Liturgia e Beleza
Dom Piero Marini
1. A mudança trazida pelo Concílio
Todos os que têm certa idade, como eu, puderam viver as mudanças ocorridas na liturgia, graças à reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. Os livros litúrgicos foram renovados com uma grande riqueza de textos bíblicos e eucológicos jamais vistos anteriormente; as rubricas, os gestos e os movimentos foram simplificados; os espaços da celebração foram mais bem determinados; as vestes, os mobiliários, a iconografia, o canto e a música foram revistos. De uma liturgia romana caracterizada pela uniformidade (unicidade da língua, excesso de rubricas) passamos a uma liturgia mais próxima da sensibilidade moderna, aberta a adaptação às culturas, expressão de uma Igreja que considera a diversidade como valor positivo, possibilidade de enriquecer a unidade.
No que diz respeito às celebrações pontificais, já com Paulo VI, desde fevereiro de 1965, houve grandes reformas, libertando o rito litúrgico das etiquetas de corte. As celebrações televisivas passaram a falar aos povos de todas as raças e credos, revelando o papa como sucessor de Pedro, servidor dos servidores de Deus, e não como um príncipe medieval (vestes com rendas e brocados, luvas, rigidez dos corpos, demasiadas solenidades...).
A televisão exige um comportamento exemplar de todos os que atuam na liturgia; a câmera revela de uma maneira impiedosa os gestos com seus significados. Era necessário que a liturgia, sobretudo quando presidida pelo papa, fosse um exemplo de renovação, segundo o espírito do Vaticano II. A partir dessa referência, novas escolhas vão se fazendo: o altar despojado e sóbrio; estante digna para a proclamação da Palavra de Deus; simplicidade nos ornamentos a fim de que os ministros não parecessem “figurantes teatrais”; novo repertório de canto e música privilegiando uma execução com moderação dos instrumentos e acompanhada do silêncio. Surge a necessidade de restabelecer a participação dos fiéis à comunhão e de se introduzir a concelebração, há muito em desuso.
Para nós, sempre esteve claro que as celebrações papais deveriam ser modelos exemplares da beleza e da riqueza da reforma litúrgica católica de volta às fontes. O que mudou na liturgia após o Concílio? É apenas adaptação às diferentes culturas, de gestos, e cores; maior liberdade no desenvolvimento dos ritos e na aplicação das rubricas? É somente mudança no aparato externo correspondendo ao gosto atual pelo que se entende por belo?
Encontramos hoje diversas tendências na Igreja: há os que querem uma liturgia horizontal, mais comunitária e participativa e há os que preferem uma liturgia mais vertical e em destaque. De um lado existe a liturgia paroquial, de outro há as que expressam os movimentos de tendências carismáticas ou tridentinas ou ainda dos que se voltam apenas para o canto gregoriano.
2. O fundamento da beleza da liturgia
Existe um limite entre a emoção estética e o verdadeiro sentido espiritual? O que significa uma bela liturgia? A liturgia não é uma espécie de mercadoria que faz parte do “supermercado” da Igreja. Liturgia é, antes de tudo, obra de Deus, adoração, acolhida, gratuidade. Então, nós devemos nos perguntar quais são os critérios fundamentais da beleza na liturgia além dos gostos e das modas. Um grande erro seria aplicar simplesmente à liturgia os gostos profanos de beleza.
2.1. A liturgia, ação do Cristo e da Igreja
Para compreender a beleza da liturgia é necessário partir do conceito de Igreja como “sacramento, isto é, sinal de união com Deus e de unidade de todo gênero humano” (LG 1). A Igreja, por sua condição de “sinal” torna possível, de certa maneira, a percepção do Cristo como sacramento de salvação. É exatamente a partir dessa sacramentalidade que se articulam os sacramentos propriamente ditos. Sendo eles ação da Igreja, são também ação de Cristo, porque a Igreja não faz nada que o Cristo não lhe tenha dito e ensinado a fazer: “Faça isso em memória de mim” (Lc 22,19). Os sacramentos são as modalidades pelas quais Cristo nos comunica a sua salvação: “Quando alguém batiza, é o Cristo que batiza” (SC 7). São Leão Magno, diz: “o que era visível no Cristo passou para os sacramentos da Igreja”.
