terça-feira, 5 de agosto de 2014

A Reforma do Ano Litúrgico
a partir do Concílio Vaticano II
By Pe. Cristiano Marmelo Pinto

Introdução

Ainda no calor das comemorações dos 50 anos do Concílio Ecumênico Vaticano II, a 6ª Semana Diocesana de Liturgia se dispõe a tratar de um dos assuntos cruciais de nossa liturgia: o ano litúrgico. Compreender o valor sacramental e o seu desenrolar contribuirá de maneira determinante para que nossas celebrações litúrgicas sejam conforme os anseios do Concílio Vaticano II. Seu principal objetivo foi resgatar a participação de todo o povo de Deus no ato litúrgico, de modo que a Igreja, Corpo Místico de Cristo, unida a Cabeça que é Jesus, possa obter a graça que emana de toda ação litúrgica. Participar significa: fazer parte, tomar parte, no acontecimento salvífico que é celebrado. É pois, ser inserido e inserir-se no mistério celebrado.

O mistério celebrado, ou seja, toda a história da salvação, que tem seu centro o mistério pascal de Cristo e se prolonga na história atual por meio da vivência dos cristãos discípulos e discípulas de Jesus Cristo, encontra seu desenvolvimento no desenrolar do ano litúrgico.

Por muito tempo houve um desvio de eixo na liturgia e consequentemente na celebração do ano litúrgico, dando muitas vezes lugar a vida dos santos e sua celebração, do que o próprio mistério de Cristo que, embora deva ser celebrado na vida de seus discípulos que alcançaram a salvação eterna, não era considerado a centralidade de nossa liturgia.

Não se pode, contudo negar que no decorrer dos séculos, as festas dos santos foram aumentando em número desproporcionado. Por isso o santo Concílio justamente decretou: para que as festas dos santos não prevaleçam sobre as festas que comemoram os mistérios da salvação, muitas delas ficarão a ser celebradas só por uma Igreja particular ou nação ou família religiosa, estendendo-se a toda a Igreja apenas as que recordam santos de importância verdadeiramente universal.[1]

O Concílio Vaticano II ao tratar do ano litúrgico procura devolver a centralidade do mistério pascal de Cristo na liturgia, resgata o sentido do tempo na liturgia como lugar de vivência da obra propõe algumas modificações a serem realizadas.

Nossa reflexão pretende abordar tão somente do que é tratado na Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, que dedicou todo um capítulo da referida constituição para tratar do ano litúrgico e sua reforma. Ele é abordado nos números 102 a 111. O Concílio abordou aquilo que era necessário e mais urgente, deixando para que as devidas adaptações e reforma do calendário litúrgico fossem realizadas posteriormente.

Natureza do ano litúrgico

A santa mãe Igreja considera seu dever celebrar, em determinados dias do ano, a memória sagrada da obra de salvação do seu divino Esposo. Em cada semana, no dia a que chamou domingo, celebra a da Ressurreição do Senhor, como a celebra também uma vez no ano na Páscoa, a maior das solenidades, unida à memória da sua Paixão.

Distribui todo o mistério de Cristo pelo correr do ano, da Encarnação e Nascimento à Ascensão, ao Pentecostes, à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor.

Com esta recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de torná-los como que presentes a todo o tempo, para que os fiéis, em contacto com eles, se encham de graça (SC 102).

A Igreja celebra a obra de salvação na experiência do tempo lunar que, que forma as semanas. Na experiência semanal do tempo, temos a celebração semanal da páscoa, o Dia do Senhor, o domingo. Temos a celebração semanal da páscoa, o domingo, e a celebração anual da páscoa, o Tríduo Pascal.

Nem sempre se utilizou a expressão: “ano litúrgico”. Até o século XVI era denominado “ano da Igreja”. Um século mais tarde passa-se a usar a expressão: “ano cristão”. Foi nos primórdios do Movimento Litúrgico, com Próspero Guéranger que começa a ser chamado de “ano litúrgico”. Pio XII na Encíclica Mediator Dei, de 1947, incorpora a expressão no Magistério da Igreja, de modo que ele aparece na Sacrosanctum Concilium e demais documentos da reforma litúrgica.

Podemos definir o ano litúrgico como “a celebração do mistério de Cristo e da obra da salvação no decorrer do ano[2]. A Igreja revela e vive a totalidade do mistério de Cristo ao longo do ano litúrgico, desde a encarnação, nascimento até a ascensão e pentecostes, bem como a expectativa da vinda do Senhor. Como afirma Goedert:

O ano litúrgico reúne o ciclo das celebrações anuais da Igreja que atualiza o mistério de Cristo no tempo [...]. Não apenas recorda as ações de Jesus, nem somente renova a lembrança de ações passadas, mas sua celebração tem força sacramental e especial eficácia. Recorda-nos e faz presente o que Deus realizou pelos homens em Cristo e o que hoje continua a ser realizado pelo Espírito Santo na Igreja, como também o que devemos realizar para responder na fé e imitar na vida o exemplo de Cristo.[3]

A memória da Virgem

Na celebração deste ciclo anual dos mistérios de Cristo, a santa Igreja venera com especial amor, porque indissoluvelmente unida à obra de salvação do seu Filho, a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, em quem vê e exalta o mais excelso fruto da Redenção, em quem contempla, qual imagem puríssima, o que ela, toda ela, com alegria deseja e espera ser (SC 103).

ASacrosanctum Concilium no número 103 dá um lugar de destaque a Virgem Maria devido sua íntima união com a obra da salvação realizada em Jesus Cristo, seu Filho. Como afirma LLABRÉS: “A memória de Maria na liturgia aparece unida primordialmente à memória dos eventos salvíficos realizados por Jesus.[4]

Há de se destacar dois aspectos ao celebrar a memória da Virgem Maria na liturgia:

a) Na memória de Maria, a Igreja cultua a Deus

Ao celebrar a memória da Virgem Maria, a Igreja cultua a Deus que, como ela mesmo canta no magnificat:“Fez grandes coisas em seu favor” (Lc 1,49). De fato, ao celebrarmos os mistérios de Cristo na vida da Bem-aventurada Virgem Maria, damos graças ao Senhor que olhou para sua serva, Maria, e fez grandes coisas em seu favor. Maria aparece na Sagrada Escritura indissoluvelmente unida a obra de Cristo e, por conseguinte a obra da salvação (cf. Mt 1,22-23; Lc 1,28-38; 2,35; Jo 2,4-6; 19,25-27). Mesmo depois da paixão, morte, ressurreição e ascensão de Jesus aos céus, Maria continua unida a Igreja nascente (cf. Atos 1,14). Deste modo, celebrando a memória de Maria na liturgia, fazemos memória de toda a obra da salvação que Deus Pai realizou em seu Filho Jesus Cristo. “Ao honrar Maria, a Igreja quer glorificar a Cristo, de quem vêm a Maria todos os privilégios. A Igreja admira Maria, o fruto mais excelente da redenção”[5]. A Constituição Dogmática Lumen Gentium afirma que:

Este culto, tal como existiu sempre na Igreja, é de todo singular, mas difere essencialmente do culto de adoração que é prestado ao Verbo encarnado e do mesmo modo ao Pai e ao Espírito Santo, e muito contribui para ele. Pois que as várias formas de devoção para com a Mãe de Deus, que a Igreja aprovou – dentro dos limites da doutrina Sá e ortodoxa, segundo as circunstâncias como sinal de esperança segura e de consolação, aos olhos do povo de Deus peregrino (LG 68).

b) Maria aparece como modelo a ser imitado

Fazendo memória da Virgem Maria a Igreja celebra “tudo o que ela deseja e espera com alegria ser” (SC 103). A Constituição Dogmática Lumen Gentium nos oferece uma riquíssima reflexão acerca do valor de Maria para a vida da Igreja. Ela dedica todo o capítulo 8 para tratar de Maria no mistério de Cristo e da Igreja. A Constituição afirma que “A mãe de Deus é a figura da Igreja” (LG 63). E continua dizendo que:

A Igreja, contemplando a santidade misteriosa de Maria, imitando a sua caridade, e cumprindo fielmente a vontade do Pai, pela Palavra de Deus fielmente recebida torna-se também ele mãe: pela pregação e pelo batismo gera, para uma vida nova e imortal, os filhos concebidos do Espírito Santo e nascidos de Deus. E é também virgem, que guarda a fé jurada ao Esposo, íntegra e pura; e, à imitação da Mãe do seu Senhor, conserva, pela graça do Espírito Santo, virginalmente íntegra a fé, sólida a esperança, sincera a caridade (LG 64).

