quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A fé celebrada (D. João Lavrador)


"A FÉ CELEBRADA"
 
(D. João Lavrador)

  
«Andai sempre alegres, orai sem cessar e, em todas as circunstâncias, dai graças, pois é a vontade de Deus em Jesus Cristo, a vosso respeito» (1 Tes. 5, 16-18).

 
 
 
A fé professada, a fé celebrada, a fé vivida, testemunhada ou anunciada, fazem parte da mesma realidade da fé pessoal e comunitária que brota da relação de Deus com o ser humano. Por isso, o compêndio da Igreja Católica diz-nos que «sustentado pela graça divina, o homem responde a Deus com a obediência da fé, que consiste em confiar-se completamente a Deus e acolher a Sua verdade, enquanto garantida por Ele que é a própria verdade» (nº 25). E, seguidamente enumera alguns exemplos bíblicos que nos manifestam o que é ser pessoa de fé. Assim, «há muitos testemunhos, mas particularmente dois: Abraão, que, colocado à prova, «teve fé em Deus» (Rm 4,3) e obedeceu sempre ao seu chamamento, tornando-se por isso «pai de todos os crentes» (Rm 4,11.18 ); e a Virgem Maria, que realizou de modo mais perfeito, durante toda a sua vida, a obediência da fé: «Fiat mihi secundum Verbum tuum – Faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38)» (nº 26).

A fé significa, deste modo, «aderir ao próprio Deus, entregando-se a Ele e dando assentimento a todas as verdades por Ele reveladas, porque Deus é a verdade. Significa crer num só Deus em três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo» (nº 27).

Em síntese, podemos afirmar que a fé é «dom gratuito de Deus e acessível a quantos a pedem humildemente, é uma virtude sobrenatural necessária para a salvação. O acto de fé é um acto humano, isto é, um acto da inteligência do homem que, sob decisão da vontade movida por Deus, dá livremente o seu assentimento à verdade divina. Além disso, a fé é certa porque fundada sobre a Palavra de Deus; é operante «por meio da caridade» (Gal 5,6); é em contínuo crescimento, graças, em especial, à escuta da Palavra de Deus e à oração. Ela faz-nos saborear, de antemão, a alegria celeste» (nº 28).

Sendo um acto pessoal a fé é, antes de mais, um acto eclesial. Cada um é chamado a assumir a fé da Igreja. Di-lo o compêndio do Catecismo nos seguintes termos: «A fé é um acto pessoal, enquanto resposta livre do homem a Deus que se revela. Mas é ao mesmo tempo um acto eclesial, que se exprime na confissão: «Nós cremos». De facto, é a Igreja que crê: deste modo, ela, com a graça do Espírito Santo, precede, gera e nutre a fé do indivíduo. Por isso a Igreja é Mãe e Mestra» (nº 29).

Para explicitar este itinerário entre a fé professada, celebrada e vivida ou testemunhada, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, nº 7, refere que «a sagrada Liturgia não esgota toda a acção da Igreja, porque os homens, antes de poderem participar na Liturgia, precisam de ouvir o apelo à fé e à conversão: «Como hão-de invocar aquele em quem não creram? Ou como hão-de crer sem o terem ouvido? Como poderão ouvir se não houver quem pregue? E como se há-de pregar se não houver quem seja enviado?» (Rom. 10, 14-15).

E, prossegue afirmando que «é por este motivo que a Igreja anuncia a mensagem de salvação aos que ainda não têm fé, para que todos os homens venham a conhecer o único Deus verdadeiro e o Seu enviado, Jesus Cristo, e se convertam dos seus caminhos pela penitência. Aos que crêem, tem o dever de pregar constantemente a fé e a penitência, de dispô-los aos sacramentos, de ensiná-los a guardar tudo o que Cristo mandou, de estimulá-los a tudo o que seja obra de caridade, de piedade e apostolado, onde os cristãos possam mostrar que são a luz do mundo, embora não sejam deste mundo, e que glorificam o Pai diante dos homens».

1.1. Da Fé professada à Fé celebrada

A pessoa tem necessidade de passar da relação professada à celebração. Isto acontece na vida do quotidiano. Quando se conhece alguém e se progride nesse mesmo conhecimento até atingir uma relação de amizade, o ser humano sente a necessidade de celebrar os acontecimentos e a vida que sendo pessoais atingem aqueles que lhe estão ligados. A celebração é requerida pela profundidade das relações que ligam os homens e os povos.

