O SACERDÓCIO COMUM E O
SACERDÓCIO MINISTERIAL
Prof. Ms. Pe. Cristiano Marmelo Pinto
Introdução
O cristão recebe do batismo uma condição sacramental que o torna membro da Igreja, povo sacerdotal. O Sacerdócio a que todo cristão é inserido pelo batismo nós o chamamos de sacerdócio batismal ou comum, que o faz participar do sacerdócio único de Cristo. Sua participação no sacerdócio de Cristo é exercida de modo preeminente através dos sacramentos e em especial da Eucaristia. A Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja afirma que
pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, os batizados consagram-se para serem edifício espiritual e sacerdócio santo, a fim de, por meio de toda a sua atividade cristã, oferecerem sacrifícios espirituais e proclamarem as grandezas daquele que das trevas os chamou para a sua luz maravilhosa (LG 10ª).
O sacerdócio ministerial está ordenado para o sacerdócio batismal de todo cristão. A própria Constituição Dogmática Lumen Gentium deixa isso claro que, embora diferirem entre si na essência e não apenas em grau, um está ordenado para o outro, participando cada um a seu modo do único sacerdócio de Cristo (cf. LG 10b).
Nesta unidade de nosso curso queremos refletir sobre estas duas realidades do povo de Deus que se complementam e ordenam uma para a outra.
Cristo, o único Sacerdote
Em sua Carta aos Hebreus, Paulo explica claramente que Cristo é o grande sacerdote do Novo Testamento (cf. Hb 4,14-7,28). A Carta aos Hebreus afirma que nós cristãos temos um sacerdote, ou seja, um Sumo Sacerdote que é Jesus Cristo (cf. Hb 4,14). Em nenhum outro escrito do Novo Testamento encontramos esta qualificação de Jesus como Sumo Sacerdote. A primeira vista, a sua pessoa nada tem haver com o sacerdócio, segundo a concepção do Antigo Testamento e da prática judaica de seu tempo. Pelo contrário, sua missão mostra um caráter acentuadamente profético.
Com a doação de sua vida, oferecendo-se em sacrifício, Jesus torna-se ao mesmo tempo vítima e sacerdote. É o que encontramos em alguns textos do Novo Testamento onde é atestado o caráter sacrificial do ato de Cristo (cf. Mt 26-28; Mc 14,24; Jo 10,14-36; 1Cor 10,14-22). Porém, uma teologia do sacerdócio de Cristo só encontramos na Carta aos Hebreus. Nela os acontecimentos da vida de Cristo são relidos em chave sacrificial, cultual e sacramental. Na Carta aos Hebreus o sacerdócio de Cristo é apresentado numa nova perspectiva, que o torna diferente dos demais sacerdotes de sua época: a solidariedade do sumo e único sacerdote com os homens. Cristo, o Sumo Sacerdote torna-se deste modo solidário aos homens em tudo. É o que lemos na Carta: “Convinha, por isso, que em tudo se tornasse semelhante aos irmãos, para ser, em relação a Deus, sumo sacerdote misericordioso e fiel, para expiar assim os pecados do povo” (Hb 2,17). Com isto, Jesus afasta-se da visão sacerdotal do Antigo Testamento que estava ligado ao poder político (cf. Mc 4,7-8.24). O caminho seguido por Jesus é um itinerário de fé vivido no sofrimento da morte na cruz, único caminho para se chegar a verdadeira glória (cf. Hb 2,9). Em solidariedade com o destino dos homens, Jesus realiza a missão principal de seu sacerdócio: ser mediação entre Deus e o homem. O sacrifício oferecido por Cristo é único e definitivo (cf. Hb 7,27).
Podemos considerar algumas características do sacerdócio de Cristo segundo a Carta aos Hebreus.
a) Misericórdia (cf. Hb 2,17). Ao se tornar solidário com todos os homens em seu destino. Jesus assume e põe em prática uma atitude plena de misericórdia que quer salvar o pecador mediante o sacrifício de si;
b) O Sumo Sacerdote é fiel nas coisas que se referem a Deus. Jesus é fiel a Deus e possui uma relação de confiança com o Pai, tornando-se capaz de merecer a confiança de Deus a ponto de ser exaltado à sua direita (Hb 1,13; Sl 110);
c) O sacerdócio de Cristo tem caráter messiânico e universalista (cf. Hb 7; Sl 110). Jesus é sacerdote segundo a ordem de Melquisedec (cf. Hb 6,20). Isto mostra a superioridade do sacerdócio de Jesus sobre o sacerdócio levítico de Israel.
