sábado, 1 de março de 2014

 

Buscar o Reino de Deus e o resto vem por acréscimo

Homilia do 8º Domingo do Tempo Comum - Ano A
 
Isaías 49,14-15; Salmo 61(62); 1Coríntios 4,1-5; Mateus 6,24-34
 
Jesus termina o evangelho deste domingo com uma afirmação: “Para cada dia bastam seus próprios problemas.” (Mt 6,34). Esta é uma afirmação que pode nos guiar em meio a tantas preocupações e problemas, que vivemos no nosso dia-a-dia. Certamente viver de problemas passados não nos ajuda, muito menos, antecipar problemas que poderão vir. Isto não significa que não devemos nos preocupar com o futuro, ou ignorar o nosso passado, mas, viver a vida passo por passo. Esta afirmação de Jesus pode e deve ser um slogan para a nossa caminhada: se preocupar com os problemas de cada dia.
Porém, muitas vezes nos encontramos divididos em meio a tantos problemas. Daí vem à questão chave da liturgia de hoje: o que é essencial em nossa vida. Se perdermos tempo com o que não é essencial, gastaremos nossas energias inutilmente, e passaremos nossa vida correndo atrás do que não nos completa como pessoa humana. É neste sentido que Jesus inicia o evangelho de hoje dizendo aos seus discípulos: “Ninguém pode servir a dois senhores: pois, ou odiará um e amará o outro, ou será fiel a um e desprezará o outro” (Mt 6,24). No fundo está dizendo que nosso coração não poderá estar dividido, senão perderemos tempo correndo atrás de coisas supérfluas para a nossa salvação. Mas, ele também dá a resposta: “Pelo contrário, buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas as coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6,33).
Se compreendermos o que significa o Reino de Deus, entenderemos porque Jesus nos manda “Buscar em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça” e, veremos que o resto vem por acréscimo.
Em primeiro lugar precisamos entender que o Reino de Deus não é um lugar, mas um projeto. A este projeto, Jesus entregou sua própria vida. Sua vida pública consistiu não somente em anunciar o Reino, mas dar provas dele. Ele proclama o Reino de Deus vivenciando-o. “Jesus andou por toda parte, fazendo o bem...” (Atos 10,38).
Jesus inicia sua missão anunciando a chegada do Reino de Deus (cf. Mt 4,17; Mc 1,15). E a partir daí, ele começa a mostrar como o Reino de Deus deve acontecer. Ele irá contar inúmeras parábolas para ilustrar o acontecimento do Reino. Entre elas, podemos citar algumas, tais como: parábola do semeador (Mt 13,1-9); parábola do trigo e do joio (Mt 13,24-30); parábola do grão de mostarda (Mt 13,31-32); parábola dos trabalhadores da vinha (Mt 20,1-16); parábola dos talentos (Mt 25,14-30), entre tantas outras.
O Reino de Deus como projeto é algo a ser implantado neste mundo. Ele é o lindo sonho de Deus de um mundo melhor. Ele é baseado nos princípios evangélicos de justiça, solidariedade, fraternidade, partilha... E podemos dizer que: “buscar em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça” significa promovermos uma sociedade mais justa, solidária, fraterna e igualitária... E sabemos que as raízes de muitos males desta terra está justamente na falta destes princípios que torna o homem injusto, ganancioso, desonesto, egoísta, acumulador, etc.
Se queremos um mundo melhor, se queremos uma nova sociedade, é preciso primeiro buscar e viver estes princípios, e de fato, onde todos são tratados com respeito e justiça, onde todos são iguais, reina um ambiente de paz e fraternidade. Por isso, deve-se primeiro implantar este projeto de Deus, para que todo o resto nos sejam dados. É consequência lógica.
Daí resulta a questão da qual Jesus inicia o evangelho deste domingo: a que senhor estamos servindo? As nossas próprias ambições egoístas e individualistas, ou ao projeto do Reino de Deus, onde todos estão incluídos? O cristão que serve a seus próprios interesses, não serve a Deus e seu projeto do Reino. O cristão consciente desta tarefa nunca diz aquele ditado: “cada um por si e Deus por todos.”
Porque sabemos sim, que Deus é por todos, mas também nós devemos agir em favor de todos. É o que a primeira leitura (Is 49,14-15) está nos dizendo: apesar de nossas infidelidades, Deus nunca nos abandona, não se esquece de nós, muito menos de suas promessas. Ele permanece fiel e espera de nós a fidelidade ao seu projeto. Como diz Paulo: “Que todo o mundo nos considere como servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (1Cor 4,1). E o que se exige de quem serve e administra é a fidelidade ao projeto de Deus (cf. 1Cor 4,2).
Então, queridos irmãos e irmãs, precisamos deixar nossa passividade diante do projeto de Deus, e assumir com seriedade nosso papel na construção de seu Reino entre nós. Para isto, é preciso a conversão, ou seja, uma mudança de mentalidade e de comportamento, que proponha em sua vivência o Reino de Deus, como proposta alternativa para sociedade, ao invés de continuarmos buscando só nossos próprios interesses, muitas vezes não servindo a Deus, mas, servindo-se de Deus.
 
Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo.
Para sempre seja louvado!
 
Pe. Cristiano Marmelo Pinto
Presbítero e irmão no Cristo Pastor.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A fé celebrada (D. João Lavrador)


"A FÉ CELEBRADA"
 
(D. João Lavrador)

  
«Andai sempre alegres, orai sem cessar e, em todas as circunstâncias, dai graças, pois é a vontade de Deus em Jesus Cristo, a vosso respeito» (1 Tes. 5, 16-18).

 
 
 
A fé professada, a fé celebrada, a fé vivida, testemunhada ou anunciada, fazem parte da mesma realidade da fé pessoal e comunitária que brota da relação de Deus com o ser humano. Por isso, o compêndio da Igreja Católica diz-nos que «sustentado pela graça divina, o homem responde a Deus com a obediência da fé, que consiste em confiar-se completamente a Deus e acolher a Sua verdade, enquanto garantida por Ele que é a própria verdade» (nº 25). E, seguidamente enumera alguns exemplos bíblicos que nos manifestam o que é ser pessoa de fé. Assim, «há muitos testemunhos, mas particularmente dois: Abraão, que, colocado à prova, «teve fé em Deus» (Rm 4,3) e obedeceu sempre ao seu chamamento, tornando-se por isso «pai de todos os crentes» (Rm 4,11.18 ); e a Virgem Maria, que realizou de modo mais perfeito, durante toda a sua vida, a obediência da fé: «Fiat mihi secundum Verbum tuum – Faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38)» (nº 26).

A fé significa, deste modo, «aderir ao próprio Deus, entregando-se a Ele e dando assentimento a todas as verdades por Ele reveladas, porque Deus é a verdade. Significa crer num só Deus em três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo» (nº 27).

Em síntese, podemos afirmar que a fé é «dom gratuito de Deus e acessível a quantos a pedem humildemente, é uma virtude sobrenatural necessária para a salvação. O acto de fé é um acto humano, isto é, um acto da inteligência do homem que, sob decisão da vontade movida por Deus, dá livremente o seu assentimento à verdade divina. Além disso, a fé é certa porque fundada sobre a Palavra de Deus; é operante «por meio da caridade» (Gal 5,6); é em contínuo crescimento, graças, em especial, à escuta da Palavra de Deus e à oração. Ela faz-nos saborear, de antemão, a alegria celeste» (nº 28).

Sendo um acto pessoal a fé é, antes de mais, um acto eclesial. Cada um é chamado a assumir a fé da Igreja. Di-lo o compêndio do Catecismo nos seguintes termos: «A fé é um acto pessoal, enquanto resposta livre do homem a Deus que se revela. Mas é ao mesmo tempo um acto eclesial, que se exprime na confissão: «Nós cremos». De facto, é a Igreja que crê: deste modo, ela, com a graça do Espírito Santo, precede, gera e nutre a fé do indivíduo. Por isso a Igreja é Mãe e Mestra» (nº 29).

Para explicitar este itinerário entre a fé professada, celebrada e vivida ou testemunhada, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, nº 7, refere que «a sagrada Liturgia não esgota toda a acção da Igreja, porque os homens, antes de poderem participar na Liturgia, precisam de ouvir o apelo à fé e à conversão: «Como hão-de invocar aquele em quem não creram? Ou como hão-de crer sem o terem ouvido? Como poderão ouvir se não houver quem pregue? E como se há-de pregar se não houver quem seja enviado?» (Rom. 10, 14-15).