Por isso, também a celebração sustenta e é sustentada pela comunidade de pessoas. Cada povo, na sua identidade própria, tem necessidade de congregar aqueles que se identificam com os seus fundamentos através de actos celebrativos. Estes procedimentos partem do individuo para a comunidade e apelam à comunidade para uma maior integração e comunhão entre os seus membros.

No que diz respeito à fé cristã, apesar destas características antropológicas e comunitárias da celebração, esta é sempre iniciativa de Deus que chama e é Ele mesmo que se oferece para congregar o Seu Povo.

Deste modo, «a liturgia, acção sagrada por excelência, constitui o cume para onde tendem todas as acções da Igreja e, simultaneamente, a fonte donde provém toda a sua força vital. Através da liturgia, Cristo continua na sua Igreja, com ela e por meio dela, a obra da nossa redenção» (SC, 219). Ou dito de outro modo, «na liturgia, o Pai enche-nos das suas bênçãos no Filho encarnado, morto e ressuscitado por nós, e derrama o Espírito Santo nos nossos corações. Ao mesmo tempo a Igreja bendiz o Pai, mediante a adoração, o louvor e a acção de graças, e implora o dom do seu Filho e do Espírito Santo» (SC, 221).

Realmente, «na liturgia da Igreja, Cristo significa e realiza principalmente o seu Mistério pascal. Doando o Espírito Santo aos Apóstolos, concedeu-lhes a eles e aos seus sucessores o poder de realizar a obra da salvação por meio do Sacrifício eucarístico e dos sacramentos, nos quais Ele próprio age agora para comunicar a sua graça aos fiéis de todos os tempos e em todo o mundo» (SC, 222).

Através da liturgia da comunidade cristã, «realiza-se a mais estreita cooperação entre o Espírito Santo e a Igreja. O Espírito Santo prepara a Igreja para encontrar o seu Senhor; recorda e manifesta Cristo à fé da assembleia; torna presente e actualiza o Mistério de Cristo; une a Igreja à vida e à missão de Cristo e faz frutificar nela o dom da comunhão» (SC, 223).

É toda a vida de Deus na Sua revelação e na Sua relação com os seus filhos que está presente na acção litúrgica. Os cristãos, membros de uma comunidade celebrante, sentem nas suas vidas as exigências da missão de Jesus Cristo que transportam para o mundo, porque antes saborearam os mistérios da Sua vida que os faz desbordar de alegria.

1.2. A Celebração da Fé no Concilio Vaticano II

«A liturgia é a fonte primeira da vida divina que nos é comunicada, a primeira escola da nossa vida espiritual, primeiro dom que podemos oferecer ao povo cristão que, juntamente connosco, crê e ora, e primeiro convite ao mundo, para que solte a sua língua muda em oração feliz e autêntica, e sinta o inefável força regeneradora, ao cantar connosco os louvores divinos e as esperanças humanas, por Cristo nosso Senhor e no Espírito Santo»(Discurso de Paulo VI, no encerramento da segunda sessão do Concílio Vaticano II, 4 de Dezembro de 1963). Com estas palavras definia Paulo VI a importância da vida litúrgica na acção pastoral da Igreja.

O Concilio Vaticano II, na Constituição sobre a Sagrada Liturgia (SC), no nº 2, apresenta-nos a síntese do que se pretende com a celebração da fé, a relação da comunidade cristã com a pessoa que é chamada a participar na fé da Igreja e a celebrá-la, e o compromisso cristão que daí resulta. Eis o significativo texto: «a liturgia, pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, se opera o fruto da nossa Redenção, contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja, que é simultaneamente humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis, empenhada na acção e dada à contemplação, presente no mundo e, todavia, peregrina, mas de forma que o que nela é humano se deve ordenar e subordinar ao divino, o visível ao invisível, a acção à contemplação, e o presente à cidade futura que buscamos».

Continua o texto expressando a abrangência da acção litúrgica que não se limitando em alimentar os que pertencem à comunidade cristã, capacita-os de verdade para serem testemunhas de Jesus Cristo no mundo. Di-lo com as seguintes palavras: «A liturgia, ao mesmo tempo que edifica os que estão na Igreja em templo santo no Senhor, em morada de Deus no Espírito, até à medida da idade da plenitude de Cristo, robustece de modo admirável as suas energias para pregar Cristo e mostra a Igreja aos que estão fora, como sinal erguido entre as nações, para reunir à sua sombra os filhos de Deus dispersos, até que haja um só rebanho e um só pastor».