Santos e santas no culto da Igreja ao longo do ano litúrgico

A Igreja inseriu também no ciclo anual a memória dos mártires e outros santos, os quais, tendo pela graça multiforme de Deus atingido a perfeição e alcançado a salvação eterna, cantam hoje a Deus no céu o louvor perfeito e intercedem por nós. Ao celebrar o “dies natalis” (dia da morte) dos santos, proclama o mistério pascal realizado na paixão e glorificação deles com Cristo, propõe aos fiéis os seus exemplos, que conduzem os homens ao Pai por Cristo, e implora pelos seus méritos as bênçãos de Deus (SC 104).

A Igreja, segundo a tradição, venera os santos e as suas relíquias autênticas, bem como as suas imagens. É que as festas dos santos proclamam as grandes obras de Cristo nos seus servos e oferecem aos fiéis os bons exemplos a imitar. Para que as festas dos santos não prevaleçam sobre as festas que recordam os mistérios da salvação, muitas delas ficarão a ser celebradas só por uma igreja particular ou nação ou família religiosa, estendendo-se apenas a toda a Igreja as que festejam santos de inegável importância universal (SC 111).

ASacrosanctum Concilium dedica dois números ao culto e as festas dos santos. São os números 104 e 111. Segundo Julián L. Martín: “O culto litúrgico dos santos começou historicamente com a veneração dos mártires, uma forma de culto aos defuntos assumido pelos cristãos, mas relacionado desde os primeiros tempos com a morte do Senhor e com a confissão de seu senhorio pascal.”[6]

O primeiro culto aos santos a se desenvolver na Igreja foi o culto aos mártires. Para Bergamini: “Este culto não é senão um aspecto do mistério pascal. Se os mártires, com seus sofrimentos, testemunharam Cristo, com maior razão é Cristo que neles testemunhou o Pai.[7] O culto dos mártires inicialmente era somente local. Com o tempo passou-se para outras Igrejas e posteriormente estendeu-se para a Igreja Universal.

Com o passar dos séculos, foi-se acrescentando outros santos ao calendário litúrgico. Porém, foi-se sobrecarregando o calendário litúrgico com comemorações dos santos a tal ponto de obscurecer a celebração do mistério do Senhor no ano litúrgico. Desde modo: “Muitos domingos haviam sido suprimidos, pois seus lugares foram ocupados por celebrações de santos.”[8]Após tentativas fracassadas de restabelecer a primazia do mistério do Senhor sobre as festas dos santos, Pio X, mediante o Motu Proprio Abhinc duos annos, restaura a prevalência dos domingos sobre as festas dos santos.

Esta restauração tem seu coroamento no Concílio Vaticano II. Ele restabelece a centralidade do mistério pascal de Cristo sobre as demais festas. Conforme Auge: “O ano litúrgico celebra uma única realidade, o mistério pascal de Cristo. [...] A Igreja ao celebrar cada ano o‘dia natalis’ dos mártires e dos santos, celebra o ‘realizar-se’ neles do mistério pascal do Senhor.”[9] O santo participa da plenitude do mistério pascal de Cristo, e sua santidade existe em função desta participação.

Ao venerar os santos, a Igreja reconhece e proclama a graça vitoriosa de Cristo, único salvador e redentor dos homens. Ela rende graças ao Pai pela misericórdia que nos é concedida no Cristo e se torna presente e atuante em alguns de seus membros e, consequentemente, em todo o corpo da Igreja.[10]

No culto dos mártires e dos outros santos (cf. SC 104), prestando neles culto a Deus, podemos distinguir três aspectos:

1. A Igreja dá graças a Deus, admirável nos seus santos. Celebrando seu natalício (dia da morte), a Igreja prega o mistério pascal de Cristo;

2. Os santos são vistos como modelo a serem imitados. A graça divina recebida e vivida pelos santos os torna sinal e testemunho de fé, nos servindo de modelo a ser seguido;

3. Por seus méritos e presença diante de Deus, os santos tornam-se nossos intercessores junto a Deus.

O número 111 da Sacrosanctum Concilium restabelece a centralidade e a primazia do mistério pascal de Cristo sobre as festas dos santos. Para isso, a Igreja vai estabelecer critério para a permanência de alguns santos no calendário universal do ano litúrgico, bem como, para que outros santos permaneçam somente nas celebrações locais, seja numa Igreja particular (diocese), nação ou família religiosa. Permanecem no calendário litúrgico para toda a Igreja somente os santos de “inegável importância universal” (cf. SC 111).

Todavia, não contou apenas o critério da universalidade geográfica; também se levou em conta a universalidade da vida cristã, em virtude da qual deviam estar representados todos os estados de vida e toda a variedade de expressões e realizações das virtudes e da santidade cristãs, como: a ação missionária e caritativa, o apostolado dos leigos, a vida contemplativa, a ascese, etc. Igualmente a universalidade no tempo, em virtude da qual foram incorporados no calendário romano representantes de todos os séculos.[11]

Exercícios de piedade

Em várias épocas do ano e seguindo o uso tradicional, a Igreja completa a formação dos fiéis servindo-se de piedosas práticas corporais e espirituais, da instrução, da oração e das obras de penitência e misericórdia (SC 105).

A Constituição Sacrosanctum Conciliumtrata dos exercícios de piedade ou atos/práticas de piedade em dois números. No número 13 nos dá algumas orientações acerca dos exercícios de piedade. Diz-se que: “conquanto conformes às leis e normas da Igreja, são muito de se recomendar” (SC 13). Relaciona-os aos tempos litúrgicos ao afirmar que: “Importa, porém, ordenar esses atos de piedade, levando em conta os tempos litúrgicos, de modo que estejam em harmonia com a sagrada liturgia, nela se inspirem e a ele, por sua própria natureza muito superior, conduzam o povo cristão” (SC 13). De fato, como afirma Miguel Nicolau:

Os exercícios contribuirão para viver o principal da vida litúrgica, que há de ser o viver em graça de Deus e associar-se ao sacrifício de Cristo, e receber a sua graça sacramental na conveniente confissão e devota e preparada comunhão; ajudarão, com os modos de oração que ensinam, seguindo a vida de Cristo, a acompanhá-lo no ciclo do ano litúrgico, e a apreciar as orações litúrgicas, mediante aquele modo de orar, para que nos preparam na consideração repousada da oração até que o espírito se satisfaça.[12]

Fica evidente já no número 13 que os exercícios de piedade devem estar conformes e direcionar a vida litúrgica dos fiéis. Porém, faz-se necessário que esses exercícios acompanhem o mistério de Cristo ao longo do ano litúrgico, ajudando a melhor vivenciá-lo. É neste sentido que o número 105 da Sacrosanctum Concilium irá relacionar os exercícios de piedade com os tempos litúrgicos de modo que introduzam os fiéis na própria celebração do mistério de Cristo na liturgia.

Não se pode ignorá-la, muito menos descuidar dos exercícios de piedade. Como afirma o saudoso papa São João Paulo II: “A piedade popular não pode ser ignorada, nem tratada com indiferença ou desprezo, porque é rica em valores, e por si mesma expressa a atitude religiosa diante de Deu.”[13] De fato, “tanto as práticas de piedade do povo cristão quanto outras formas de devoção são acolhidas e recomendadas, desde que não substituam e não se misturem com as celebrações litúrgicas.”[14]

Para exemplificar essas práticas de piedade podemos citar algumas, tais como: o rosário, a oração do angelus, a via-sacra, as ladainhas, novenas, etc. Porém, aSacrosanctum Concilium chama a atenção para as “piedosas práticas corporais e espirituais, da instrução, da oração e das obras de penitência e caridade” (SC 105). Encaixa-se nessa perspectiva o jejum, a oração, a esmola, a espiritualidade do advento e quaresma, o repouso dominical e a prática da solidariedade e fraternidade. Mas, é importante que essas práticas não obscureçam a própria liturgia, ao contrário, devem direcionar para ela, mais ainda, devem estar em harmonia com a liturgia.[15]

Como afirma J. Castellano: “A piedade popular bem entendida é uma forma popular de proclamar o Evangelho, celebrá-lo, vivê-lo e adentrar na oração popular.”[16]Ele relaciona a piedade popular com os quatro pontos fundamentais presentes no Catecismo da Igreja Católica:

a) Sua unidade com a fé;

b) Sua harmonia com a liturgia;

c) Seu compromisso de vida cristã;

d) Apoio da oração pessoal e coletiva.