A liturgia é ação de Cristo e da Igreja; ela não se realiza no plano intelectual, mas repousa sobre o princípio da Encarnação e, portanto, comporta uma dimensão estética. Assim, nos gestos concretos que a celebração litúrgica requer, a Igreja prolonga e atualiza os gestos do Senhor Jesus. Antes de qualquer outra secundária beleza que possamos acrescentar, os gestos da liturgia têm em si a beleza e a estética dos gestos de Jesus.
2.2. A nobre simplicidade do amor
Os Evangelhos nos apresentam a gestualidade concreta e humana de Jesus: ele caminha, abençoa, toca, cura, eleva os olhos, reparte o pão, toma o cálice... Esses são gestos que a liturgia retoma nos sacramentos. Mas foi, sobretudo , às vésperas de sua Paixão que Jesus ensinou os gestos fundamentais que devemos realizar. Ele é o mestre de nossa educação litúrgica. Sua arte consiste em colocar o essencial nas pequenas coisas. O significado da liturgia só se torna transparente na simplicidade e na sobriedade. “Pai Santo, quando chegou a hora de o glorificar, como ele tinha amado os seus que estavam no mundo, ele os amou até o fim: durante a refeição que ele partilhava com eles, ele tomou o pão, partiu e o deu aos seus discípulos, dizendo: tomais e comei todos: este é o meu corpo entregue por vós. Da mesma maneira, ele pegou a taça cheia de vinho, deu graças e a deu aos seus discípulos...” (Missal Romano, Oração Eucarística IV).
O que torna belo o gesto do Senhor? A decoração da sala? A maneira de como preparada a mesa? A riqueza da toalha? Sim, tudo isso serve para colocar em destaque, como a moldura evidencia a beleza de uma pintura. Mas o sentido da beleza vai muito além. “Ele os amou até o fim... Ele tomou o pão”. É por isso que o gesto é belo. Quando a Igreja repete o gesto de Cristo, ela se torna bela porque se reconhece no gesto de amor do seu Senhor. O sentido estético da liturgia não depende em primeiro lugar da arte, mas do amor presente no mistério pascal. Para colaborar com a liturgia, a arte tem necessidade de ser evangelizada pelo amor. A beleza de uma celebração eucarística não depende da arquitetura, dos ícones, das decorações, dos cantos, dos ornamentos, da coreografia e das cores em si, mas da sua capacidade de deixar transparecer o mistério de Jesus em seu amor. Por meio dos gestos, das palavras e das orações litúrgicas, nós devemos fazer transparecer os gestos, a oração e a palavra de Jesus. É esse o mandamento que recebemos do Senhor: “Fazei isto em memória de mim”.
O estilo litúrgico, como o de Jesus, deve ser simples e austero. Segundo os padres do Concílio, nas celebrações, temos que nos tornar mestres da arte, da “nobre simplicidade” (SC 34).
2.3. Gesto, Palavra, espaço, tempo e ordem
Na liturgia, o gesto é sempre acompanhado pela palavra. Tudo se desenvolve como diz o Concílio, “per ritus et preces”, ritos e orações esclarecedoras, vivificadas pela palavra (cf. SC 48; 21; 59; 7; 24). A palavra e o gesto tem sempre necessidade, do tempo e do espaço. “O Verbo feito carne” teve necessidade do tempo e do espaço para dizer a sua palavra e realizar os seus gestos de salvação.
Porém, na liturgia, o espaço e o tempo são submetidos a uma ordem. Uma das funções do rito é ordenar. Com efeito, não existe liturgia sem indicações dadas pelas rubricas. Isto se atesta desde os mais antigos ritos litúrgicos. A beleza da liturgia é, portanto, fruto da ordem. A quase totalidade dos livros da reforma litúrgica, tem como palavra de título: Ordo. A ordem requerida pela liturgia diz respeito ao tempo, ao espaço, às relações interpessoais; muito mais, a liturgia exige a ordem em nós mesmos.