A obra de redenção operada por Cristo está presente na Igreja, especialmente nas acções litúrgicas. Está presente no sacrifício da Missa, quer na pessoa do ministro - «O que se oferece agora pelo ministério sacerdotal é o mesmo que se ofereceu na Cruz» -, quer e sobretudo sob as espécies eucarísticas. Está presente com o seu dinamismo nos sacramentos, de modo que, quando alguém baptiza, é o próprio Cristo que baptiza. Está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu: «Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» (Mt. 18,20) (Cfr. SC, 7).

No dizer do Concilio, a liturgia é simultaneamente a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força. Na verdade, o trabalho apostólico ordena-se a conseguir que todos os que se tornaram filhos de Deus pela fé e pelo baptismo se reúnam em assembleia para louvar a Deus no meio da Igreja, participem no sacrifício e comam a Ceia do Senhor (cfr. SC, 10).

Vejamos então as profundissimas palavras com as quais o Concilio nos convida a reconhecer o valor da celebração dos mistérios da fé. Diz ele: «A liturgia, por sua vez, impele os fiéis, saciados pelos “mistérios pascais”, a viverem “unidos no amor”; pede “que sejam fiéis na vida a quanto receberam pela fé”; e pela renovação da aliança do Senhor com os homens na Eucaristia, e aquece os fiéis na caridade urgente de Cristo» (SC, 10). Da liturgia, pois, prossegue, em especial da Eucaristia, «corre sobre nós, como de sua fonte, a graça, e por meio dela conseguem os homens com total eficácia a santificação em Cristo e a glorificação de Deus, a que se ordenam, como a seu fim, todas as outras obras da Igreja» (SC, 10).

Como fonte e cume de toda a acção da Igreja, a liturgia coloca-se no dinamismo que alimenta toda a acção da comunidade cristã e de todo o cristão, não só no seu ser cristão, mas na sua vida de apostolado; e como cume, integra variadíssimas formas de o cristão e a comunidade cristã se relacionarem com Deus, na escuta da Sua Palavra, na oração, na interioridade e na meditação, na partilha fraterna, isto é, toda a vida cristã.

1.3. A Participação dos Fiéis na Celebração dos Mistérios da Fé

A Igreja é Povo de Deus. Esta realidade torna-se visível na celebração. Por isso, toda a comunidade é chamada a viver e a saborear os dons de Deus tornados presentes e oferecidos pela Igreja.

Para assegurar esta eficácia plena é necessário, porém, que os fiéis celebrem a liturgia com rectidão de espírito, unam a sua mente às palavras que pronunciam, cooperem com a graça de Deus, não aconteça de a receberem em vão.

Para tal, recomenda o Concilio, devem os pastores de almas vigiar por que não só se observem, na acção litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente, activa e frutuosamente (Cfr. SC, 11).

E, insiste-se ainda sobre a participação de todos os fiéis, dizendo: «É desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e activa participação nas celebrações litúrgicas que a própria natureza da liturgia exige e que é, por força do baptismo, um direito e um dever do povo cristão, «raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido» (1 Ped. 2,9; cfr. 2, 4-5) ( SC, 14).

Fixemos as palavras do Concilio que sublinham como um direito e um dever de todo o povo cristão a participar na liturgia. Certamente que este repto se dirige aos Pastores para que levem em conta a participação de todos, cada um segundo o seu carisma e ministério. Não estamos perante uma questão secundária ou de escolha arbitrária, pelo contrário, sendo um direito e um dever, deve ser acolhido e exercido no seio da comunidade.

O cristão que celebra a sua fé deve conceder o primado à interiorização, ou seja, à apropriação pessoal daquilo que ele escuta e realiza na liturgia. Somente uma interiorização autêntica garante uma exteriorização capaz de exprimir aquilo que se vive de maneira profunda. Este é o modo plenamente activo de viver a liturgia, desejado pelo Concilio.

Formar na compreensão da liturgia significa permitir aos fiéis entrar em contacto com a própria essência do mistério cristão. É por isso que se afirma: «a liturgia é a primeira e necessária fonte, onde os fiéis hão-de beber o espírito genuinamente cristão» (SC, n. 14).