E, prossegue afirmando que «é por este motivo que a Igreja anuncia a mensagem de salvação aos que ainda não têm fé, para que todos os homens venham a conhecer o único Deus verdadeiro e o Seu enviado, Jesus Cristo, e se convertam dos seus caminhos pela penitência. Aos que crêem, tem o dever de pregar constantemente a fé e a penitência, de dispô-los aos sacramentos, de ensiná-los a guardar tudo o que Cristo mandou, de estimulá-los a tudo o que seja obra de caridade, de piedade e apostolado, onde os cristãos possam mostrar que são a luz do mundo, embora não sejam deste mundo, e que glorificam o Pai diante dos homens».

1.1. Da Fé professada à Fé celebrada

A pessoa tem necessidade de passar da relação professada à celebração. Isto acontece na vida do quotidiano. Quando se conhece alguém e se progride nesse mesmo conhecimento até atingir uma relação de amizade, o ser humano sente a necessidade de celebrar os acontecimentos e a vida que sendo pessoais atingem aqueles que lhe estão ligados. A celebração é requerida pela profundidade das relações que ligam os homens e os povos.

Por isso, também a celebração sustenta e é sustentada pela comunidade de pessoas. Cada povo, na sua identidade própria, tem necessidade de congregar aqueles que se identificam com os seus fundamentos através de actos celebrativos. Estes procedimentos partem do individuo para a comunidade e apelam à comunidade para uma maior integração e comunhão entre os seus membros.

No que diz respeito à fé cristã, apesar destas características antropológicas e comunitárias da celebração, esta é sempre iniciativa de Deus que chama e é Ele mesmo que se oferece para congregar o Seu Povo.

Deste modo, «a liturgia, acção sagrada por excelência, constitui o cume para onde tendem todas as acções da Igreja e, simultaneamente, a fonte donde provém toda a sua força vital. Através da liturgia, Cristo continua na sua Igreja, com ela e por meio dela, a obra da nossa redenção» (SC, 219). Ou dito de outro modo, «na liturgia, o Pai enche-nos das suas bênçãos no Filho encarnado, morto e ressuscitado por nós, e derrama o Espírito Santo nos nossos corações. Ao mesmo tempo a Igreja bendiz o Pai, mediante a adoração, o louvor e a acção de graças, e implora o dom do seu Filho e do Espírito Santo» (SC, 221).

Realmente, «na liturgia da Igreja, Cristo significa e realiza principalmente o seu Mistério pascal. Doando o Espírito Santo aos Apóstolos, concedeu-lhes a eles e aos seus sucessores o poder de realizar a obra da salvação por meio do Sacrifício eucarístico e dos sacramentos, nos quais Ele próprio age agora para comunicar a sua graça aos fiéis de todos os tempos e em todo o mundo» (SC, 222).

Através da liturgia da comunidade cristã, «realiza-se a mais estreita cooperação entre o Espírito Santo e a Igreja. O Espírito Santo prepara a Igreja para encontrar o seu Senhor; recorda e manifesta Cristo à fé da assembleia; torna presente e actualiza o Mistério de Cristo; une a Igreja à vida e à missão de Cristo e faz frutificar nela o dom da comunhão» (SC, 223).

É toda a vida de Deus na Sua revelação e na Sua relação com os seus filhos que está presente na acção litúrgica. Os cristãos, membros de uma comunidade celebrante, sentem nas suas vidas as exigências da missão de Jesus Cristo que transportam para o mundo, porque antes saborearam os mistérios da Sua vida que os faz desbordar de alegria.

1.2. A Celebração da Fé no Concilio Vaticano II

«A liturgia é a fonte primeira da vida divina que nos é comunicada, a primeira escola da nossa vida espiritual, primeiro dom que podemos oferecer ao povo cristão que, juntamente connosco, crê e ora, e primeiro convite ao mundo, para que solte a sua língua muda em oração feliz e autêntica, e sinta o inefável força regeneradora, ao cantar connosco os louvores divinos e as esperanças humanas, por Cristo nosso Senhor e no Espírito Santo»(Discurso de Paulo VI, no encerramento da segunda sessão do Concílio Vaticano II, 4 de Dezembro de 1963). Com estas palavras definia Paulo VI a importância da vida litúrgica na acção pastoral da Igreja.