Quarenta anos após a Sacrosanctum Concilium, somos convidados a nos interrogar: os ritos e os gestos que realizamos são verdadeiramente os gestos de Cristo? A liturgia que celebramos é um espaço dado ao Cristo ou apenas reservado a nós mesmos? O tempo consagrado à liturgia é o tempo onde Cristo nos fala ou um tempo vazio? A liturgia é apenas uma seqüência de ritos, ou ela é uma fonte, algo que nos ordena interiormente e em relação às pessoas e ao cosmo? São questões que nos colocamos para esclarecer o sentido da participação ativa sobre a qual tanto insistiu o Concílio.
3. A atenção às exigências da Comunidade
A liturgia é a expressão mais completa do mistério da Igreja. Assim, é indispensável, em toda celebração, fixar a atenção em primeiro lugar sobre a assembléia e promover a sua formação. De fato, a assembléia é a imagem da Igreja que oferece, de certa maneira, a hospitalidade a Cristo e às pessoas que ele ama. O lugar da assembléia deve ser acolhedor e saudável, bem pensado quanto à disposição dos fiéis para proveito de cada pessoa participante e para expressar que se trata do Corpo de Cristo.
3.1. ícones e outras expressões
A liturgia requer a colaboração de nossos sentidos: a vista, a audição, o odor, o toque... Assim, ela recorre à contribuição dos ícones (imagens), da música, do canto, da luz, das flores, das cores, da coreografia. Incorpora também os elementos da criação: o vinho, a água, o pão, o sal, o fogo, as cinzas, etc... O louvor que se eleva na liturgia, não é um ato reservado somente ao ser humano: toda a criação é convidada a se unir a nós, dando glória ao Pai, pelo Cristo, no Espírito Santo. Além disso, a liturgia é um convite a construirmos uma relação harmoniosa com a criação.
Os espaços de celebração e seus componentes (a fonte batismal, o ambão, a cadeira, o altar...) não são apenas funcionais, são antes, manifestação da Igreja que revela, pela imagem, a identidade cristã. De fato, a liturgia deve revelar o sacerdócio comum dos fiéis assim como a estrutura ministerial da Igreja desejada pelo Cristo. A fonte batismal, o ambão, a cadeira e o altar exprimem o seio materno onde o cristão é gerado pelo Espírito Santo, o meio onde se nutre e vive sua comunhão com o Cristo e com seus irmãos. Esses elementos, de per si, são já um ícone (imagem). Portanto, é necessário vigiar para que as contribuições artísticas não obscureçam o sinal original.
3.2. A preparação das celebrações
Uma “bela” celebração depende da maneira como ela foi preparada por todos os participantes. Assim, todos os textos litúrgicos da reforma conciliar são introduzidos por um preâmbulo teológico e pastoral referente ao rito. Pequenos livros preparatórios podem ser publicações de grande valor artístico e catequético, pois a celebração não se deve explicar tudo, pois o fato litúrgico é um acontecimento, um ato de amor e não aula. É interessante promover o estudo e a pesquisa científica indo a fundo no sentido das celebrações.
3.3. Conclusão
Partindo da Igreja como sacramento para sublinhar a importância das ações e atitudes na liturgia, especialmente da ação de Deus: o Cristo, que na liturgia, se torna, ele mesmo, ação da Igreja. A beleza da liturgia é antes de tudo a simplicidade e o amor do gesto de Cristo, mas é também a beleza de nossos gestos e sinais e dos elementos da criação que a liturgia coloca em ordem e harmoniza no tempo e no espaço.
A beleza da liturgia exige sempre alguma renúncia da nossa parte: renúncia à banalidade, às fantasias, aos caprichos. É preciso dar à liturgia o tempo e o espaço que ela necessita. Nunca ter pressa. Mais que iniciativa nossa, é iniciativa de Deus que se manifesta na Palavra, na oração, nos gestos, na música, no canto, na luz, no incenso, nos perfumes. Portanto, devemos fazer silêncio, e o necessário vazio, para que as palavras e os sinais falem de Deus aos nossos sentimentos, mais que dos nossos sentimentos. Tratando da beleza na liturgia é necessário que reflitamos sobre alguns problemas ligados ao que fizemos com a reforma litúrgica nestes anos.
a) A participação ativa
Na fase da reforma, a participação tomou, muitas vezes, um aspecto exterior e didático que degenerou em uma espécie de participação forçada. A liturgia não é a soma de emoções de um grupo, nem é apenas o receptáculo de sentimentos pessoais. Ela é ação de uma comunidade, palavras e gestos no tempo e no espaço, transformando-nos e conduzindo-nos ao Verbo.