Mas diz ainda o texto conciliar que compete aos Pastores a exigência de zelar pela liturgia para que ela se realize segundo a dignidade que lhe é própria e apela, como fica dito acima, para uma participação plena, consciente e activa.

Eis um desafio profundo lançado à formação cristã, à experiência de comunhão, ao exercício da corresponsabilidade que devem estar visivelmente presentes na acção litúrgica. Eis a abertura para uma verdadeira comunidade inteiramente ministerial, na qual cada um realiza o serviço a que é chamado segundo a sua vocação e condição cristã.

1.4. Comunidade ministerial

A liturgia é a expressão mais completa do mistério da Igreja, de tal maneira que se pode afirmar que a comunidade cristã, segundo o modo de viver a celebração litúrgica, exprime e manifesta a experiência de Igreja que ela mesma vive.

Deste modo, o compromisso permanente da pastoral litúrgica deve continuar e tender para as suas finalidades mais importantes, ou seja,  a participação activa, a formação espiritual e a co-responsabilidade ministerial.

Assim, trata-se de expressar e construir uma imagem de Igreja, povo de Deus, que celebra o Mistério. Isto é, a imagem de Igreja que se manifesta na comunidade real e quotidiana, que celebra o Domingo, que vive os ritmos do ano litúrgico, que se anima pelas suas próprias festas e tradições particulares e que está atenta aos pobres que vivem no meio dela. Com efeito, o povo de Deus na sua totalidade é povo sacerdotal e, excepto a distinção dos ministérios ordenados e não ordenados, todos os leigos são sujeitos litúrgicos capazes e habilitados para o ministério litúrgico, segundo a sua condição e nas suas várias formas(cfr. Piero Marini, art. «No 40º aniversário da promulgação da Constituição “Sacosanctum Concilium”, Rev. Renouveau liturgique Documents fondateurs, Centre national de pastoral liturgique, éditions du Cerf, Collection Liturgie, n. 14, Paris, 2004).

Na liturgia deve transparecer o que a comunidade cristã é realmente, isto é, toda ela ministerial. Povo de Deus convocado em assembleia para celebrar os mistérios de Deus oferecidos na pessoa de Jesus Cristo e realizados pela acção do Espírito Santo, e que reconhece os dons divinos que lhe são oferecidos em ordem à partilha fraterna e à missão no meio do mundo.

Por isso, na renovação conciliar, exige-se que cada um execute na liturgia o que lhe diz respeito. Eis o enunciado conciliar: «Nas celebrações litúrgicas, limite-se cada um, ministro ou simples fiel, exercendo o seu ofício, a fazer tudo e só o que é de sua competência, segundo a natureza do rito e as leis litúrgicas» (SC, 28).

E, mais ainda, «os que servem ao altar, os leitores, comentadores e elementos do grupo coral desempenham também um autêntico ministério litúrgico. Exerçam, pois, o seu múnus com piedade autêntica e do modo que convêm a tão grande ministério e que o Povo de Deus tem o direito de exigir» (SC, 29).

A eclesiologia de comunhão transparece em todos os textos conciliares. Ela é sem sombra de dúvida o fundamento de toda a concepção de Igreja presente no desenrolar dos trabalhos do concilio e nos textos posteriores.

A visibilidade da comunhão está patente na Assembleia reunida para celebrar as maravilhas de Deus, mas exige a partilha dos diversos serviços no desenrolar da acção litúrgica.

A corresponsabilidade na missão da Igreja a que todos os cristãos são chamados toma lugar já na vida litúrgica da comunidade cristã. Isto exige formação, exercício ministerial, consciência da partilha dos dons pessoais de acordo com a sua vocação.

1.5. A beleza na celebração

No contexto da cultura actual e na intuição conciliar não poderemos ignorar a relevância da beleza no acto litúrgico. É necessário transmitir a imagem de uma Igreja que celebra, anuncia e vive o Mistério de Jesus Cristo na beleza e na dignidade da celebração. Uma beleza que não é apenas formação, formalismo estético, mas que se fundamenta na "simplicidade nobre", capaz de manifestar a relação entre os elementos humano e o divino da liturgia (Cfr. Piero Marini, Ob. Cit.).