O Concilio Vaticano II, na Constituição sobre a Sagrada Liturgia (SC), no nº 2, apresenta-nos a síntese do que se pretende com a celebração da fé, a relação da comunidade cristã com a pessoa que é chamada a participar na fé da Igreja e a celebrá-la, e o compromisso cristão que daí resulta. Eis o significativo texto: «a liturgia, pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, se opera o fruto da nossa Redenção, contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja, que é simultaneamente humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis, empenhada na acção e dada à contemplação, presente no mundo e, todavia, peregrina, mas de forma que o que nela é humano se deve ordenar e subordinar ao divino, o visível ao invisível, a acção à contemplação, e o presente à cidade futura que buscamos».

Continua o texto expressando a abrangência da acção litúrgica que não se limitando em alimentar os que pertencem à comunidade cristã, capacita-os de verdade para serem testemunhas de Jesus Cristo no mundo. Di-lo com as seguintes palavras: «A liturgia, ao mesmo tempo que edifica os que estão na Igreja em templo santo no Senhor, em morada de Deus no Espírito, até à medida da idade da plenitude de Cristo, robustece de modo admirável as suas energias para pregar Cristo e mostra a Igreja aos que estão fora, como sinal erguido entre as nações, para reunir à sua sombra os filhos de Deus dispersos, até que haja um só rebanho e um só pastor».

A obra de redenção operada por Cristo está presente na Igreja, especialmente nas acções litúrgicas. Está presente no sacrifício da Missa, quer na pessoa do ministro - «O que se oferece agora pelo ministério sacerdotal é o mesmo que se ofereceu na Cruz» -, quer e sobretudo sob as espécies eucarísticas. Está presente com o seu dinamismo nos sacramentos, de modo que, quando alguém baptiza, é o próprio Cristo que baptiza. Está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu: «Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» (Mt. 18,20) (Cfr. SC, 7).

No dizer do Concilio, a liturgia é simultaneamente a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força. Na verdade, o trabalho apostólico ordena-se a conseguir que todos os que se tornaram filhos de Deus pela fé e pelo baptismo se reúnam em assembleia para louvar a Deus no meio da Igreja, participem no sacrifício e comam a Ceia do Senhor (cfr. SC, 10).

Vejamos então as profundissimas palavras com as quais o Concilio nos convida a reconhecer o valor da celebração dos mistérios da fé. Diz ele: «A liturgia, por sua vez, impele os fiéis, saciados pelos “mistérios pascais”, a viverem “unidos no amor”; pede “que sejam fiéis na vida a quanto receberam pela fé”; e pela renovação da aliança do Senhor com os homens na Eucaristia, e aquece os fiéis na caridade urgente de Cristo» (SC, 10). Da liturgia, pois, prossegue, em especial da Eucaristia, «corre sobre nós, como de sua fonte, a graça, e por meio dela conseguem os homens com total eficácia a santificação em Cristo e a glorificação de Deus, a que se ordenam, como a seu fim, todas as outras obras da Igreja» (SC, 10).

Como fonte e cume de toda a acção da Igreja, a liturgia coloca-se no dinamismo que alimenta toda a acção da comunidade cristã e de todo o cristão, não só no seu ser cristão, mas na sua vida de apostolado; e como cume, integra variadíssimas formas de o cristão e a comunidade cristã se relacionarem com Deus, na escuta da Sua Palavra, na oração, na interioridade e na meditação, na partilha fraterna, isto é, toda a vida cristã.

1.3. A Participação dos Fiéis na Celebração dos Mistérios da Fé

A Igreja é Povo de Deus. Esta realidade torna-se visível na celebração. Por isso, toda a comunidade é chamada a viver e a saborear os dons de Deus tornados presentes e oferecidos pela Igreja.

Para assegurar esta eficácia plena é necessário, porém, que os fiéis celebrem a liturgia com rectidão de espírito, unam a sua mente às palavras que pronunciam, cooperem com a graça de Deus, não aconteça de a receberem em vão.

Para tal, recomenda o Concilio, devem os pastores de almas vigiar por que não só se observem, na acção litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente, activa e frutuosamente (Cfr. SC, 11).

E, insiste-se ainda sobre a participação de todos os fiéis, dizendo: «É desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e activa participação nas celebrações litúrgicas que a própria natureza da liturgia exige e que é, por força do baptismo, um direito e um dever do povo cristão, «raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido» (1 Ped. 2,9; cfr. 2, 4-5) ( SC, 14).

