quinta-feira, 15 de julho de 2010


EU TE ADORO, HÓSTIA DIVINA
A PROPÓSITO DA ADORAÇÃO AO SANTÍSSIMO SACRAMENTO
E A MISSA: APRENDENDO DA HISTÓRIA

Frei José Ariovaldo da Silva, OFM*
Teólogo liturgista


1. A prática de adorar o Santíssimo na missa hoje: alguns exemplos

Chega a ser impressionante, nestes últimos anos, a volta das manifestações de adoração ao Santíssimo Sacramento durante a celebração do memorial do sacrifício de Cristo, isto é, durante ou imediatamente após a missa.


Muita gente, na hora da consagração, tem o costume de sussurrar exclamações como: “Meu Jesus, eu te adoro”, ou, “Meu Senhor e meu Deus”, ou, “Senhor, eu creio em ti, mas aumentai minha fé” etc.

Muitos padres, na hora da consagração, levantam devagar e solenemente, bem alto, a hóstia consagrada e, depois, o cálice, para adoração dos fiéis. Olhos fixos no pão e no vinho consagrados, ao som das campainhas, todos adoram a Jesus que “desceu sobre o altar”, como dizem.

Há padres que, logo após a consagração, interrompem a Oração Eucarística, saindo com o Santíssimo Sacramento em procissão pela nave a Igreja – chamam essa procissão de “passeio” – para adoração dos fiéis com manifestações de aplausos, toques na hóstia por parte dos fiéis para receber a cura etc.

Muitos, após a consagração, substituem a aclamação memorial “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição” por cantos de adoração como: “Eu te adoro, hóstia divina”, ou, “Bendito, louvado seja, o Santíssimo Sacramento” etc.
Muitos cristãos e cristãs, assim que recebem a comunhão têm o hábito de se ajoelhar na capela do Santíssimo Sacramento para adorar Jesus presente ali no sacrário. Como se não tivessem acabado de “receber Jesus” no templo do seu próprio corpo!...
Há padres – e leigos também – que incentivam a adoração do Santíssimo imediatamente após a missa, dando assim a impressão que a comunhão não valeu, ou valeu pouco. Pois, dada a importância que se dá à adoração e à bênção do Santíssimo logo após a missa, a comunhão no corpo e sangue de Cristo acaba caindo no esquecimento, em segundo plano. Como vi e ouvi, certa vez pela televisão, um padre animador proclamar solenemente e com todo entusiasmo para a multidão, assim que terminou a missa presidida pelo bispo: “Meus irmãos, agora vamos receber e bênção do Santíssimo Sacramento... Não existe bênção mais importante do que esta”! Daí se conclui: A maior bênção, que foi a participação no memorial do sacrifício de Cristo, isto é, na missa recém-celebrada, deixou de ser a mais importante!...
Alguns chegam a substituir a bênção final da missa pela bênção do Santíssimo Sacramento.
São alguns exemplos ilustrativos de como estão resgatando por aí o sentido da missa mais como ato de adoração ao Santíssimo do que como celebração do mistério pascal na forma de uma ceia. Inclusive com manifestações de adoração ao Santíssimo Sacramento imediatamente após a missa, colocando-a em segundo plano...
São costumes que tiveram uma origem, bem como um motivo por que se originaram, na história da Igreja. Vejamos o que diz a história a respeito. Ela pode nos ensinar muita coisa e nos iluminar em nossas práticas celebrativas da eucaristia hoje.