Toda a forma de beleza eleva o homem e, por isso, esta torna-se uma linguagem universal para a relação com o transcendente.

A reforma litúrgica do Concilio Vaticano II tem como horizonte a comunhão do crente com Deus que se manifesta de diversos modos e apoiada em variadas fontes, também na beleza da acção litúrgica. Esta deve deixar transparecer a presença de Jesus Cristo no centro da liturgia, o que poderá ser tanto mais evidente, quanto mais se puder sentir nas celebrações a contemplação, a adoração, a gratuidade e a acção de graças.

O salmista cantava «majestade e esplendor O precedem, poder e beleza estão no seu templo» [Sl. 96(95)]. Ou ainda, «a Sua obra é esplendor e majestade» (Sl 111 [110].

Assim, a liturgia continuará, também graças à sua beleza, a ser fonte e ápice, escola e norma de vida cristã.

A presença misteriosa e real de Cristo e o ser protagonista no rito celebrado exige da linguagem litúrgica o esplendor da nobre simplicidade, segundo a célebre afirmação do Concílio Vaticano II (cf. SC, 34). Fala-se no «esplendor da nobre simplicidade», porque esta é a expressão completa utilizada pelos Padres conciliares. Nela é-nos concedido encontrar a relação intrínseca entre beleza, nobreza e simplicidade.

Para nos ajudar a compreender melhor a relação da beleza com o mistério celebrado, vejamos um texto do Papa Bento XVI, na exortação apostólica pós-sinodal sobre a Eucaristia, Sacramentum caritatis, que diz: «A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teológico e litúrgico da beleza. De facto, a liturgia, como aliás a revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade, veritatis splendor (...) Referimo-nos aqui a este atributo da beleza, vista não como mero esteticismo, mas como modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança, fascina e arrebata, fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira vocação: o amor (...) A verdadeira beleza é o amor de Deus que nos foi revelado definitivamente no mistério pascal. A beleza da liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da glória de Deus e, de certa forma, constitui o céu que desce à terra (...) Concluindo, a beleza não é um factor decorativo da acção litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação. Tudo isto nos há-de tornar conscientes da atenção que se deve prestar à acção litúrgica, a fim de que brilhe segundo a sua própria natureza» (n. 35).

A realidade da beleza está muito presente na Igreja que na sua longa história jamais teve receio de prover a celebração litúrgica com as expressões mais elevadas da arte: da arquitectura à escultura, à música e às alfaias sagradas. Isto mesmo nos ensinam os santos que, não obstante a sua pobreza pessoal e a sua caridade heróica, sempre desejaram que ao culto se destinasse quanto há de melhor.

Vejamos ainda o que nos diz Bento XVI num belo texto pronunciado em Paris, no qual realça que «as nossas liturgias da terra, inteiramente dedicadas a celebrar este gesto único da história, nunca conseguirão expressar totalmente a sua densidade infinita. Sem dúvida, a beleza dos ritos jamais será bastante requintada, suficientemente cuidada nem muito elaborada, porque nada é demasiado belo para Deus, que é a Beleza infinita. As nossas liturgias terrenas não poderão ser senão um pálido reflexo da liturgia que se celebra na Jerusalém do céu, ponto de chegada da nossa peregrinação na terra. Possam, porém, as nossas celebrações aproximar-se o mais possível dela, permitindo-nos antegozá-la!» (Homilia durante a celebração das Vésperas na Catedral de Notre Dame, Paris, 12 de Setembro de 2008).

Porque na liturgia age o Cristo total e é igualmente obra da Igreja, o que é essencial é que no final seja superada a diferença entre o agir de Cristo e o nosso próprio agir, que haja uma progressiva harmonização entre a sua vida e a nossa vida, entre o seu sacrifício de adoração e o nosso, de tal maneira que existe um único agir, seu e ao mesmo tempo nosso. Aquilo que são Paulo afirma não pode deixar de ser a indicação do que é essencial alcançar, em virtude da celebração litúrgica, ao dizer: «Fui crucificado com Cristo; já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 19-20).

1.6. A Celebração da Fé no contexto do processo evangelizador

Como diz o Santo Padre  Bento XVI, Porta Fidei, o Ano da Fé é convite para uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo. No mistério da sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos pecados (cf. Act 5, 31). Para o apóstolo Paulo, este amor introduz o homem numa vida nova: «Pelo Baptismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova» (Rm 6, 4).