Segundo J. Castellano, o ano litúrgico é o caminho ordinário da vida da Igreja e a piedade popular nasce e se desenvolve nas pegadas das celebrações do ano litúrgico.[17]

Revalorização do domingo, Dia do Senhor

Por tradição apostólica, que nasceu do próprio dia da ressurreição de Cristo, a Igreja celebra o mistério pascal todos os oito dias, no dia que bem se denomina dia do Senhor ou domingo. Neste dia devem os fiéis reunir-se para participarem na Eucaristia e ouvirem a palavra de Deus, e assim recordarem a Paixão, Ressurreição e glória do Senhor Jesus e darem graças a Deus que os “regenerou para uma esperança viva pela Ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos”(1 Pedr. 1,3). O domingo é, pois, o principal dia de festa a propor e inculcar no espírito dos fiéis; seja também o dia da alegria e do repouso. Não deve ser sacrificado a outras celebrações que não sejam de máxima importância, porque o domingo é o fundamento e o centro de todo o ano litúrgico (SC 106).

O Concílio Vaticano II, dentro das preocupações da reforma da liturgia, propõe uma revalorização do domingo. O domingo constitui o núcleo elementar do ano litúrgico. O surgimento do domingo (Dies Domini – Dia do Senhor) está diretamente relacionado ao evento pascal de Cristo desde o início da Igreja. Como nos diz J. Ariovaldo: “O primeiro dia da semana se tornou, para os cristãos, um dia memorável, inesquecível, por causa da impressionante novidade da ressurreição.”[18]

Encontramos no número 106 da Sacrosanctum Conciliumas seguintes dimensões do domingo:

a) O próprio fato da sua tradição a partir da comunidade apostólica, do primeiro dia da primeira páscoa;

b) O domingo celebra o mistério pascal a cada oito dias;

c) O nome que se prefere é o de “dia do Senhor”;

d) Dia da reunião da comunidade cristã para escutar a Palavra e celebrar a Eucaristia;

e) Faz memória do mistério pascal de Cristo;

f) O domingo é para a comunidade cristã: festa primordial, dia de alegria e descanso;

g) Mantém sua prioridade sobre todas as outras celebrações;

h) É o fundamento e núcleo de todo o ano litúrgico.

São João Paulo II em seu pontificado dedica um documento para tratar da recuperação do domingo e sua santificação. Trata-se da Carta Apostólica Dies Domini, de 1998. Nela, ele afirma que: “O domingo, de fato, recorda, no ritmo semanal do tempo, o dia da ressurreição de Cristo. É a páscoa semanal, na qual se celebra a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, o cumprimento n’Ele da primeira criação e o início da nova criação.”[19] A Carta convida os cristãos “a redescobrir, com maior ímpeto, o sentido do domingo: seu mistério, o valor de sua celebração, seu significado para a existência cristã e humana.”[20]

A Carta Apostólica Dies Dominidivide-se em cinco capítulos bem distribuídos que nos apresenta o domingo em todas as suas dimensões:

Capítulo I – Dies Domini – o domingo é a celebração da obra da criação;

Capítulo II – Dies Christi – é o dia do Senhor ressuscitado e dom do Espírito;

Capítulo III – Dies Ecclesiae – é o dia da assembleia litúrgica;

Capítulo IV – Dies Hominis – dia de alegria, descanso e solidariedade;

Capítulo V – Dies Dierum – festa primordial e reveladora do sentido do tempo.

Eis ai um bom texto para refletir o domingo dentro das perspectivas do Concílio Vaticano II. Já há algum tempo, o domingo vem sofrendo certa desvalorização da parte dos muitos cristãos que o substitui por outras obrigações. É urgente recuperar sua importância para uma sadia vivência cristã de nossa fé, que tem sua centralidade no mistério pascal de Cristo, celebrado dominicalmente.

Revisão do ano litúrgico

Reveja-se o ano litúrgico de tal modo que, conservando-se ou reintegrando-se os costumes tradicionais dos tempos litúrgicos, segundo o permitirem as circunstâncias de hoje, mantenha o seu caráter original para, com a celebração dos mistérios da redenção cristã, sobretudo do mistério pascal, alimentar devidamente a piedade dos fiéis. Se acaso forem necessárias adaptações aos vários lugares, façam-se segundo os art. 39 e 40 (SC 107).

Oriente-se o espírito dos fiéis em primeiro lugar para as festas do Senhor, as quais celebram durante o ano os mistérios da salvação e, para que o ciclo destes mistérios possa ser celebrado no modo devido e na sua totalidade, dê-se ao Próprio do Tempo o lugar que lhe convém, de preferência sobre as festas dos Santos (108).

A seguir, o Concílio Vaticano II propõe uma revisão geral do ano litúrgico com a finalidade de que se adapte à nossa época as tradições e normas dos tempos passados, para que o ano litúrgico possa ser verdadeiro alimento espiritual para a piedade dos fiéis ao celebrar o mistério pascal de Cristo. É importante considerar que o ano litúrgico possui uma pedagogia. Para J. Bellavista no ano litúrgico dá-se uma visão plena de um único mistério pascal, considerado pelo Concílio Vaticano II, e que se expressa de maneira pedagógica.[21]

Para uma verdadeira pedagogia do ano litúrgico, o Concílio ordena que o próprio do tempo tenha a prioridade em relação às festas dos santos (cf. SC 108), para que os fiéis sejam levados a dar atenção em primeiro lugar às festas do Senhor, de modo que o ciclo integral dos mistérios da salvação seja convenientemente celebrado. Há uma certa hierarquia dos tempos e festas litúrgicas do Senhor, de modo que, ao longo do ano litúrgico, são assinaladas as etapas da história da salvação.

Segundo M. Nicolau:

Com a celebração das festas litúrgicas, que são o órgão mais importante do seu magistério ordinário, a Igreja realiza uma instrução e uma educação dos fiéis que ficaria prejudicada se as festas do Senhor não tivessem o devido relevo. O santoral não deve sobrepor-se a este“próprio” de cada tempo nem ofuscá-lo.[22]

A Quaresma

Ponham-se em maior realce, tanto na liturgia como na catequese litúrgica, os dois aspectos característicos do tempo quaresmal, que pretende, sobretudo através da recordação ou preparação do batismo e pela penitência, preparar os fiéis, que devem ouvir com mais frequência a Palavra de Deus e dar-se à oração com mais insistência, para a celebração do mistério pascal. Por isso:

a) utilizem-se com mais abundância os elementos batismais próprios da liturgia quaresmal e retomem-se, se parecer oportuno, elementos da antiga tradição;

b) o mesmo se diga dos elementos penitenciais. Quanto à catequese, inculque-se nos espíritos, de par com as consequências sociais do pecado, a natureza própria da penitência, que é detesta o pecado por ser ofensa de Deus; nem se deve esquecer a parte da Igreja na prática penitenciai, nem deixar de recomendar a oração pelos pecadores (SC 109).

A penitência quaresmal deve ser também externa e social, que não só interna e individual. Estimule-se a prática da penitência, adaptada ao nosso tempo, às possibilidades das diversas regiões e à condição de cada um dos fiéis. Recomendem-na as autoridades a que se refere o art. 22.

Mantenha-se religiosamente o jejum pascal, que se deve observar em toda a parte na sexta-feira da paixão e morte do Senhor e, se oportuno, estender-se também ao Sábado santo, para que os fiéis possam chegar à alegria da ressurreição do Senhor com elevação e largueza de espírito (SC 110).

Curiosamente o Concílio Vaticano II dá atenção especial ao tempo da quaresma, diferente dos demais tempos, como advento e páscoa. Não significa que os demais tempos litúrgicos sejam menos importantes, mas o Concílio propõe resgatar a natureza própria do tempo quaresmal, restabelecendo sua finalidade. A Sacrosanctum Concilium realça dois aspectos fundamentais da quaresma: a índole batismal e a índole penitencial. O Concílio deseja que por meio destes dois aspectos a quaresma seja de fato um tempo de preparação para a celebração do mistério pascal, por meio da leitura mais frequente da Palavra de Deus e da oração. Recomenda o uso mais abundante dos elementos batismais, próprios da liturgia quaresmal, bem como os elementos penitenciais. Destaca igualmente que, na catequese sejam apresentadas as consequências sociais do pecado e a natureza própria da penitência.

No número 110, a Sacrosanctum Conciliumprocura recuperar a prática penitencial na quaresma. Tradicionalmente, a oração, o jejum e a caridade (esmola) são tidos como exercícios quaresmais, exercícios de conversão evangélica. Porém, insiste para que não seja tão somente uma prática interna e individual, mas também externa e social, e por assim dizer, eclesial (cf. SC 110).