2. Quando e por que evoluiu o costume de adorar o Santíssimo na missa

A prática de adorar o Santíssimo Sacramento durante a missa se desenvolveu com toda força na passagem do primeiro para o segundo milênio. Em plena Idade Média, portanto.
Antes, isto é, no primeiro milênio, sobretudo até o século 9, a eucaristia era vista e vivida sobretudo como celebração memorial da páscoa de Cristo, em clima de ação de graças, da qual participava ativamente toda a assembléia, tendo como ponto alto desta participação a comunhão no corpo e sangue de Cristo. Não havia adoração ao Santíssimo durante a missa, como se entende e se faz hoje.
Aos poucos, porém, sobretudo a partir dos séculos 8 e 9, a missa vai se tornando cada vez mais “coisa do padre”. Os motivos são vários, e não vem ao caso elencá-los aqui. Basta dizer que o clero vai aos poucos monopolizando tudo na celebração eucarística. Os padres começam a rezar a missa sozinho. E, mesmo havendo assembléia, adota-se o costume de os padres fazerem tudo sozinho (orações, leituras etc.), em voz baixa, de costas para o povo, em latim. O povo apenas assiste, de longe. Já não participa mais, como era antes.
Com isso, os cristãos perdem também o estímulo em participar também da comunhão recebendo o corpo e o sangue do Senhor. Esquecem-se assim da ordem que Jesus mesmo deu: “Tomai e comei... tomai e bebei”. (Jesus mandou comer e beber! Foi isso que ele mandou fazer! Comer e beber são parte integrante e ponto alto da participação na missa). Cada vez menos gente participa da comunhão. Apenas assiste a “missa do padre”, o que virou sempre mais um costume...
Outro fator que distancia o povo da mesa da comunhão na missa: Aos poucos, por influência dos povos franco-germânicos, os cristãos de nossa Igreja romana absorvem uma mentalidade quase doentia em relação a Deus, vendo nele um ser terrível, ameaçador, vigiando e controlando nossas atitudes. Ligado a isso, se acentua uma mentalidade obsessiva em relação ao pecado, ao castigo, ao inferno e purgatório. O clima era, pois, de medo. Resultado: O povo fica com medo de comungar. Pois comungar significava aproximar-se do Juiz terrível e ameaçador e, possivelmente, correr perigo de castigo por nossos pecados.
Assim, no século 12 já praticamente ninguém comungava mais. Tanto que, em 1215, o quarto concílio do Latrão chegou a decretar uma lei, determinando que todo católico devia comungar “pelo menos uma vez por ano”, por ocasião da páscoa, depois de fazer uma boa confissão. Pelo menos uma vez por ano! Quer dizer que, nas outras vezes, o povo podia estar dispensado de comungar durante a missa!... Resultado: Comer e beber, na celebração da ceia deixou de ser importante! O que virou um costume que atravessou todo o segundo milênio: O povo vai à celebração da ceia memorial do Senhor, mas não come mais nem bebe da ceia (como faziam os cristãos nos primeiros séculos do cristianismo).
O que o povo passou a fazer então, enquanto o padre, lá distante no altar, “rezava a missa”? Entretinha-se com rezas, novenas, devoções etc. E a comunhão, o povo a substituiu pela adoração da hóstia. Ver a hóstia, de longe, adorando-a, tornou-se uma forma de “comungar”. Por isso que, então, os padres adotaram o costume de levantar bem alto a hóstia e, depois, o cálice, na hora da consagração. Para o povo ver e prestar adoração ao Senhor terrível que “desceu sobre o altar”, na hóstia consagrada e no cálice de vinho. O desejo de ver a hóstia tornou-se então uma verdadeira febre para os fiéis, o ponto alto, o momento mais importante da missa. Introduziram até o costume de tocar campainhas na hora da elevação, exatamente para chamar a atenção e enfatizar o momento. Bastava ver a hóstia e o povo já se dava por muito feliz e satisfeito. Tudo isso virou um costume...
Outra informação: A partir do século IX, mas com maior vigor a partir do século 11, alguns teólogos de influência, dentre os quais destaca-se Berengário de Tours, andaram espalhando idéias que colocavam em dúvida a presença real de Jesus no pão e no vinho consagrados. A Igreja, em reação a estes movimentos heréticos, desencadeou todo um movimento no sentido de afirmar a fé na presença real. Para tanto, propagou e reforçou a prática da adoração ao Santíssimo Sacramento, dentro e fora da missa. Fora da missa, através de procissões do Santíssimo, bênçãos do Santíssimo etc. Conseqüência: A missa, distante do pensamento de Jesus e da prática dos cristãos dos primeiros séculos, se transforma numa espécie “fábrica de hóstias consagradas” para serem adoradas. Longe do pensamento de Jesus, porque na última ceia Jesus não disse “tomai e adorai”; ele disse “tomai e comei... tomai e bebei”!
Como você vê, o costume de adorar o Santíssimo Sacramento durante a missa foi desenvolvido na Idade Média, quando a Igreja havia perdido de vista o verdadeiro sentido da missa como celebração memorial da páscoa de Cristo e nossa (vejam o que Jesus disse: “Fazei isto em memória de mim”!), que tem seu ponto alto no momento da ceia (comunhão). A missa, em vez de ser em primeiro lugar um momento de adoração ao Pai, através do memorial do sacrifício de Cristo que se entrega, na força do Espírito Santo, transforma-se simplesmente numa ocasião privilegiada de adoração à hóstia consagrada, ou, ao Cristo presente no pão e no vinho; mas sobretudo no pão (na hóstia).
Esta mentalidade não foi superada nem com o concílio de Trento (séc. 16). Perpassou os séculos seguintes, até hoje, como um costume normal. Nosso Brasil foi evangelizado com esta mentalidade “viciada”. Não tivemos outro tipo de evangelização eucarística (refiro-me ao modelo de compreensão dos primeiros séculos de cristianismo). O modelo medieval e pós-tridentino é que ficou muito bem arraigado no nosso subconsciente religioso, no imaginário popular. Por isso, o costume de adorar o Santíssimo na missa hoje, segundo os exemplos elencados no início deste artigo, mereceria todo um longo trabalho de evangelização.