Fixemos as palavras do Concilio que sublinham como um direito e um dever de todo o povo cristão a participar na liturgia. Certamente que este repto se dirige aos Pastores para que levem em conta a participação de todos, cada um segundo o seu carisma e ministério. Não estamos perante uma questão secundária ou de escolha arbitrária, pelo contrário, sendo um direito e um dever, deve ser acolhido e exercido no seio da comunidade.

O cristão que celebra a sua fé deve conceder o primado à interiorização, ou seja, à apropriação pessoal daquilo que ele escuta e realiza na liturgia. Somente uma interiorização autêntica garante uma exteriorização capaz de exprimir aquilo que se vive de maneira profunda. Este é o modo plenamente activo de viver a liturgia, desejado pelo Concilio.

Formar na compreensão da liturgia significa permitir aos fiéis entrar em contacto com a própria essência do mistério cristão. É por isso que se afirma: «a liturgia é a primeira e necessária fonte, onde os fiéis hão-de beber o espírito genuinamente cristão» (SC, n. 14).

Mas diz ainda o texto conciliar que compete aos Pastores a exigência de zelar pela liturgia para que ela se realize segundo a dignidade que lhe é própria e apela, como fica dito acima, para uma participação plena, consciente e activa.

Eis um desafio profundo lançado à formação cristã, à experiência de comunhão, ao exercício da corresponsabilidade que devem estar visivelmente presentes na acção litúrgica. Eis a abertura para uma verdadeira comunidade inteiramente ministerial, na qual cada um realiza o serviço a que é chamado segundo a sua vocação e condição cristã.

1.4. Comunidade ministerial

A liturgia é a expressão mais completa do mistério da Igreja, de tal maneira que se pode afirmar que a comunidade cristã, segundo o modo de viver a celebração litúrgica, exprime e manifesta a experiência de Igreja que ela mesma vive.

Deste modo, o compromisso permanente da pastoral litúrgica deve continuar e tender para as suas finalidades mais importantes, ou seja,  a participação activa, a formação espiritual e a co-responsabilidade ministerial.

Assim, trata-se de expressar e construir uma imagem de Igreja, povo de Deus, que celebra o Mistério. Isto é, a imagem de Igreja que se manifesta na comunidade real e quotidiana, que celebra o Domingo, que vive os ritmos do ano litúrgico, que se anima pelas suas próprias festas e tradições particulares e que está atenta aos pobres que vivem no meio dela. Com efeito, o povo de Deus na sua totalidade é povo sacerdotal e, excepto a distinção dos ministérios ordenados e não ordenados, todos os leigos são sujeitos litúrgicos capazes e habilitados para o ministério litúrgico, segundo a sua condição e nas suas várias formas(cfr. Piero Marini, art. «No 40º aniversário da promulgação da Constituição “Sacosanctum Concilium”, Rev. Renouveau liturgique Documents fondateurs, Centre national de pastoral liturgique, éditions du Cerf, Collection Liturgie, n. 14, Paris, 2004).

Na liturgia deve transparecer o que a comunidade cristã é realmente, isto é, toda ela ministerial. Povo de Deus convocado em assembleia para celebrar os mistérios de Deus oferecidos na pessoa de Jesus Cristo e realizados pela acção do Espírito Santo, e que reconhece os dons divinos que lhe são oferecidos em ordem à partilha fraterna e à missão no meio do mundo.

Por isso, na renovação conciliar, exige-se que cada um execute na liturgia o que lhe diz respeito. Eis o enunciado conciliar: «Nas celebrações litúrgicas, limite-se cada um, ministro ou simples fiel, exercendo o seu ofício, a fazer tudo e só o que é de sua competência, segundo a natureza do rito e as leis litúrgicas» (SC, 28).

E, mais ainda, «os que servem ao altar, os leitores, comentadores e elementos do grupo coral desempenham também um autêntico ministério litúrgico. Exerçam, pois, o seu múnus com piedade autêntica e do modo que convêm a tão grande ministério e que o Povo de Deus tem o direito de exigir» (SC, 29).

A eclesiologia de comunhão transparece em todos os textos conciliares. Ela é sem sombra de dúvida o fundamento de toda a concepção de Igreja presente no desenrolar dos trabalhos do concilio e nos textos posteriores.

A visibilidade da comunhão está patente na Assembleia reunida para celebrar as maravilhas de Deus, mas exige a partilha dos diversos serviços no desenrolar da acção litúrgica.