Por isso, «em virtude da fé, esta vida nova plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afectos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A “fé, que actua pelo amor” (Gl 5, 6), torna-se um novo critério de entendimento e de acção, que muda toda a vida do homem» (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17) (nº 6).

E, mais à frente, continua afirmando que com o seu amor, Jesus Cristo atrai a Si os homens de cada geração: em todo o tempo, Ele convoca a Igreja confiando-lhe o anúncio do Evangelho, com um mandato que é sempre novo. Por isso, também hoje é necessário um empenho eclesial mais convicto a favor duma nova evangelização, para descobrir de novo a alegria de crer e reencontrar o entusiasmo de comunicar a fé.

Realmente, na descoberta diária do seu amor, ganha força e vigor o compromisso missionário dos crentes, que jamais pode faltar. Com efeito, a fé cresce quando é vivida como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria. A fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite oferecer um testemunho que é capaz de gerar: de facto, abre o coração e a mente dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a aderir à sua Palavra a fim de se tornarem seus discípulos (Cfr. nº 7).

Conclui-se, então, sublinhando como que em síntese que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é «a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força».

Simultaneamente, refere ainda o texto, espera-se que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada e reflectir sobre o próprio acto com que se crê, é um compromisso que cada crente deve assumir, sobretudo neste Ano (Cfr. nº 9).

Este escrito realça o objectivo unificador de todas as acções da Igreja em ordem à evangelização. Neste sentido se afirma a necessidade de atender à confissão da fé, à sua celebração e ao testemunho que dela emerge para tocar o mundo onde se vive.

Mas diremos ainda mais, cada uma destas acções da comunidade e de cada cristão estão interligadas entre si. A verdadeira profissão de fé exige a celebração autêntica e vice-versa. O mesmos e diga do testemunho que para ser verdadeiramente cristão não pode alhear-se da profissão da fé da celebração dos mistérios da fé.

A vida da fé é uma unidade, embora se reconheça nela um conjunto de passos essenciais para uma clareza de adesão e de encontro com Cristo.

Neste itinerário muito se aproveita da pedagogia da iniciação cristã pela qual a pessoa é convidada a transformar a sua vida à luz do mistério pascal de Cristo e a entregar-se inteiramente a Ele como Sua discípula.

No que diz respeito à nova evangelização, na homilia da Eucaristia de encerramento do recente sínodo sobre esta mesma temática,  o Santo Padre distinguia entre a pastoral ordinária, a missão ad gentes e a nova evangelização direccionada sobretudo para as pessoas baptizadas que, porém, não vivem as exigências do Baptismo.

Quanto à primeira sublinha a importância de celebrar os sacramentos da iniciação cristã antecedidos de uma catequese adequada e realça a importância do sacramento da penitência. Refere que é através deste itinerário sacramental que passa o chamamento universal do Senhor à santidade. Só os santos têm uma linguagem testemunhal que se torna compreensível a todos.

No que diz respeito à segunda, isto é a missão ad gentes, esta destina-se àqueles que ainda não conhecem a Cristo. Para estes exige-se o primeiro anuncio para o qual são imprescindíveis os leigos de modo que se tornem protagonistas de um novo ardor missionário. Destaca-se o papel da globalização nos novos cenários para um primeiro anuncio mesmo em países tradicionalmente cristãos. Se por um lado, refere o Papa, todos os homens têm o direito de conhecer Jesus Cristo e o seu Evangelho; do mesmo modo, corresponde o dever dos cristãos – de todos os cristãos: sacerdotes, religiosos e leigos – de anunciarem a Boa Nova.

Em terceiro lugar, focam-se os países secularizados. Estes necessitam de uma atenção especial para que novamente se encontrem com Jesus Cristo, redescubram a alegria da fé e voltem a integrar a comunidade cristã, onde celebrem e partilhem a mesma fé.

A nova evangelização diz respeito a toda a vida da Igreja e deve atingir todos os homens e mulheres em qualquer situação em que se encontrem.

Para além dos métodos tradicionais de pastoral, sempre válidos, realça ainda o Santo Padre, que a Igreja procura lançar mão de novos métodos, valendo-se também de novas linguagens, apropriadas às diversas culturas do mundo, para implementar um diálogo de simpatia e amizade que se fundamenta em Deus que é Amor. Em várias partes do mundo, a Igreja já encetou este caminho de criatividade pastoral para se aproximar das pessoas afastadas ou à procura do sentido da vida, da felicidade e, em última instância, de Deus.