3. Desafios para o futuro

Nesses últimos anos, o papa João Paulo II fala de uma nova evangelização. Nós diríamos: Precisamos re-evangelizar nossa cultura religiosa eucarística de tipo medieval, valorizando, à luz do concílio Vaticano II, a compreensão bíblica e dos Santos Padres no que se refere à celebração eucarística.
Não se trata de menosprezar e muito menos querer eliminar as devoções ao Santíssimo Sacramento. Trata-se de, teologicamente, colocar as coisas no seu justo lugar. Não misturar as coisas. Missa é missa. Adoração ao Santíssimo é outra, com seu sentido e valor . A mistura é coisa da Idade Média que, como vimos, acabou colocando a adoração ao Santíssimo acima do verdadeiro sentido da missa.
Também não se trata de dizer que não adoramos Cristo na hora da missa. O próprio missal prescreve uma genuflexão do sacerdote na hora da consagração, primeiro para adorar a hóstia consagrada e depois para adorar o cálice. Mas, atenção! Adorar “a hóstia e o cálice” significa em primeiro lugar reverenciar “o sacrifício de Cristo” (a entrega do seu Corpo e do seu Sangue) sobre o altar para ser oferecido ao Pai e devolvido a nós como alimento na comunhão. É isso! O que temos de evitar são exageros que colocam a prática da adoração ao Santíssimo acima do sentido da Oração Eucarística e da própria comunhão eucarística.
Neste sentido, a CNBB nos dá com muita sabedoria a seguinte orientação: “Na celebração da Missa, não se deve salientar de modo inadequado as palavras da Instituição (= consagração), nem se interrompa a Oração Eucarística para momentos de louvor a Cristo presente na Eucaristia com aplausos, vivas, procissões, hinos de louvor eucarístico e outras manifestações que exaltem de tal maneira o sentido da presença real que acabem esvaziando as várias dimensões da celebração eucarística” .
Enfim, o grande desafio mesmo está em desenvolver na alma dos pastores e dos fiéis tudo o que o concílio Vaticano II resgatou em termos de teologia e celebração da eucaristia. Veja o que diz a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, sobretudo nos números 47-58!
Peço demais a Deus que o espírito deste importantíssimo Concílio, no que diz respeito à liturgia em geral, e de modo especial à eucaristia, não seja abafado pelo individualismo religioso tão forte neste início de milênio.



BIBLIOGRAFIA

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BASURKO Xavier & GOENAGA José Antônio. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO Dionísio. A celebração na Igreja 1: Liturgia e sacramentologia fundamental. São Paulo: Loyola, 1990, p. 37-160 (sobretudo p. 84ss.).

CABIÉ Robert. A Eucaristia. In: MARTIMORT Aimé Georges (Org.). A Igreja em oração II. Petrópolis: Vozes, 1989 (sobretudo p. 130-132: “A devoção medieval”).

COLDEBELLA Silde. Adoração na missa? In: Revista de Liturgia n. 153 (mai/jun 1999), p. 33-34.

LUTZ Gregório. A presença real de Jesus Cristo na eucaristia. In: Revista de Liturgia n. 153 (mai/jun 1999), p. 8-10.

MARSILI Salvatore. Teologia da celebração da eucaristia. In: VV.AA. A eucaristia: teologia e história da celebração (Anámnesis 3). São Paulo: Paulinas, 1987, p. 7-202.

MELO José Raimundo de. A participação da assembléia dos fiéis na celebração eucarística ao longo da história: e-volução ou in-volução? In: Perspectiva Teológica 32 (2000), p. 187-220.

VISENTIN, Pelágio. Eucaristia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 395-415 (sobretudo p. 399-402: “A celebração eucarística: as grandes etapas de sua evolução histórica”).




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Frei José Ariovaldo da Silva é Doutor em Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico de Roma; Professor de Liturgia no Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis; Professor de História da Liturgia na pós-graduação em Liturgia da Pontifícia Faculdade de Teologia N. Sra. da Assunção, São Paulo.

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