b) A presidência litúrgica
A verdade dos sinais exige qualidade da presidência da celebração. Quem preside a assembléia não é apenas visto mais é aprovado e julgado no desempenho da função “in persona Christi” ou, se preferir, como “ícone de Cristo” no Espírito Santo. No entanto, essa presidência não pode ser exercida sem levar em conta a qualidade da assembléia e sem ser capaz de responder às suas expectativas, pois, quem preside a assembléia litúrgica o faz também “in persona Ecclesia”. Portanto, deve fugir de toda forma de protagonismo para presidir como “aquele que serve” (Lc 22,27), à imagem daquele de quem é pobre sinal. Além do mais, a arte de presidir em sua forma mais perfeita e mais fecunda vai além do simples saber fazer, para tornar-se princípio de comunhão, da qual a assembléia litúrgica é eloqüente expressão.
c) A beleza e a dignidade do culto
No inicio do terceiro milênio é necessário passar a imagem de uma Igreja que reza e vive o Mistério de Cristo na beleza e na dignidade da celebração. Uma beleza que não é somente formalismo estético, mas que está fundamentada sobre “a nobre simplicidade”, capaz de manifestar a relação entre o humano e o divino. Trata-se da dinâmica da encarnação: o que o Filho único, cheio de graça e de verdade, fez de maneira visível, passou para os sacramentos da Igreja.
Que outras realidades da Igreja são chamadas a conjugar e a expressar a beleza como o espaço litúrgico? Não só o espaço, mas também a ação, isto é, o gesto, o movimento, as vestes, a atitude devem manifestar a harmonia e a liturgia continuará, graças a sua beleza, a ser fonte e cume, escola e norma da vida cristã.
___________
1. Artigo publicado na Revista de Liturgia, nº. 215 – Setembro/Outubro 2009, p. 26-28.
2. Dom Piero Marini é Professor no Instituto Santo Anselmo, Roma, foi mestre de cerimônias da Basílica de São Pedro, no Vaticano, de 1987-2007.
1. A mudança trazida pelo Concílio
Todos os que têm certa idade, como eu, puderam viver as mudanças ocorridas na liturgia, graças à reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. Os livros litúrgicos foram renovados com uma grande riqueza de textos bíblicos e eucológicos jamais vistos anteriormente; as rubricas, os gestos e os movimentos foram simplificados; os espaços da celebração foram mais bem determinados; as vestes, os mobiliários, a iconografia, o canto e a música foram revistos. De uma liturgia romana caracterizada pela uniformidade (unicidade da língua, excesso de rubricas) passamos a uma liturgia mais próxima da sensibilidade moderna, aberta a adaptação às culturas, expressão de uma Igreja que considera a diversidade como valor positivo, possibilidade de enriquecer a unidade.
No que diz respeito às celebrações pontificais, já com Paulo VI, desde fevereiro de 1965, houve grandes reformas, libertando o rito litúrgico das etiquetas de corte. As celebrações televisivas passaram a falar aos povos de todas as raças e credos, revelando o papa como sucessor de Pedro, servidor dos servidores de Deus, e não como um príncipe medieval (vestes com rendas e brocados, luvas, rigidez dos corpos, demasiadas solenidades...).
A televisão exige um comportamento exemplar de todos os que atuam na liturgia; a câmera revela de uma maneira impiedosa os gestos com seus significados. Era necessário que a liturgia, sobretudo quando presidida pelo papa, fosse um exemplo de renovação, segundo o espírito do Vaticano II. A partir dessa referência, novas escolhas vão se fazendo: o altar despojado e sóbrio; estante digna para a proclamação da Palavra de Deus; simplicidade nos ornamentos a fim de que os ministros não parecessem “figurantes teatrais”; novo repertório de canto e música privilegiando uma execução com moderação dos instrumentos e acompanhada do silêncio. Surge a necessidade de restabelecer a participação dos fiéis à comunhão e de se introduzir a concelebração, há muito em desuso.