Para A. Beckhäuser: “o problema consiste em redescobrir o sentido autêntico de penitência conforme a Bíblia. Penitência é mudança de vida, penitência é sinônimo de conversão evangélica.”[23]Infelizmente a penitência com o passar do tempo, foi adquirindo um sentido meramente negativo de renúncia, mortificação. É claro que estes motivos são verdadeiros e válidos, porém, é preciso avançar no sentido próprio da penitência. Se ela é mudança de vida, é preciso cultivar o bem e recusar a prática do mal. Ela consiste em viver o mandamento do Senhor, que diz que se deve procurar amar a Deus e o próximo. Segundo São Leão Magno, os três exercícios quaresmais consiste em:

a) A oração – é o maior exercício da penitência, ou seja, viver como filhos de Deus;

b) O jejum – consiste na nossa relação com Deus e com o mundo criado;

c) A esmola (caridade) – trata-se de nossa relação com o próximo.

Tais exercícios em primeiro lugar devem nos ajudar a vivenciar melhor o mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Eles devem estar conformes a própria liturgia. São exercícios que nos ajudam a nos preparar para celebrar o mistério pascal de Cristo. Em segundo lugar, eles devem nos ajudar a viver mais coerentemente a prática do amor fraterno. Por isso estão relacionados ao nosso amor a Deus e ao próximo.

Além destes exercícios quaresmais, há outros que igualmente podem nos auxiliar na busca constante de Deus e do próximo. Temos por exemplo a via-sacra, os momentos penitenciais e no Brasil, por ocasião da quaresma, realiza-se todos os anos a Campanha da Fraternidade, que tem como finalidade voltar nossa atenção para a realidade social de nosso povo e buscar soluções evangélicas para solucioná-las.

A Constituição Sacrosanctum Conciliuminsiste ainda que se mantenha a prática do jejum pascal, se possível não somente na sexta-feira santa, mas também no sábado santo. Este jejum tem por finalidade nos fazer celebrar as alegrias pascais com espírito livre e aberto.

Conclusão

A Constituição Sacrosanctum Conciliumao pretender uma reforma geral da liturgia, não podia deixar de dar especial atenção ao ano litúrgico. Se nossa participação na liturgia consiste em penetrar no mistério do Senhor que é celebrado na liturgia, o ano litúrgico possui uma força pedagógica que nos faz adentrar passo a passo na história da salvação, e de modo particular no mistério pascal de Cristo.

Superando todo desvio de eixo que veio interferindo na celebração do ano litúrgico ao longo dos séculos, o Concílio Vaticano II devolveu a centralidade do mistério pascal de Cristo no ano litúrgico, reconduzindo a celebração dos santos e até mesmo da Virgem Maria em sua real relação com o mistério pascal. O próprio do tempo, ou seja, o mistério do Senhor, tem a prioridade sobre todas as demais festas do ano litúrgico. Também os exercícios de piedade devem estar em harmonia com os tempos litúrgicos, nos fazendo viver melhor o mistério celebrado.

Que procuremos valorizar ainda mais o ano litúrgico com seus tempos próprios, de modo que, possamos participar de maneira plena, consciente e frutuosa de nossa liturgia.


Bibliografia

PAULO VI. Motu proprio “Mysterii pascalis celebrationem”. In: Enquerídio dos Documentos da Reforma Litúrgica. Fátima, Secretariado Nacional de Liturgia, 1998.

JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Dies Domini: sobre a santificação do domingo. São Paulo: Loyola, 1998.

JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Vicesimus quintus annus. (4/12/1988).

CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Diretório sobre piedade popular e liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003.

MARTÍN, Julián López. A liturgia da Igreja: teologia, história, espiritualidade e pastoral. São Paulo: Paulinas, 2006.

GOEDERT, Valter Maurício. A Constituição litúrgica do Concílio Vaticano II: a Sacrosanctum Concilium a seu alcance. São Paulo: Ave Maria, 2013.

LLABRÉS, P. O culto a Santa Maria, Mãe de Deus. In: BOROBIO, Dionísio. A celebração na Igreja. Vol. 3. São Paulo: Loyola, 2000.

NICOLAU, Miguel. Concílio Vaticano II – Constituição Litúrgica: texto e comentário teológico-pastoral. Braga: Secretariado Nacional do Apostolado da Oração, 1968.

BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: o ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994.

MORA, Alfonso. Os santos no ano litúrgico. In: CELAM. Manual de liturgia IV. São Paulo: Paulus, 2007.

AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: Ave Maria, 1996.

ADAM, Adolf. O ano litúrgico: sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Paulinas, 1982.

CASTELLANO, Jesús. Liturgia e vida espiritual: teologia, celebração, experiência. São Paulo: Paulinas, 2008.

DA SILVA. José Ariovaldo. O domingo páscoa semanal dos cristãos. São Paulo: Paulus, 1998.

BECKHÄUSER, Alberto. Sacrosanctum Concilium: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012.









[1]PAULO VI. Motu proprio “Mysterii pascalis celebrationem”. In: Enquerídio dos Documentos da Reforma Litúrgica. Fátima, Secretariado Nacional de Liturgia, 1998, p. 128.
[2]MARTÍN, Julián López. A liturgia da Igreja: teologia, história, espiritualidade e pastoral. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 316; Cf. SC 102.
[3]GOEDERT, Valter Maurício. A Constituição litúrgica do Concílio Vaticano II: a Sacrosanctum Concilium a seu alcance. São Paulo: Ave Maria, 2013, p. 107-108.
[4]LLABRÉS, P. O culto a Santa Maria, Mãe de Deus. In: BOROBIO, Dionísio. A celebração na Igreja. Vol. 3. São Paulo: Loyola, 2000, p. 218.
[5]NICOLAU, Miguel. Concílio Vaticano II –Constituição Litúrgica: texto e comentário teológico-pastoral. Braga: Secretariado Nacional do Apostolado da Oração, 1968, p. 148.
[6]MARTÍN, Julián López. A liturgia da Igreja..., p. 406.
[7]BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: o ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 480.
[8] MORA, Alfonso. Os santos no ano litúrgico. In: CELAM. Manual de liturgia IV. São Paulo: Paulus, 2007, p. 95.
[9]AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 326.
[10]ADAM, Adolf. O ano litúrgico: sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 194.
[11] MORA, Alfonso. Os santos no ano litúrgico... p. 98.
[12]NICOLAU, Miguel. Concílio Vaticano II –Constituição Litúrgica... p. 45.
[13]JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Vicesimus quintus annus. (4/12/1988), n. 18.
[14]CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Diretório sobre piedade popular e liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, n. 2.
[15] Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Diretório sobre piedade popular e liturgia, n. 7.
[16]CASTELLANO, Jesús. Liturgia e vida espiritual: teologia, celebração, experiência. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 390.
[17] Cf. CASTELLANO, Jesús. Liturgia e vida espiritual... p. 403.
[18]DA SILVA. José Ariovaldo. O domingo páscoa semanal dos cristãos. São Paulo: Paulus, 1998, p. 14.
[19]JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Dies Domini: sobre a santificação do domingo. São Paulo: Loyola, 1998, n. 1.
[20] JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Dies Domini...n. 3.
[21]BELLAVISTA, Juan. El año litúrgico. In: Cuadernos Phases nº 14, p. 50-51.
[22]NICOLAU, Miguel. Concílio Vaticano II –Constituição Litúrgica... p. 154-155.
[23]BECKHÄUSER, Alberto. Sacrosanctum Concilium: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 132.

sábado, 1 de março de 2014

 