Quando nos referirmos à evangelização deparamo-nos com a riqueza da Evangelii Nuntiandi que ao assunto que nos ocupa, a importância da celebração na evangelização, dedica sobretudo dois número.

O primeiro (nº 43) realça a relevância da liturgia da Palavra, nomeadamente a homilia que no dizer deste documento pode ser muito proveitosa para os fiéis que celebram o mistério pascal através da Eucaristia, desde que «seja simples, clara, directa, adaptada, profundamente aderente ao ensinamento evangélico e fiel ao Magistério da Igreja, animada por um ardor apostólico equilibrado que lhe advém do seu carácter próprio, cheia de esperança, nutriente para a fé e geradora de paz e de unidade».

O segundo (nº 47) sublinha o papel dos sacramentos na evangelização. Esta não se esgota no anúncio e na pregação. Como deve atingir a vida, natural e sobrenatural, exprime toda a sua riqueza na relação intima entre a Palavra Revelada e os Sacramentos. Estes verdadeiramente bem preparados e celebrados são autenticamente sacramentos da fé.

Neste percurso evangelizador, exige-se o anuncio kerigmático; a catequese propriamente dita que conduz à conversão e á adesão a Jesus Cristo, configura-nos a Jesus Cristo e torna-nos seus discípulos; a celebração dos mistérios da nossa fé; a construção da comunidade pela partilha fraterna e pelo testemunho cristão no meio do mundo em atitude de serviço à pessoa e à sociedade.

Conclusão

A terminar, diria que a formação integral da pessoa cristã exige a unidade entre as três áreas: anuncio, celebração e partilha fraterna. Se à partida o anúncio parece prioritário e é-o de verdade, porque sem o anúncio não se abre a porta da fé, também é verdade que numa celebração preparada e realizada adequadamente, bem vivida, se introduz a pessoa no ambiente da fé e da celebração, se purifica e se eleva a fé. Daí o cuidado que deve merecer a celebração litúrgica, sobretudo a Eucaristia, para que seja verdadeiramente a celebração da fé e que conduz à fé.

Num tempo de neo-paganismo, com muitos modelos religiosos fabricados pelo ser humano, exige-se uma vivência litúrgica que seja a celebração de Deus tal como se revelou em Jesus Cristo e aberta à acção do Espírito Santo. Daí a necessidade de saber centrar bem a liturgia cristã, no que toca à celebração da Eucaristia, dos demais sacramentos, à oração e à celebração da Palavra de Deus e, sobretudo, a consciência da realidade Trinitária na celebração.

Muitos dos nossos contemporâneos são atraídos ao transcendente pela via da beleza. Dizia-o o Santo Padre na bênção da Catedral da Sagrada Família de Barcelona, referindo-se à expressão de beleza que Antoni Gaudi espelhou naquele templo, referindo que «colaborou genialmente para a edificação da consciência humana ancorada no mundo, aberta a Deus, iluminada e santificada por Cristo. E realizou algo que é uma das tarefas mais importantes hoje: superar a ruptura entre consciência humana e consciência cristã, entre existência neste mundo temporal e abertura a uma vida eterna, entre beleza das coisas e Deus como Beleza». Fê-lo, não com palavras mas com pedras, traços, planos e cumes. «E a beleza é a grande necessidade do homem; constitui a raiz da qual brota o tronco da nossa paz e os frutos da nossa esperança. A beleza é também reveladora de Deus porque, como Ele, a obra bela é pura gratuidade, convida à liberdade e extirpa do egoísmo».

A celebração litúrgica deve primar pela harmonia e pela elevação espiritual de tal modo que quem nela participe se reconheça a experienciar o invisível, ou seja a beleza de Deus.

Por último diria que é importante que reconheçamos que a celebração da fé se integra no processo evangelizador. A Igreja tem o seu método para evangelizar ao qual se deve obedecer. Partindo do primeiro anúncio, passando pela catequese catecumenal ou de iniciação cristã, chegando á celebração dos mistérios da fé, culminando na Eucaristia, na opção cristã de vida, na partilha fraterna e no testemunho cristão no mundo.

 

 

+ João Lavrador, Bispo Auxiliar do Porto