os mistérios da salvação e, para que o ciclo destes mistérios possa ser celebrado no modo devido e na sua totalidade, dê-se ao Próprio do Tempo o lugar que lhe convém, de preferência sobre as festas dos Santos (108).

A seguir, o Concílio Vaticano II propõe uma revisão geral do ano litúrgico com a finalidade de que se adapte à nossa época as tradições e normas dos tempos passados, para que o ano litúrgico possa ser verdadeiro alimento espiritual para a piedade dos fiéis ao celebrar o mistério pascal de Cristo. É importante considerar que o ano litúrgico possui uma pedagogia. Para J. Bellavista no ano litúrgico dá-se uma visão plena de um único mistério pascal, considerado pelo Concílio Vaticano II, e que se expressa de maneira pedagógica.[21]

Para uma verdadeira pedagogia do ano litúrgico, o Concílio ordena que o próprio do tempo tenha a prioridade em relação às festas dos santos (cf. SC 108), para que os fiéis sejam levados a dar atenção em primeiro lugar às festas do Senhor, de modo que o ciclo integral dos mistérios da salvação seja convenientemente celebrado. Há uma certa hierarquia dos tempos e festas litúrgicas do Senhor, de modo que, ao longo do ano litúrgico, são assinaladas as etapas da história da salvação.

Segundo M. Nicolau:

Com a celebração das festas litúrgicas, que são o órgão mais importante do seu magistério ordinário, a Igreja realiza uma instrução e uma educação dos fiéis que ficaria prejudicada se as festas do Senhor não tivessem o devido relevo. O santoral não deve sobrepor-se a este“próprio” de cada tempo nem ofuscá-lo.[22]

A Quaresma

Ponham-se em maior realce, tanto na liturgia como na catequese litúrgica, os dois aspectos característicos do tempo quaresmal, que pretende, sobretudo através da recordação ou preparação do batismo e pela penitência, preparar os fiéis, que devem ouvir com mais frequência a Palavra de Deus e dar-se à oração com mais insistência, para a celebração do mistério pascal. Por isso:

a) utilizem-se com mais abundância os elementos batismais próprios da liturgia quaresmal e retomem-se, se parecer oportuno, elementos da antiga tradição;

b) o mesmo se diga dos elementos penitenciais. Quanto à catequese, inculque-se nos espíritos, de par com as consequências sociais do pecado, a natureza própria da penitência, que é detesta o pecado por ser ofensa de Deus; nem se deve esquecer a parte da Igreja na prática penitenciai, nem deixar de recomendar a oração pelos pecadores (SC 109).

A penitência quaresmal deve ser também externa e social, que não só interna e individual. Estimule-se a prática da penitência, adaptada ao nosso tempo, às possibilidades das diversas regiões e à condição de cada um dos fiéis. Recomendem-na as autoridades a que se refere o art. 22.

Mantenha-se religiosamente o jejum pascal, que se deve observar em toda a parte na sexta-feira da paixão e morte do Senhor e, se oportuno, estender-se também ao Sábado santo, para que os fiéis possam chegar à alegria da ressurreição do Senhor com elevação e largueza de espírito (SC 110).

Curiosamente o Concílio Vaticano II dá atenção especial ao tempo da quaresma, diferente dos demais tempos, como advento e páscoa. Não significa que os demais tempos litúrgicos sejam menos importantes, mas o Concílio propõe resgatar a natureza própria do tempo quaresmal, restabelecendo sua finalidade. A Sacrosanctum Concilium realça dois aspectos fundamentais da quaresma: a índole batismal e a índole penitencial. O Concílio deseja que por meio destes dois aspectos a quaresma seja de fato um tempo de preparação para a celebração do mistério pascal, por meio da leitura mais frequente da Palavra de Deus e da oração. Recomenda o uso mais abundante dos elementos batismais, próprios da liturgia quaresmal, bem como os elementos penitenciais. Destaca igualmente que, na catequese sejam apresentadas as consequências sociais do pecado e a natureza própria da penitência.

No número 110, a Sacrosanctum Conciliumprocura recuperar a prática penitencial na quaresma. Tradicionalmente, a oração, o jejum e a caridade (esmola) são tidos como exercícios quaresmais, exercícios de conversão evangélica. Porém, insiste para que não seja tão somente uma prática interna e individual, mas também externa e social, e por assim dizer, eclesial (cf. SC 110).

Para A. Beckhäuser: “o problema consiste em redescobrir o sentido autêntico de penitência conforme a Bíblia. Penitência é mudança de vida, penitência é sinônimo de conversão evangélica.”[23]Infelizmente a penitência com o passar do tempo, foi adquirindo um sentido meramente negativo de renúncia, mortificação. É claro que estes motivos são verdadeiros e válidos, porém, é preciso avançar no sentido próprio da penitência. Se ela é mudança de vida, é preciso cultivar o bem e recusar a prática do mal. Ela consiste em viver o mandamento do Senhor, que diz que se deve procurar amar a Deus e o próximo. Segundo São Leão Magno, os três exercícios quaresmais consiste em:

a) A oração – é o maior exercício da penitência, ou seja, viver como filhos de Deus;

b) O jejum – consiste na nossa relação com Deus e com o mundo criado;

c) A esmola (caridade) – trata-se de nossa relação com o próximo.