Buscar o Reino de Deus e o resto vem por acréscimo

Homilia do 8º Domingo do Tempo Comum - Ano A
 
Isaías 49,14-15; Salmo 61(62); 1Coríntios 4,1-5; Mateus 6,24-34
 
Jesus termina o evangelho deste domingo com uma afirmação: “Para cada dia bastam seus próprios problemas.” (Mt 6,34). Esta é uma afirmação que pode nos guiar em meio a tantas preocupações e problemas, que vivemos no nosso dia-a-dia. Certamente viver de problemas passados não nos ajuda, muito menos, antecipar problemas que poderão vir. Isto não significa que não devemos nos preocupar com o futuro, ou ignorar o nosso passado, mas, viver a vida passo por passo. Esta afirmação de Jesus pode e deve ser um slogan para a nossa caminhada: se preocupar com os problemas de cada dia.
Porém, muitas vezes nos encontramos divididos em meio a tantos problemas. Daí vem à questão chave da liturgia de hoje: o que é essencial em nossa vida. Se perdermos tempo com o que não é essencial, gastaremos nossas energias inutilmente, e passaremos nossa vida correndo atrás do que não nos completa como pessoa humana. É neste sentido que Jesus inicia o evangelho de hoje dizendo aos seus discípulos: “Ninguém pode servir a dois senhores: pois, ou odiará um e amará o outro, ou será fiel a um e desprezará o outro” (Mt 6,24). No fundo está dizendo que nosso coração não poderá estar dividido, senão perderemos tempo correndo atrás de coisas supérfluas para a nossa salvação. Mas, ele também dá a resposta: “Pelo contrário, buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas as coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6,33).
Se compreendermos o que significa o Reino de Deus, entenderemos porque Jesus nos manda “Buscar em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça” e, veremos que o resto vem por acréscimo.
Em primeiro lugar precisamos entender que o Reino de Deus não é um lugar, mas um projeto. A este projeto, Jesus entregou sua própria vida. Sua vida pública consistiu não somente em anunciar o Reino, mas dar provas dele. Ele proclama o Reino de Deus vivenciando-o. “Jesus andou por toda parte, fazendo o bem...” (Atos 10,38).
Jesus inicia sua missão anunciando a chegada do Reino de Deus (cf. Mt 4,17; Mc 1,15). E a partir daí, ele começa a mostrar como o Reino de Deus deve acontecer. Ele irá contar inúmeras parábolas para ilustrar o acontecimento do Reino. Entre elas, podemos citar algumas, tais como: parábola do semeador (Mt 13,1-9); parábola do trigo e do joio (Mt 13,24-30); parábola do grão de mostarda (Mt 13,31-32); parábola dos trabalhadores da vinha (Mt 20,1-16); parábola dos talentos (Mt 25,14-30), entre tantas outras.
O Reino de Deus como projeto é algo a ser implantado neste mundo. Ele é o lindo sonho de Deus de um mundo melhor. Ele é baseado nos princípios evangélicos de justiça, solidariedade, fraternidade, partilha... E podemos dizer que: “buscar em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça” significa promovermos uma sociedade mais justa, solidária, fraterna e igualitária... E sabemos que as raízes de muitos males desta terra está justamente na falta destes princípios que torna o homem injusto, ganancioso, desonesto, egoísta, acumulador, etc.
Se queremos um mundo melhor, se queremos uma nova sociedade, é preciso primeiro buscar e viver estes princípios, e de fato, onde todos são tratados com respeito e justiça, onde todos são iguais, reina um ambiente de paz e fraternidade. Por isso, deve-se primeiro implantar este projeto de Deus, para que todo o resto nos sejam dados. É consequência lógica.
Daí resulta a questão da qual Jesus inicia o evangelho deste domingo: a que senhor estamos servindo? As nossas próprias ambições egoístas e individualistas, ou ao projeto do Reino de Deus, onde todos estão incluídos? O cristão que serve a seus próprios interesses, não serve a Deus e seu projeto do Reino. O cristão consciente desta tarefa nunca diz aquele ditado: “cada um por si e Deus por todos.”
Porque sabemos sim, que Deus é por todos, mas também nós devemos agir em favor de todos. É o que a primeira leitura (Is 49,14-15) está nos dizendo: apesar de nossas infidelidades, Deus nunca nos abandona, não se esquece de nós, muito menos de suas promessas. Ele permanece fiel e espera de nós a fidelidade ao seu projeto. Como diz Paulo: “Que todo o mundo nos considere como servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (1Cor 4,1). E o que se exige de quem serve e administra é a fidelidade ao projeto de Deus (cf. 1Cor 4,2).
Então, queridos irmãos e irmãs, precisamos deixar nossa passividade diante do projeto de Deus, e assumir com seriedade nosso papel na construção de seu Reino entre nós. Para isto, é preciso a conversão, ou seja, uma mudança de mentalidade e de comportamento, que proponha em sua vivência o Reino de Deus, como proposta alternativa para sociedade, ao invés de continuarmos buscando só nossos próprios interesses, muitas vezes não servindo a Deus, mas, servindo-se de Deus.
 
Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo.
Para sempre seja louvado!
 
Pe. Cristiano Marmelo Pinto
Presbítero e irmão no Cristo Pastor.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A fé celebrada (D. João Lavrador)


"A FÉ CELEBRADA"
 
(D. João Lavrador)

  
«Andai sempre alegres, orai sem cessar e, em todas as circunstâncias, dai graças, pois é a vontade de Deus em Jesus Cristo, a vosso respeito» (1 Tes. 5, 16-18).

 
 
 
A fé professada, a fé celebrada, a fé vivida, testemunhada ou anunciada, fazem parte da mesma realidade da fé pessoal e comunitária que brota da relação de Deus com o ser humano. Por isso, o compêndio da Igreja Católica diz-nos que «sustentado pela graça divina, o homem responde a Deus com a obediência da fé, que consiste em confiar-se completamente a Deus e acolher a Sua verdade, enquanto garantida por Ele que é a própria verdade» (nº 25). E, seguidamente enumera alguns exemplos bíblicos que nos manifestam o que é ser pessoa de fé. Assim, «há muitos testemunhos, mas particularmente dois: Abraão, que, colocado à prova, «teve fé em Deus» (Rm 4,3) e obedeceu sempre ao seu chamamento, tornando-se por isso «pai de todos os crentes» (Rm 4,11.18 ); e a Virgem Maria, que realizou de modo mais perfeito, durante toda a sua vida, a obediência da fé: «Fiat mihi secundum Verbum tuum – Faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38)» (nº 26).

A fé significa, deste modo, «aderir ao próprio Deus, entregando-se a Ele e dando assentimento a todas as verdades por Ele reveladas, porque Deus é a verdade. Significa crer num só Deus em três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo» (nº 27).

Em síntese, podemos afirmar que a fé é «dom gratuito de Deus e acessível a quantos a pedem humildemente, é uma virtude sobrenatural necessária para a salvação. O acto de fé é um acto humano, isto é, um acto da inteligência do homem que, sob decisão da vontade movida por Deus, dá livremente o seu assentimento à verdade divina. Além disso, a fé é certa porque fundada sobre a Palavra de Deus; é operante «por meio da caridade» (Gal 5,6); é em contínuo crescimento, graças, em especial, à escuta da Palavra de Deus e à oração. Ela faz-nos saborear, de antemão, a alegria celeste» (nº 28).

Sendo um acto pessoal a fé é, antes de mais, um acto eclesial. Cada um é chamado a assumir a fé da Igreja. Di-lo o compêndio do Catecismo nos seguintes termos: «A fé é um acto pessoal, enquanto resposta livre do homem a Deus que se revela. Mas é ao mesmo tempo um acto eclesial, que se exprime na confissão: «Nós cremos». De facto, é a Igreja que crê: deste modo, ela, com a graça do Espírito Santo, precede, gera e nutre a fé do indivíduo. Por isso a Igreja é Mãe e Mestra» (nº 29).

Para explicitar este itinerário entre a fé professada, celebrada e vivida ou testemunhada, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, nº 7, refere que «a sagrada Liturgia não esgota toda a acção da Igreja, porque os homens, antes de poderem participar na Liturgia, precisam de ouvir o apelo à fé e à conversão: «Como hão-de invocar aquele em quem não creram? Ou como hão-de crer sem o terem ouvido? Como poderão ouvir se não houver quem pregue? E como se há-de pregar se não houver quem seja enviado?» (Rom. 10, 14-15).

E, prossegue afirmando que «é por este motivo que a Igreja anuncia a mensagem de salvação aos que ainda não têm fé, para que todos os homens venham a conhecer o único Deus verdadeiro e o Seu enviado, Jesus Cristo, e se convertam dos seus caminhos pela penitência. Aos que crêem, tem o dever de pregar constantemente a fé e a penitência, de dispô-los aos sacramentos, de ensiná-los a guardar tudo o que Cristo mandou, de estimulá-los a tudo o que seja obra de caridade, de piedade e apostolado, onde os cristãos possam mostrar que são a luz do mundo, embora não sejam deste mundo, e que glorificam o Pai diante dos homens».

1.1. Da Fé professada à Fé celebrada

A pessoa tem necessidade de passar da relação professada à celebração. Isto acontece na vida do quotidiano. Quando se conhece alguém e se progride nesse mesmo conhecimento até atingir uma relação de amizade, o ser humano sente a necessidade de celebrar os acontecimentos e a vida que sendo pessoais atingem aqueles que lhe estão ligados. A celebração é requerida pela profundidade das relações que ligam os homens e os povos.