Para nós, sempre esteve claro que as celebrações papais deveriam ser modelos exemplares da beleza e da riqueza da reforma litúrgica católica de volta às fontes. O que mudou na liturgia após o Concílio? É apenas adaptação às diferentes culturas, de gestos, e cores; maior liberdade no desenvolvimento dos ritos e na aplicação das rubricas? É somente mudança no aparato externo correspondendo ao gosto atual pelo que se entende por belo?
Encontramos hoje diversas tendências na Igreja: há os que querem uma liturgia horizontal, mais comunitária e participativa e há os que preferem uma liturgia mais vertical e em destaque. De um lado existe a liturgia paroquial, de outro há as que expressam os movimentos de tendências carismáticas ou tridentinas ou ainda dos que se voltam apenas para o canto gregoriano.
2. O fundamento da beleza da liturgia
Existe um limite entre a emoção estética e o verdadeiro sentido espiritual? O que significa uma bela liturgia? A liturgia não é uma espécie de mercadoria que faz parte do “supermercado” da Igreja. Liturgia é, antes de tudo, obra de Deus, adoração, acolhida, gratuidade. Então, nós devemos nos perguntar quais são os critérios fundamentais da beleza na liturgia além dos gostos e das modas. Um grande erro seria aplicar simplesmente à liturgia os gostos profanos de beleza.
2.1. A liturgia, ação do Cristo e da Igreja
Para compreender a beleza da liturgia é necessário partir do conceito de Igreja como “sacramento, isto é, sinal de união com Deus e de unidade de todo gênero humano” (LG 1). A Igreja, por sua condição de “sinal” torna possível, de certa maneira, a percepção do Cristo como sacramento de salvação. É exatamente a partir dessa sacramentalidade que se articulam os sacramentos propriamente ditos. Sendo eles ação da Igreja, são também ação de Cristo, porque a Igreja não faz nada que o Cristo não lhe tenha dito e ensinado a fazer: “Faça isso em memória de mim” (Lc 22,19). Os sacramentos são as modalidades pelas quais Cristo nos comunica a sua salvação: “Quando alguém batiza, é o Cristo que batiza” (SC 7). São Leão Magno, diz: “o que era visível no Cristo passou para os sacramentos da Igreja”.
A liturgia é ação de Cristo e da Igreja; ela não se realiza no plano intelectual, mas repousa sobre o princípio da Encarnação e, portanto, comporta uma dimensão estética. Assim, nos gestos concretos que a celebração litúrgica requer, a Igreja prolonga e atualiza os gestos do Senhor Jesus. Antes de qualquer outra secundária beleza que possamos acrescentar, os gestos da liturgia têm em si a beleza e a estética dos gestos de Jesus.
2.2. A nobre simplicidade do amor
Os Evangelhos nos apresentam a gestualidade concreta e humana de Jesus: ele caminha, abençoa, toca, cura, eleva os olhos, reparte o pão, toma o cálice... Esses são gestos que a liturgia retoma nos sacramentos. Mas foi, sobretudo , às vésperas de sua Paixão que Jesus ensinou os gestos fundamentais que devemos realizar. Ele é o mestre de nossa educação litúrgica. Sua arte consiste em colocar o essencial nas pequenas coisas. O significado da liturgia só se torna transparente na simplicidade e na sobriedade. “Pai Santo, quando chegou a hora de o glorificar, como ele tinha amado os seus que estavam no mundo, ele os amou até o fim: durante a refeição que ele partilhava com eles, ele tomou o pão, partiu e o deu aos seus discípulos, dizendo: tomais e comei todos: este é o meu corpo entregue por vós. Da mesma maneira, ele pegou a taça cheia de vinho, deu graças e a deu aos seus discípulos...” (Missal Romano, Oração Eucarística IV).
O que torna belo o gesto do Senhor? A decoração da sala? A maneira de como preparada a mesa? A riqueza da toalha? Sim, tudo isso serve para colocar em destaque, como a moldura evidencia a beleza de uma pintura. Mas o sentido da beleza vai muito além. “Ele os amou até o fim... Ele tomou o pão”. É por isso que o gesto é belo. Quando a Igreja repete o gesto de Cristo, ela se torna bela porque se reconhece no gesto de amor do seu Senhor. O sentido estético da liturgia não depende em primeiro lugar da arte, mas do amor presente no mistério pascal. Para colaborar com a liturgia, a arte tem necessidade de ser evangelizada pelo amor. A beleza de uma celebração eucarística não depende da arquitetura, dos ícones, das decorações, dos cantos, dos ornamentos, da coreografia e das cores em si, mas da sua capacidade de deixar transparecer o mistério de Jesus em seu amor. Por meio dos gestos, das palavras e das orações litúrgicas, nós devemos fazer transparecer os gestos, a oração e a palavra de Jesus. É esse o mandamento que recebemos do Senhor: “Fazei isto em memória de mim”.