O Sacerdócio batismal dos cristãos
Na história da Igreja, o Concílio Vaticano II foi o primeiro a tratar da questão do sacerdócio batismal ou comum dos cristãos. Na Constituição Dogmática Lumen Gentium temos uma profunda teologia da incorporação à Igreja por meio do batismo por meio do qual o cristão participa do sacerdócio de Cristo (cf. LG 10). Esta vinculação é exercida pelos sacramentos em especial batismo-confirmação-eucaristia (cf. LG 11). Mas o cristão vive seu sacerdócio em todos os demais sacramentos.
Encontramos no Antigo Testamento a afirmação de que Deus disse ao povo de Israel: “Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,6). Jesus realizando esta vocação do povo de Deus constituiu o novo povo sacerdotal, fundado através de seu ato redentor (cf. Ap 1,6; 5,9-10). O fundamento deste sacerdócio é o batismo (cf. LG 31a, 14; AA 3; UR 3) é descrito pelo Concílio Vaticano II em suas quatro funções: a) o batizado é incorporado a Cristo e sua missão; b) é constituído fiel cristão, membro da Igreja, povo de Deus; c) é feito testemunha de Cristo no mundo e d) é destinado para a salvação definitiva por sua condição.
Pelo batismo o cristão é inserido na tríplice missão de Cristo: sacerdotal, profética e régia. Toda ação ministerial da e na Igreja se estrutura em torno desta tríplice missão de Jesus Cristo. Vejamos:
a) Função sacerdotal (cf. LG 34). O leigo participa desta função de acordo com o que é expresso em LG 10 sobre o sacerdócio batismal. A este sacerdócio está ordenado o ministerial. Enquanto que o sacerdócio batismal comporta uma vida entendida como “oferta essencial”, o sacerdócio ministerial comporta a representação sacramental da mediação de Cristo cabeça;
b) Função profética (cf. LG 35). O caráter profético da vida do cristão está inserido na necessidade de professar a fé na vida cotidiana e secular, dando ênfase a vida matrimonial e familiar;
c) Função régia (cf. LG 36). Esta função insere o cristão na missão régia de Cristo. O caráter real da vida cristã não se trata de dominação, mas de “serviço régio”, para difundir o Reino de Deus entre todas as criaturas. Aqui se trata da função dos cristãos transformar as realidades do mundo implantando o Reino de Deus entre os homens, ou seja, modificar as estruturas.
Segundo Cardeal Martins “o caráter batismal tem, antes de mais, uma dimensão sacerdotal, porquanto, ao inserir vitalmente em Cristo e na Igreja, torna partícipe do sacerdócio daquele e desta” (MARTINS, 2002, p. 90). Este caráter faz do cristão um povo sacerdotal. A primeira Carta de Pedro sublinha o fato de os cristãos representarem um sacerdócio real (cf. 1Pd 2,4-10). Também João atribui aos cristãos a dignidade sacerdotal por terem sidos redimidos por Cristo (cf. Ap 1,6). Para Paulo a dignidade sacerdotal do cristão está no fato de ser templo de Deus (cf. 1Cor 3,16-17).
Na patrística encontramos testemunhos de alguns Padres da Igreja que atestam o caráter sacerdotal do povo cristão. Para Santo Irineu o cristão tem a dignidade sacerdotal. Segundo Origines toda a Igreja e, portanto, todo o povo cristão é conferido sacerdote. São João Crisóstomo exalta a dignidade sacerdotal dos cristãos. Para Santo Ambrósio todos os membros da Igreja são sacerdotes.
Na Idade Média encontramos o testemunho de Pedro Damião que diz que, mediante a graça de Cristo, cada cristão torna-se sacerdote. Porém, foi Santo Tomás de Aquino que deu um grande impulso à doutrina do sacerdócio batismal, com suas afirmações sobre o caráter sacramental. Com a Reforma Protestante, Lutero deu preferência ao sacerdócio batismal dos cristãos em detrimento ao sacerdócio ministerial. Com isso, após o Concílio de Trento, foi reforçado o pensamento e doutrina da Igreja a respeito do sacerdócio ministerial ou hierárquico, relegando ao sacerdócio batismal um segundo plano e no decorrer do tempo, este caiu quase no esquecimento, voltando a tona com o Concílio Vaticano II.