Por isso, também a celebração sustenta e é sustentada pela comunidade de pessoas. Cada povo, na sua identidade própria, tem necessidade de congregar aqueles que se identificam com os seus fundamentos através de actos celebrativos. Estes procedimentos partem do individuo para a comunidade e apelam à comunidade para uma maior integração e comunhão entre os seus membros.

No que diz respeito à fé cristã, apesar destas características antropológicas e comunitárias da celebração, esta é sempre iniciativa de Deus que chama e é Ele mesmo que se oferece para congregar o Seu Povo.

Deste modo, «a liturgia, acção sagrada por excelência, constitui o cume para onde tendem todas as acções da Igreja e, simultaneamente, a fonte donde provém toda a sua força vital. Através da liturgia, Cristo continua na sua Igreja, com ela e por meio dela, a obra da nossa redenção» (SC, 219). Ou dito de outro modo, «na liturgia, o Pai enche-nos das suas bênçãos no Filho encarnado, morto e ressuscitado por nós, e derrama o Espírito Santo nos nossos corações. Ao mesmo tempo a Igreja bendiz o Pai, mediante a adoração, o louvor e a acção de graças, e implora o dom do seu Filho e do Espírito Santo» (SC, 221).

Realmente, «na liturgia da Igreja, Cristo significa e realiza principalmente o seu Mistério pascal. Doando o Espírito Santo aos Apóstolos, concedeu-lhes a eles e aos seus sucessores o poder de realizar a obra da salvação por meio do Sacrifício eucarístico e dos sacramentos, nos quais Ele próprio age agora para comunicar a sua graça aos fiéis de todos os tempos e em todo o mundo» (SC, 222).

Através da liturgia da comunidade cristã, «realiza-se a mais estreita cooperação entre o Espírito Santo e a Igreja. O Espírito Santo prepara a Igreja para encontrar o seu Senhor; recorda e manifesta Cristo à fé da assembleia; torna presente e actualiza o Mistério de Cristo; une a Igreja à vida e à missão de Cristo e faz frutificar nela o dom da comunhão» (SC, 223).

É toda a vida de Deus na Sua revelação e na Sua relação com os seus filhos que está presente na acção litúrgica. Os cristãos, membros de uma comunidade celebrante, sentem nas suas vidas as exigências da missão de Jesus Cristo que transportam para o mundo, porque antes saborearam os mistérios da Sua vida que os faz desbordar de alegria.

1.2. A Celebração da Fé no Concilio Vaticano II

«A liturgia é a fonte primeira da vida divina que nos é comunicada, a primeira escola da nossa vida espiritual, primeiro dom que podemos oferecer ao povo cristão que, juntamente connosco, crê e ora, e primeiro convite ao mundo, para que solte a sua língua muda em oração feliz e autêntica, e sinta o inefável força regeneradora, ao cantar connosco os louvores divinos e as esperanças humanas, por Cristo nosso Senhor e no Espírito Santo»(Discurso de Paulo VI, no encerramento da segunda sessão do Concílio Vaticano II, 4 de Dezembro de 1963). Com estas palavras definia Paulo VI a importância da vida litúrgica na acção pastoral da Igreja.

O Concilio Vaticano II, na Constituição sobre a Sagrada Liturgia (SC), no nº 2, apresenta-nos a síntese do que se pretende com a celebração da fé, a relação da comunidade cristã com a pessoa que é chamada a participar na fé da Igreja e a celebrá-la, e o compromisso cristão que daí resulta. Eis o significativo texto: «a liturgia, pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, se opera o fruto da nossa Redenção, contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja, que é simultaneamente humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis, empenhada na acção e dada à contemplação, presente no mundo e, todavia, peregrina, mas de forma que o que nela é humano se deve ordenar e subordinar ao divino, o visível ao invisível, a acção à contemplação, e o presente à cidade futura que buscamos».

Continua o texto expressando a abrangência da acção litúrgica que não se limitando em alimentar os que pertencem à comunidade cristã, capacita-os de verdade para serem testemunhas de Jesus Cristo no mundo. Di-lo com as seguintes palavras: «A liturgia, ao mesmo tempo que edifica os que estão na Igreja em templo santo no Senhor, em morada de Deus no Espírito, até à medida da idade da plenitude de Cristo, robustece de modo admirável as suas energias para pregar Cristo e mostra a Igreja aos que estão fora, como sinal erguido entre as nações, para reunir à sua sombra os filhos de Deus dispersos, até que haja um só rebanho e um só pastor».

A obra de redenção operada por Cristo está presente na Igreja, especialmente nas acções litúrgicas. Está presente no sacrifício da Missa, quer na pessoa do ministro - «O que se oferece agora pelo ministério sacerdotal é o mesmo que se ofereceu na Cruz» -, quer e sobretudo sob as espécies eucarísticas. Está presente com o seu dinamismo nos sacramentos, de modo que, quando alguém baptiza, é o próprio Cristo que baptiza. Está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu: «Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» (Mt. 18,20) (Cfr. SC, 7).

No dizer do Concilio, a liturgia é simultaneamente a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força. Na verdade, o trabalho apostólico ordena-se a conseguir que todos os que se tornaram filhos de Deus pela fé e pelo baptismo se reúnam em assembleia para louvar a Deus no meio da Igreja, participem no sacrifício e comam a Ceia do Senhor (cfr. SC, 10).

Vejamos então as profundissimas palavras com as quais o Concilio nos convida a reconhecer o valor da celebração dos mistérios da fé. Diz ele: «A liturgia, por sua vez, impele os fiéis, saciados pelos “mistérios pascais”, a viverem “unidos no amor”; pede “que sejam fiéis na vida a quanto receberam pela fé”; e pela renovação da aliança do Senhor com os homens na Eucaristia, e aquece os fiéis na caridade urgente de Cristo» (SC, 10). Da liturgia, pois, prossegue, em especial da Eucaristia, «corre sobre nós, como de sua fonte, a graça, e por meio dela conseguem os homens com total eficácia a santificação em Cristo e a glorificação de Deus, a que se ordenam, como a seu fim, todas as outras obras da Igreja» (SC, 10).

Como fonte e cume de toda a acção da Igreja, a liturgia coloca-se no dinamismo que alimenta toda a acção da comunidade cristã e de todo o cristão, não só no seu ser cristão, mas na sua vida de apostolado; e como cume, integra variadíssimas formas de o cristão e a comunidade cristã se relacionarem com Deus, na escuta da Sua Palavra, na oração, na interioridade e na meditação, na partilha fraterna, isto é, toda a vida cristã.

1.3. A Participação dos Fiéis na Celebração dos Mistérios da Fé

A Igreja é Povo de Deus. Esta realidade torna-se visível na celebração. Por isso, toda a comunidade é chamada a viver e a saborear os dons de Deus tornados presentes e oferecidos pela Igreja.

Para assegurar esta eficácia plena é necessário, porém, que os fiéis celebrem a liturgia com rectidão de espírito, unam a sua mente às palavras que pronunciam, cooperem com a graça de Deus, não aconteça de a receberem em vão.

Para tal, recomenda o Concilio, devem os pastores de almas vigiar por que não só se observem, na acção litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente, activa e frutuosamente (Cfr. SC, 11).

E, insiste-se ainda sobre a participação de todos os fiéis, dizendo: «É desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e activa participação nas celebrações litúrgicas que a própria natureza da liturgia exige e que é, por força do baptismo, um direito e um dever do povo cristão, «raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido» (1 Ped. 2,9; cfr. 2, 4-5) ( SC, 14).

Fixemos as palavras do Concilio que sublinham como um direito e um dever de todo o povo cristão a participar na liturgia. Certamente que este repto se dirige aos Pastores para que levem em conta a participação de todos, cada um segundo o seu carisma e ministério. Não estamos perante uma questão secundária ou de escolha arbitrária, pelo contrário, sendo um direito e um dever, deve ser acolhido e exercido no seio da comunidade.

O cristão que celebra a sua fé deve conceder o primado à interiorização, ou seja, à apropriação pessoal daquilo que ele escuta e realiza na liturgia. Somente uma interiorização autêntica garante uma exteriorização capaz de exprimir aquilo que se vive de maneira profunda. Este é o modo plenamente activo de viver a liturgia, desejado pelo Concilio.

Formar na compreensão da liturgia significa permitir aos fiéis entrar em contacto com a própria essência do mistério cristão. É por isso que se afirma: «a liturgia é a primeira e necessária fonte, onde os fiéis hão-de beber o espírito genuinamente cristão» (SC, n. 14).