O estilo litúrgico, como o de Jesus, deve ser simples e austero. Segundo os padres do Concílio, nas celebrações, temos que nos tornar mestres da arte, da “nobre simplicidade” (SC 34).
2.3. Gesto, Palavra, espaço, tempo e ordem
Na liturgia, o gesto é sempre acompanhado pela palavra. Tudo se desenvolve como diz o Concílio, “per ritus et preces”, ritos e orações esclarecedoras, vivificadas pela palavra (cf. SC 48; 21; 59; 7; 24). A palavra e o gesto tem sempre necessidade, do tempo e do espaço. “O Verbo feito carne” teve necessidade do tempo e do espaço para dizer a sua palavra e realizar os seus gestos de salvação.
Porém, na liturgia, o espaço e o tempo são submetidos a uma ordem. Uma das funções do rito é ordenar. Com efeito, não existe liturgia sem indicações dadas pelas rubricas. Isto se atesta desde os mais antigos ritos litúrgicos. A beleza da liturgia é, portanto, fruto da ordem. A quase totalidade dos livros da reforma litúrgica, tem como palavra de título: Ordo. A ordem requerida pela liturgia diz respeito ao tempo, ao espaço, às relações interpessoais; muito mais, a liturgia exige a ordem em nós mesmos.
Quarenta anos após a Sacrosanctum Concilium, somos convidados a nos interrogar: os ritos e os gestos que realizamos são verdadeiramente os gestos de Cristo? A liturgia que celebramos é um espaço dado ao Cristo ou apenas reservado a nós mesmos? O tempo consagrado à liturgia é o tempo onde Cristo nos fala ou um tempo vazio? A liturgia é apenas uma seqüência de ritos, ou ela é uma fonte, algo que nos ordena interiormente e em relação às pessoas e ao cosmo? São questões que nos colocamos para esclarecer o sentido da participação ativa sobre a qual tanto insistiu o Concílio.
3. A atenção às exigências da Comunidade
A liturgia é a expressão mais completa do mistério da Igreja. Assim, é indispensável, em toda celebração, fixar a atenção em primeiro lugar sobre a assembléia e promover a sua formação. De fato, a assembléia é a imagem da Igreja que oferece, de certa maneira, a hospitalidade a Cristo e às pessoas que ele ama. O lugar da assembléia deve ser acolhedor e saudável, bem pensado quanto à disposição dos fiéis para proveito de cada pessoa participante e para expressar que se trata do Corpo de Cristo.
3.1. ícones e outras expressões
A liturgia requer a colaboração de nossos sentidos: a vista, a audição, o odor, o toque... Assim, ela recorre à contribuição dos ícones (imagens), da música, do canto, da luz, das flores, das cores, da coreografia. Incorpora também os elementos da criação: o vinho, a água, o pão, o sal, o fogo, as cinzas, etc... O louvor que se eleva na liturgia, não é um ato reservado somente ao ser humano: toda a criação é convidada a se unir a nós, dando glória ao Pai, pelo Cristo, no Espírito Santo. Além disso, a liturgia é um convite a construirmos uma relação harmoniosa com a criação.
Os espaços de celebração e seus componentes (a fonte batismal, o ambão, a cadeira, o altar...) não são apenas funcionais, são antes, manifestação da Igreja que revela, pela imagem, a identidade cristã. De fato, a liturgia deve revelar o sacerdócio comum dos fiéis assim como a estrutura ministerial da Igreja desejada pelo Cristo. A fonte batismal, o ambão, a cadeira e o altar exprimem o seio materno onde o cristão é gerado pelo Espírito Santo, o meio onde se nutre e vive sua comunhão com o Cristo e com seus irmãos. Esses elementos, de per si, são já um ícone (imagem). Portanto, é necessário vigiar para que as contribuições artísticas não obscureçam o sinal original.