O sacerdócio ministerial
A Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium, n. 10b afirma que há uma diferença entre o sacerdócio batismal e o sacerdócio ministerial, não apenas em grau, mas também em essência. Porém eles ordenam-se um para o outro e o primeiro é fundamento para o segundo. Este documento é o primeiro do Concílio Vaticano II que se pronuncia a respeito do sacerdócio batismal relacionando-o ao sacerdócio ministerial.
Enquanto o sacerdócio comum dos fiéis se realiza no desenvolvimento da graça batismal, na vida de fé, de esperança e de caridade, segundo o Espírito, o sacerdócio ministerial ou ordenado está a serviço do sacerdócio comum, referindo-se ao desenvolvimento da graça do batismo de todos os cristãos (GOEDERT, 2006, p. 27).
O sacerdócio ministerial define-se em relação a Cristo cabeça e o seu corpo, a Igreja. O sacerdócio ministerial age in persona Christi capitis, ou seja, na pessoa de Cristo Cabeça. Isto o permite agir não somente em nome de Jesus Cristo, mas também em nome da Igreja. Porém jamais substitui Cristo. O ministério ordenado torna visível a presença de Cristo enquanto Cabeça da Igreja.
O sacerdócio ministerial é conferido pelo sacramento da ordem, porém, tem seu fundamento no sacramento do batismo, condição insubstituível para o sacerdócio ministerial. O sacerdócio batismal é permanente e não é substituído pelo sacerdócio ministerial, pelo contrário, este último está ordenado em função do primeiro e só pode existir por causa do sacerdócio batismal de todo cristão. Conforme Dionísio Borobio “o ministério ordenado não é somente uma função, é um sacramento da Igreja, que significa e expressa a consagração e a destinação de um membro capacitado e eleito pela Igreja para presidir a comunidade cristã e a Eucaristia” (BOROBIO, 2009, p. 406).
Para concluir: o exercício do sacerdócio comum...
O cristão exerce o sacerdócio batismal de muitos modos. Exerce-o participando ativamente da celebração da Eucaristia, que constitui o centro da vida cristã. Esta participação é real. É uma participação ativa, consciente e frutuosa. Exerce-o na Igreja, povo sacerdotal, como membro do Corpo de Cristo. A Eucaristia é a celebração do Christus Totus (Cristo total): Cabeça e membros. Em segundo lugar, o cristão exerce o sacerdócio batismal recebendo os demais sacramentos e vivendo uma vida cristã na busca da santidade. A vida cristã tem sua continuidade na vida cotidiana que deve ser uma entrega constante ao Pai. A Constituição Dogmática Lumen Gentium diz que: “os fiéis, incorporados na Igreja pelo batismo, recebem o caráter que os delega para o culto cristão, e, renascidos como filhos de Deus, são obrigados a professar diante dos homens a fé que pela Igreja receberam de Deus” (LG 11).
Referência Bibliográfica
VANHOYE, Albert. Sacerdotes antigos e sacerdote novo: segundo o Novo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2007, pp. 377-480.
PIE-NINOT, Salvador. Introdução à eclesiologia. São Paulo: Loyola, 1998, pp. 59-73.
CONGAR, Yves M.-J. Os leigos na Igreja: escalões para uma teologia do laicato. São Paulo: Herder, 1966, pp. 161-329.
LEMAIRE, André. Os ministérios na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1977, pp. 96-99.
BEDIM, José. O sacerdócio cristão: estudo histórico - teológico – pastoral. São Paulo: O Recado, 1992.
MARTINS, Cardeal José Saraiva. Baptismo e crisma. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2002.
BOROBIO, Dionísio. Celebrar para viver: liturgia e sacramentos da Igreja. São Paulo: Loyola, 2009.
GOEDERT, Valter Maurício. Ordem e ministérios: a serviço da comunhão. São Paulo: Paulinas, 2006
Pe. Cristiano Marmelo Pinto
Presbítero da Diocese de Santo André - SP, pároco na Paróquia Menino Jesus em São Bernardo do Campo - SP, Mestre em Teologia Sistemárica com Especialização em Liturgia pela PUC-SP, Especialista em Música Sacra pela Uni-FAI - São Paulo. Professor de Liturgia e Teologia dos Ministérios no Instituto de Teologia de Santo André.
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