Mas diz ainda o texto conciliar que compete aos Pastores a exigência de zelar pela liturgia para que ela se realize segundo a dignidade que lhe é própria e apela, como fica dito acima, para uma participação plena, consciente e activa.

Eis um desafio profundo lançado à formação cristã, à experiência de comunhão, ao exercício da corresponsabilidade que devem estar visivelmente presentes na acção litúrgica. Eis a abertura para uma verdadeira comunidade inteiramente ministerial, na qual cada um realiza o serviço a que é chamado segundo a sua vocação e condição cristã.

1.4. Comunidade ministerial

A liturgia é a expressão mais completa do mistério da Igreja, de tal maneira que se pode afirmar que a comunidade cristã, segundo o modo de viver a celebração litúrgica, exprime e manifesta a experiência de Igreja que ela mesma vive.

Deste modo, o compromisso permanente da pastoral litúrgica deve continuar e tender para as suas finalidades mais importantes, ou seja,  a participação activa, a formação espiritual e a co-responsabilidade ministerial.

Assim, trata-se de expressar e construir uma imagem de Igreja, povo de Deus, que celebra o Mistério. Isto é, a imagem de Igreja que se manifesta na comunidade real e quotidiana, que celebra o Domingo, que vive os ritmos do ano litúrgico, que se anima pelas suas próprias festas e tradições particulares e que está atenta aos pobres que vivem no meio dela. Com efeito, o povo de Deus na sua totalidade é povo sacerdotal e, excepto a distinção dos ministérios ordenados e não ordenados, todos os leigos são sujeitos litúrgicos capazes e habilitados para o ministério litúrgico, segundo a sua condição e nas suas várias formas(cfr. Piero Marini, art. «No 40º aniversário da promulgação da Constituição “Sacosanctum Concilium”, Rev. Renouveau liturgique Documents fondateurs, Centre national de pastoral liturgique, éditions du Cerf, Collection Liturgie, n. 14, Paris, 2004).

Na liturgia deve transparecer o que a comunidade cristã é realmente, isto é, toda ela ministerial. Povo de Deus convocado em assembleia para celebrar os mistérios de Deus oferecidos na pessoa de Jesus Cristo e realizados pela acção do Espírito Santo, e que reconhece os dons divinos que lhe são oferecidos em ordem à partilha fraterna e à missão no meio do mundo.

Por isso, na renovação conciliar, exige-se que cada um execute na liturgia o que lhe diz respeito. Eis o enunciado conciliar: «Nas celebrações litúrgicas, limite-se cada um, ministro ou simples fiel, exercendo o seu ofício, a fazer tudo e só o que é de sua competência, segundo a natureza do rito e as leis litúrgicas» (SC, 28).

E, mais ainda, «os que servem ao altar, os leitores, comentadores e elementos do grupo coral desempenham também um autêntico ministério litúrgico. Exerçam, pois, o seu múnus com piedade autêntica e do modo que convêm a tão grande ministério e que o Povo de Deus tem o direito de exigir» (SC, 29).

A eclesiologia de comunhão transparece em todos os textos conciliares. Ela é sem sombra de dúvida o fundamento de toda a concepção de Igreja presente no desenrolar dos trabalhos do concilio e nos textos posteriores.

A visibilidade da comunhão está patente na Assembleia reunida para celebrar as maravilhas de Deus, mas exige a partilha dos diversos serviços no desenrolar da acção litúrgica.

A corresponsabilidade na missão da Igreja a que todos os cristãos são chamados toma lugar já na vida litúrgica da comunidade cristã. Isto exige formação, exercício ministerial, consciência da partilha dos dons pessoais de acordo com a sua vocação.

1.5. A beleza na celebração

No contexto da cultura actual e na intuição conciliar não poderemos ignorar a relevância da beleza no acto litúrgico. É necessário transmitir a imagem de uma Igreja que celebra, anuncia e vive o Mistério de Jesus Cristo na beleza e na dignidade da celebração. Uma beleza que não é apenas formação, formalismo estético, mas que se fundamenta na "simplicidade nobre", capaz de manifestar a relação entre os elementos humano e o divino da liturgia (Cfr. Piero Marini, Ob. Cit.).

Toda a forma de beleza eleva o homem e, por isso, esta torna-se uma linguagem universal para a relação com o transcendente.

A reforma litúrgica do Concilio Vaticano II tem como horizonte a comunhão do crente com Deus que se manifesta de diversos modos e apoiada em variadas fontes, também na beleza da acção litúrgica. Esta deve deixar transparecer a presença de Jesus Cristo no centro da liturgia, o que poderá ser tanto mais evidente, quanto mais se puder sentir nas celebrações a contemplação, a adoração, a gratuidade e a acção de graças.

O salmista cantava «majestade e esplendor O precedem, poder e beleza estão no seu templo» [Sl. 96(95)]. Ou ainda, «a Sua obra é esplendor e majestade» (Sl 111 [110].

Assim, a liturgia continuará, também graças à sua beleza, a ser fonte e ápice, escola e norma de vida cristã.

A presença misteriosa e real de Cristo e o ser protagonista no rito celebrado exige da linguagem litúrgica o esplendor da nobre simplicidade, segundo a célebre afirmação do Concílio Vaticano II (cf. SC, 34). Fala-se no «esplendor da nobre simplicidade», porque esta é a expressão completa utilizada pelos Padres conciliares. Nela é-nos concedido encontrar a relação intrínseca entre beleza, nobreza e simplicidade.

Para nos ajudar a compreender melhor a relação da beleza com o mistério celebrado, vejamos um texto do Papa Bento XVI, na exortação apostólica pós-sinodal sobre a Eucaristia, Sacramentum caritatis, que diz: «A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teológico e litúrgico da beleza. De facto, a liturgia, como aliás a revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade, veritatis splendor (...) Referimo-nos aqui a este atributo da beleza, vista não como mero esteticismo, mas como modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança, fascina e arrebata, fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira vocação: o amor (...) A verdadeira beleza é o amor de Deus que nos foi revelado definitivamente no mistério pascal. A beleza da liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da glória de Deus e, de certa forma, constitui o céu que desce à terra (...) Concluindo, a beleza não é um factor decorativo da acção litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação. Tudo isto nos há-de tornar conscientes da atenção que se deve prestar à acção litúrgica, a fim de que brilhe segundo a sua própria natureza» (n. 35).

A realidade da beleza está muito presente na Igreja que na sua longa história jamais teve receio de prover a celebração litúrgica com as expressões mais elevadas da arte: da arquitectura à escultura, à música e às alfaias sagradas. Isto mesmo nos ensinam os santos que, não obstante a sua pobreza pessoal e a sua caridade heróica, sempre desejaram que ao culto se destinasse quanto há de melhor.

Vejamos ainda o que nos diz Bento XVI num belo texto pronunciado em Paris, no qual realça que «as nossas liturgias da terra, inteiramente dedicadas a celebrar este gesto único da história, nunca conseguirão expressar totalmente a sua densidade infinita. Sem dúvida, a beleza dos ritos jamais será bastante requintada, suficientemente cuidada nem muito elaborada, porque nada é demasiado belo para Deus, que é a Beleza infinita. As nossas liturgias terrenas não poderão ser senão um pálido reflexo da liturgia que se celebra na Jerusalém do céu, ponto de chegada da nossa peregrinação na terra. Possam, porém, as nossas celebrações aproximar-se o mais possível dela, permitindo-nos antegozá-la!» (Homilia durante a celebração das Vésperas na Catedral de Notre Dame, Paris, 12 de Setembro de 2008).

Porque na liturgia age o Cristo total e é igualmente obra da Igreja, o que é essencial é que no final seja superada a diferença entre o agir de Cristo e o nosso próprio agir, que haja uma progressiva harmonização entre a sua vida e a nossa vida, entre o seu sacrifício de adoração e o nosso, de tal maneira que existe um único agir, seu e ao mesmo tempo nosso. Aquilo que são Paulo afirma não pode deixar de ser a indicação do que é essencial alcançar, em virtude da celebração litúrgica, ao dizer: «Fui crucificado com Cristo; já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 19-20).

1.6. A Celebração da Fé no contexto do processo evangelizador

Como diz o Santo Padre  Bento XVI, Porta Fidei, o Ano da Fé é convite para uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo. No mistério da sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos pecados (cf. Act 5, 31). Para o apóstolo Paulo, este amor introduz o homem numa vida nova: «Pelo Baptismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova» (Rm 6, 4).