3.2. A preparação das celebrações
Uma “bela” celebração depende da maneira como ela foi preparada por todos os participantes. Assim, todos os textos litúrgicos da reforma conciliar são introduzidos por um preâmbulo teológico e pastoral referente ao rito. Pequenos livros preparatórios podem ser publicações de grande valor artístico e catequético, pois a celebração não se deve explicar tudo, pois o fato litúrgico é um acontecimento, um ato de amor e não aula. É interessante promover o estudo e a pesquisa científica indo a fundo no sentido das celebrações.
3.3. Conclusão
Partindo da Igreja como sacramento para sublinhar a importância das ações e atitudes na liturgia, especialmente da ação de Deus: o Cristo, que na liturgia, se torna, ele mesmo, ação da Igreja. A beleza da liturgia é antes de tudo a simplicidade e o amor do gesto de Cristo, mas é também a beleza de nossos gestos e sinais e dos elementos da criação que a liturgia coloca em ordem e harmoniza no tempo e no espaço.
A beleza da liturgia exige sempre alguma renúncia da nossa parte: renúncia à banalidade, às fantasias, aos caprichos. É preciso dar à liturgia o tempo e o espaço que ela necessita. Nunca ter pressa. Mais que iniciativa nossa, é iniciativa de Deus que se manifesta na Palavra, na oração, nos gestos, na música, no canto, na luz, no incenso, nos perfumes. Portanto, devemos fazer silêncio, e o necessário vazio, para que as palavras e os sinais falem de Deus aos nossos sentimentos, mais que dos nossos sentimentos. Tratando da beleza na liturgia é necessário que reflitamos sobre alguns problemas ligados ao que fizemos com a reforma litúrgica nestes anos.
a) A participação ativa
Na fase da reforma, a participação tomou, muitas vezes, um aspecto exterior e didático que degenerou em uma espécie de participação forçada. A liturgia não é a soma de emoções de um grupo, nem é apenas o receptáculo de sentimentos pessoais. Ela é ação de uma comunidade, palavras e gestos no tempo e no espaço, transformando-nos e conduzindo-nos ao Verbo.
b) A presidência litúrgica
A verdade dos sinais exige qualidade da presidência da celebração. Quem preside a assembléia não é apenas visto mais é aprovado e julgado no desempenho da função “in persona Christi” ou, se preferir, como “ícone de Cristo” no Espírito Santo. No entanto, essa presidência não pode ser exercida sem levar em conta a qualidade da assembléia e sem ser capaz de responder às suas expectativas, pois, quem preside a assembléia litúrgica o faz também “in persona Ecclesia”. Portanto, deve fugir de toda forma de protagonismo para presidir como “aquele que serve” (Lc 22,27), à imagem daquele de quem é pobre sinal. Além do mais, a arte de presidir em sua forma mais perfeita e mais fecunda vai além do simples saber fazer, para tornar-se princípio de comunhão, da qual a assembléia litúrgica é eloqüente expressão.
c) A beleza e a dignidade do culto
No inicio do terceiro milênio é necessário passar a imagem de uma Igreja que reza e vive o Mistério de Cristo na beleza e na dignidade da celebração. Uma beleza que não é somente formalismo estético, mas que está fundamentada sobre “a nobre simplicidade”, capaz de manifestar a relação entre o humano e o divino. Trata-se da dinâmica da encarnação: o que o Filho único, cheio de graça e de verdade, fez de maneira visível, passou para os sacramentos da Igreja.
Que outras realidades da Igreja são chamadas a conjugar e a expressar a beleza como o espaço litúrgico? Não só o espaço, mas também a ação, isto é, o gesto, o movimento, as vestes, a atitude devem manifestar a harmonia e a liturgia continuará, graças a sua beleza, a ser fonte e cume, escola e norma da vida cristã.
___________
1. Artigo publicado na Revista de Liturgia, nº. 215 – Setembro/Outubro 2009, p. 26-28.
2. Dom Piero Marini é Professor no Instituto Santo Anselmo, Roma, foi mestre de cerimônias da Basílica de São Pedro, no Vaticano, de 1987-2007.
Nenhum comentário:
Postar um comentário