A corresponsabilidade na missão da Igreja a que todos os cristãos são chamados toma lugar já na vida litúrgica da comunidade cristã. Isto exige formação, exercício ministerial, consciência da partilha dos dons pessoais de acordo com a sua vocação.

1.5. A beleza na celebração

No contexto da cultura actual e na intuição conciliar não poderemos ignorar a relevância da beleza no acto litúrgico. É necessário transmitir a imagem de uma Igreja que celebra, anuncia e vive o Mistério de Jesus Cristo na beleza e na dignidade da celebração. Uma beleza que não é apenas formação, formalismo estético, mas que se fundamenta na "simplicidade nobre", capaz de manifestar a relação entre os elementos humano e o divino da liturgia (Cfr. Piero Marini, Ob. Cit.).

Toda a forma de beleza eleva o homem e, por isso, esta torna-se uma linguagem universal para a relação com o transcendente.

A reforma litúrgica do Concilio Vaticano II tem como horizonte a comunhão do crente com Deus que se manifesta de diversos modos e apoiada em variadas fontes, também na beleza da acção litúrgica. Esta deve deixar transparecer a presença de Jesus Cristo no centro da liturgia, o que poderá ser tanto mais evidente, quanto mais se puder sentir nas celebrações a contemplação, a adoração, a gratuidade e a acção de graças.

O salmista cantava «majestade e esplendor O precedem, poder e beleza estão no seu templo» [Sl. 96(95)]. Ou ainda, «a Sua obra é esplendor e majestade» (Sl 111 [110].

Assim, a liturgia continuará, também graças à sua beleza, a ser fonte e ápice, escola e norma de vida cristã.

A presença misteriosa e real de Cristo e o ser protagonista no rito celebrado exige da linguagem litúrgica o esplendor da nobre simplicidade, segundo a célebre afirmação do Concílio Vaticano II (cf. SC, 34). Fala-se no «esplendor da nobre simplicidade», porque esta é a expressão completa utilizada pelos Padres conciliares. Nela é-nos concedido encontrar a relação intrínseca entre beleza, nobreza e simplicidade.

Para nos ajudar a compreender melhor a relação da beleza com o mistério celebrado, vejamos um texto do Papa Bento XVI, na exortação apostólica pós-sinodal sobre a Eucaristia, Sacramentum caritatis, que diz: «A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teológico e litúrgico da beleza. De facto, a liturgia, como aliás a revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade, veritatis splendor (...) Referimo-nos aqui a este atributo da beleza, vista não como mero esteticismo, mas como modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança, fascina e arrebata, fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira vocação: o amor (...) A verdadeira beleza é o amor de Deus que nos foi revelado definitivamente no mistério pascal. A beleza da liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da glória de Deus e, de certa forma, constitui o céu que desce à terra (...) Concluindo, a beleza não é um factor decorativo da acção litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação. Tudo isto nos há-de tornar conscientes da atenção que se deve prestar à acção litúrgica, a fim de que brilhe segundo a sua própria natureza» (n. 35).

A realidade da beleza está muito presente na Igreja que na sua longa história jamais teve receio de prover a celebração litúrgica com as expressões mais elevadas da arte: da arquitectura à escultura, à música e às alfaias sagradas. Isto mesmo nos ensinam os santos que, não obstante a sua pobreza pessoal e a sua caridade heróica, sempre desejaram que ao culto se destinasse quanto há de melhor.

Vejamos ainda o que nos diz Bento XVI num belo texto pronunciado em Paris, no qual realça que «as nossas liturgias da terra, inteiramente dedicadas a celebrar este gesto único da história, nunca conseguirão expressar totalmente a sua densidade infinita. Sem dúvida, a beleza dos ritos jamais será bastante requintada, suficientemente cuidada nem muito elaborada, porque nada é demasiado belo para Deus, que é a Beleza infinita. As nossas liturgias terrenas não poderão ser senão um pálido reflexo da liturgia que se celebra na Jerusalém do céu, ponto de chegada da nossa peregrinação na terra. Possam, porém, as nossas celebrações aproximar-se o mais possível dela, permitindo-nos antegozá-la!» (Homilia durante a celebração das Vésperas na Catedral de Notre Dame, Paris, 12 de Setembro de 2008).