Por isso, «em virtude da fé, esta vida nova plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afectos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A “fé, que actua pelo amor” (Gl 5, 6), torna-se um novo critério de entendimento e de acção, que muda toda a vida do homem» (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17) (nº 6).

E, mais à frente, continua afirmando que com o seu amor, Jesus Cristo atrai a Si os homens de cada geração: em todo o tempo, Ele convoca a Igreja confiando-lhe o anúncio do Evangelho, com um mandato que é sempre novo. Por isso, também hoje é necessário um empenho eclesial mais convicto a favor duma nova evangelização, para descobrir de novo a alegria de crer e reencontrar o entusiasmo de comunicar a fé.

Realmente, na descoberta diária do seu amor, ganha força e vigor o compromisso missionário dos crentes, que jamais pode faltar. Com efeito, a fé cresce quando é vivida como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria. A fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite oferecer um testemunho que é capaz de gerar: de facto, abre o coração e a mente dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a aderir à sua Palavra a fim de se tornarem seus discípulos (Cfr. nº 7).

Conclui-se, então, sublinhando como que em síntese que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é «a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força».

Simultaneamente, refere ainda o texto, espera-se que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada e reflectir sobre o próprio acto com que se crê, é um compromisso que cada crente deve assumir, sobretudo neste Ano (Cfr. nº 9).

Este escrito realça o objectivo unificador de todas as acções da Igreja em ordem à evangelização. Neste sentido se afirma a necessidade de atender à confissão da fé, à sua celebração e ao testemunho que dela emerge para tocar o mundo onde se vive.

Mas diremos ainda mais, cada uma destas acções da comunidade e de cada cristão estão interligadas entre si. A verdadeira profissão de fé exige a celebração autêntica e vice-versa. O mesmos e diga do testemunho que para ser verdadeiramente cristão não pode alhear-se da profissão da fé da celebração dos mistérios da fé.

A vida da fé é uma unidade, embora se reconheça nela um conjunto de passos essenciais para uma clareza de adesão e de encontro com Cristo.

Neste itinerário muito se aproveita da pedagogia da iniciação cristã pela qual a pessoa é convidada a transformar a sua vida à luz do mistério pascal de Cristo e a entregar-se inteiramente a Ele como Sua discípula.

No que diz respeito à nova evangelização, na homilia da Eucaristia de encerramento do recente sínodo sobre esta mesma temática,  o Santo Padre distinguia entre a pastoral ordinária, a missão ad gentes e a nova evangelização direccionada sobretudo para as pessoas baptizadas que, porém, não vivem as exigências do Baptismo.

Quanto à primeira sublinha a importância de celebrar os sacramentos da iniciação cristã antecedidos de uma catequese adequada e realça a importância do sacramento da penitência. Refere que é através deste itinerário sacramental que passa o chamamento universal do Senhor à santidade. Só os santos têm uma linguagem testemunhal que se torna compreensível a todos.

No que diz respeito à segunda, isto é a missão ad gentes, esta destina-se àqueles que ainda não conhecem a Cristo. Para estes exige-se o primeiro anuncio para o qual são imprescindíveis os leigos de modo que se tornem protagonistas de um novo ardor missionário. Destaca-se o papel da globalização nos novos cenários para um primeiro anuncio mesmo em países tradicionalmente cristãos. Se por um lado, refere o Papa, todos os homens têm o direito de conhecer Jesus Cristo e o seu Evangelho; do mesmo modo, corresponde o dever dos cristãos – de todos os cristãos: sacerdotes, religiosos e leigos – de anunciarem a Boa Nova.

Em terceiro lugar, focam-se os países secularizados. Estes necessitam de uma atenção especial para que novamente se encontrem com Jesus Cristo, redescubram a alegria da fé e voltem a integrar a comunidade cristã, onde celebrem e partilhem a mesma fé.

A nova evangelização diz respeito a toda a vida da Igreja e deve atingir todos os homens e mulheres em qualquer situação em que se encontrem.

Para além dos métodos tradicionais de pastoral, sempre válidos, realça ainda o Santo Padre, que a Igreja procura lançar mão de novos métodos, valendo-se também de novas linguagens, apropriadas às diversas culturas do mundo, para implementar um diálogo de simpatia e amizade que se fundamenta em Deus que é Amor. Em várias partes do mundo, a Igreja já encetou este caminho de criatividade pastoral para se aproximar das pessoas afastadas ou à procura do sentido da vida, da felicidade e, em última instância, de Deus.

Quando nos referirmos à evangelização deparamo-nos com a riqueza da Evangelii Nuntiandi que ao assunto que nos ocupa, a importância da celebração na evangelização, dedica sobretudo dois número.

O primeiro (nº 43) realça a relevância da liturgia da Palavra, nomeadamente a homilia que no dizer deste documento pode ser muito proveitosa para os fiéis que celebram o mistério pascal através da Eucaristia, desde que «seja simples, clara, directa, adaptada, profundamente aderente ao ensinamento evangélico e fiel ao Magistério da Igreja, animada por um ardor apostólico equilibrado que lhe advém do seu carácter próprio, cheia de esperança, nutriente para a fé e geradora de paz e de unidade».

O segundo (nº 47) sublinha o papel dos sacramentos na evangelização. Esta não se esgota no anúncio e na pregação. Como deve atingir a vida, natural e sobrenatural, exprime toda a sua riqueza na relação intima entre a Palavra Revelada e os Sacramentos. Estes verdadeiramente bem preparados e celebrados são autenticamente sacramentos da fé.

Neste percurso evangelizador, exige-se o anuncio kerigmático; a catequese propriamente dita que conduz à conversão e á adesão a Jesus Cristo, configura-nos a Jesus Cristo e torna-nos seus discípulos; a celebração dos mistérios da nossa fé; a construção da comunidade pela partilha fraterna e pelo testemunho cristão no meio do mundo em atitude de serviço à pessoa e à sociedade.

Conclusão

A terminar, diria que a formação integral da pessoa cristã exige a unidade entre as três áreas: anuncio, celebração e partilha fraterna. Se à partida o anúncio parece prioritário e é-o de verdade, porque sem o anúncio não se abre a porta da fé, também é verdade que numa celebração preparada e realizada adequadamente, bem vivida, se introduz a pessoa no ambiente da fé e da celebração, se purifica e se eleva a fé. Daí o cuidado que deve merecer a celebração litúrgica, sobretudo a Eucaristia, para que seja verdadeiramente a celebração da fé e que conduz à fé.

Num tempo de neo-paganismo, com muitos modelos religiosos fabricados pelo ser humano, exige-se uma vivência litúrgica que seja a celebração de Deus tal como se revelou em Jesus Cristo e aberta à acção do Espírito Santo. Daí a necessidade de saber centrar bem a liturgia cristã, no que toca à celebração da Eucaristia, dos demais sacramentos, à oração e à celebração da Palavra de Deus e, sobretudo, a consciência da realidade Trinitária na celebração.

Muitos dos nossos contemporâneos são atraídos ao transcendente pela via da beleza. Dizia-o o Santo Padre na bênção da Catedral da Sagrada Família de Barcelona, referindo-se à expressão de beleza que Antoni Gaudi espelhou naquele templo, referindo que «colaborou genialmente para a edificação da consciência humana ancorada no mundo, aberta a Deus, iluminada e santificada por Cristo. E realizou algo que é uma das tarefas mais importantes hoje: superar a ruptura entre consciência humana e consciência cristã, entre existência neste mundo temporal e abertura a uma vida eterna, entre beleza das coisas e Deus como Beleza». Fê-lo, não com palavras mas com pedras, traços, planos e cumes. «E a beleza é a grande necessidade do homem; constitui a raiz da qual brota o tronco da nossa paz e os frutos da nossa esperança. A beleza é também reveladora de Deus porque, como Ele, a obra bela é pura gratuidade, convida à liberdade e extirpa do egoísmo».

A celebração litúrgica deve primar pela harmonia e pela elevação espiritual de tal modo que quem nela participe se reconheça a experienciar o invisível, ou seja a beleza de Deus.

Por último diria que é importante que reconheçamos que a celebração da fé se integra no processo evangelizador. A Igreja tem o seu método para evangelizar ao qual se deve obedecer. Partindo do primeiro anúncio, passando pela catequese catecumenal ou de iniciação cristã, chegando á celebração dos mistérios da fé, culminando na Eucaristia, na opção cristã de vida, na partilha fraterna e no testemunho cristão no mundo.

 

 

+ João Lavrador, Bispo Auxiliar do Porto