Tais exercícios em primeiro lugar devem nos ajudar a vivenciar melhor o mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Eles devem estar conformes a própria liturgia. São exercícios que nos ajudam a nos preparar para celebrar o mistério pascal de Cristo. Em segundo lugar, eles devem nos ajudar a viver mais coerentemente a prática do amor fraterno. Por isso estão relacionados ao nosso amor a Deus e ao próximo.

Além destes exercícios quaresmais, há outros que igualmente podem nos auxiliar na busca constante de Deus e do próximo. Temos por exemplo a via-sacra, os momentos penitenciais e no Brasil, por ocasião da quaresma, realiza-se todos os anos a Campanha da Fraternidade, que tem como finalidade voltar nossa atenção para a realidade social de nosso povo e buscar soluções evangélicas para solucioná-las.

A Constituição Sacrosanctum Conciliuminsiste ainda que se mantenha a prática do jejum pascal, se possível não somente na sexta-feira santa, mas também no sábado santo. Este jejum tem por finalidade nos fazer celebrar as alegrias pascais com espírito livre e aberto.

Conclusão

A Constituição Sacrosanctum Conciliumao pretender uma reforma geral da liturgia, não podia deixar de dar especial atenção ao ano litúrgico. Se nossa participação na liturgia consiste em penetrar no mistério do Senhor que é celebrado na liturgia, o ano litúrgico possui uma força pedagógica que nos faz adentrar passo a passo na história da salvação, e de modo particular no mistério pascal de Cristo.

Superando todo desvio de eixo que veio interferindo na celebração do ano litúrgico ao longo dos séculos, o Concílio Vaticano II devolveu a centralidade do mistério pascal de Cristo no ano litúrgico, reconduzindo a celebração dos santos e até mesmo da Virgem Maria em sua real relação com o mistério pascal. O próprio do tempo, ou seja, o mistério do Senhor, tem a prioridade sobre todas as demais festas do ano litúrgico. Também os exercícios de piedade devem estar em harmonia com os tempos litúrgicos, nos fazendo viver melhor o mistério celebrado.

Que procuremos valorizar ainda mais o ano litúrgico com seus tempos próprios, de modo que, possamos participar de maneira plena, consciente e frutuosa de nossa liturgia.


Bibliografia

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[1]PAULO VI. Motu proprio “Mysterii pascalis celebrationem”. In: Enquerídio dos Documentos da Reforma Litúrgica. Fátima, Secretariado Nacional de Liturgia, 1998, p. 128.
[2]MARTÍN, Julián López. A liturgia da Igreja: teologia, história, espiritualidade e pastoral. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 316; Cf. SC 102.
[3]GOEDERT, Valter Maurício. A Constituição litúrgica do Concílio Vaticano II: a Sacrosanctum Concilium a seu alcance. São Paulo: Ave Maria, 2013, p. 107-108.
[4]LLABRÉS, P. O culto a Santa Maria, Mãe de Deus. In: BOROBIO, Dionísio. A celebração na Igreja. Vol. 3. São Paulo: Loyola, 2000, p. 218.
[5]NICOLAU, Miguel. Concílio Vaticano II –Constituição Litúrgica: texto e comentário teológico-pastoral. Braga: Secretariado Nacional do Apostolado da Oração, 1968, p. 148.
[6]MARTÍN, Julián López. A liturgia da Igreja..., p. 406.
[7]BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: o ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 480.
[8] MORA, Alfonso. Os santos no ano litúrgico. In: CELAM. Manual de liturgia IV. São Paulo: Paulus, 2007, p. 95.
[9]AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 326.
[10]ADAM, Adolf. O ano litúrgico: sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 194.
[11] MORA, Alfonso. Os santos no ano litúrgico... p. 98.
[12]NICOLAU, Miguel. Concílio Vaticano II –Constituição Litúrgica... p. 45.
[13]JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Vicesimus quintus annus. (4/12/1988), n. 18.
[14]CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Diretório sobre piedade popular e liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, n. 2.
[15] Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Diretório sobre piedade popular e liturgia, n. 7.
[16]CASTELLANO, Jesús. Liturgia e vida espiritual: teologia, celebração, experiência. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 390.
[17] Cf. CASTELLANO, Jesús. Liturgia e vida espiritual... p. 403.
[18]DA SILVA. José Ariovaldo. O domingo páscoa semanal dos cristãos. São Paulo: Paulus, 1998, p. 14.
[19]JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Dies Domini: sobre a santificação do domingo. São Paulo: Loyola, 1998, n. 1.
[20] JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Dies Domini...n. 3.
[21]BELLAVISTA, Juan. El año litúrgico. In: Cuadernos Phases nº 14, p. 50-51.
[22]NICOLAU, Miguel. Concílio Vaticano II –Constituição Litúrgica... p. 154-155.
[23]BECKHÄUSER, Alberto. Sacrosanctum Concilium: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 132.