Porque na liturgia age o Cristo total e é igualmente obra da Igreja, o que é essencial é que no final seja superada a diferença entre o agir de Cristo e o nosso próprio agir, que haja uma progressiva harmonização entre a sua vida e a nossa vida, entre o seu sacrifício de adoração e o nosso, de tal maneira que existe um único agir, seu e ao mesmo tempo nosso. Aquilo que são Paulo afirma não pode deixar de ser a indicação do que é essencial alcançar, em virtude da celebração litúrgica, ao dizer: «Fui crucificado com Cristo; já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 19-20).

1.6. A Celebração da Fé no contexto do processo evangelizador

Como diz o Santo Padre  Bento XVI, Porta Fidei, o Ano da Fé é convite para uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo. No mistério da sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos pecados (cf. Act 5, 31). Para o apóstolo Paulo, este amor introduz o homem numa vida nova: «Pelo Baptismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova» (Rm 6, 4).

Por isso, «em virtude da fé, esta vida nova plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afectos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A “fé, que actua pelo amor” (Gl 5, 6), torna-se um novo critério de entendimento e de acção, que muda toda a vida do homem» (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17) (nº 6).

E, mais à frente, continua afirmando que com o seu amor, Jesus Cristo atrai a Si os homens de cada geração: em todo o tempo, Ele convoca a Igreja confiando-lhe o anúncio do Evangelho, com um mandato que é sempre novo. Por isso, também hoje é necessário um empenho eclesial mais convicto a favor duma nova evangelização, para descobrir de novo a alegria de crer e reencontrar o entusiasmo de comunicar a fé.

Realmente, na descoberta diária do seu amor, ganha força e vigor o compromisso missionário dos crentes, que jamais pode faltar. Com efeito, a fé cresce quando é vivida como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria. A fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite oferecer um testemunho que é capaz de gerar: de facto, abre o coração e a mente dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a aderir à sua Palavra a fim de se tornarem seus discípulos (Cfr. nº 7).

Conclui-se, então, sublinhando como que em síntese que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é «a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força».

Simultaneamente, refere ainda o texto, espera-se que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada e reflectir sobre o próprio acto com que se crê, é um compromisso que cada crente deve assumir, sobretudo neste Ano (Cfr. nº 9).

Este escrito realça o objectivo unificador de todas as acções da Igreja em ordem à evangelização. Neste sentido se afirma a necessidade de atender à confissão da fé, à sua celebração e ao testemunho que dela emerge para tocar o mundo onde se vive.

Mas diremos ainda mais, cada uma destas acções da comunidade e de cada cristão estão interligadas entre si. A verdadeira profissão de fé exige a celebração autêntica e vice-versa. O mesmos e diga do testemunho que para ser verdadeiramente cristão não pode alhear-se da profissão da fé da celebração dos mistérios da fé.

A vida da fé é uma unidade, embora se reconheça nela um conjunto de passos essenciais para uma clareza de adesão e de encontro com Cristo.

Neste itinerário muito se aproveita da pedagogia da iniciação cristã pela qual a pessoa é convidada a transformar a sua vida à luz do mistério pascal de Cristo e a entregar-se inteiramente a Ele como Sua discípula.

No que diz respeito à nova evangelização, na homilia da Eucaristia de encerramento do recente sínodo sobre esta mesma temática,  o Santo Padre distinguia entre a pastoral ordinária, a missão ad gentes e a nova evangelização direccionada sobretudo para as pessoas baptizadas que, porém, não vivem as exigências do Baptismo.

Quanto à primeira sublinha a importância de celebrar os sacramentos da iniciação cristã antecedidos de uma catequese adequada e realça a importância do sacramento da penitência. Refere que é através deste itinerário sacramental que passa o chamamento universal do Senhor à santidade. Só os santos têm uma linguagem testemunhal que se torna compreensível a todos.

No que diz respeito à segunda, isto é a missão ad gentes, esta destina-se àqueles que ainda não conhecem a Cristo. Para estes exige-se o primeiro anuncio para o qual são imprescindíveis os leigos de modo que se tornem protagonistas de um novo ardor missionário. Destaca-se o papel da globalização nos novos cenários para um primeiro anuncio mesmo em países tradicionalmente cristãos. Se por um lado, refere o Papa, todos os homens têm o direito de conhecer Jesus Cristo e o seu Evangelho; do mesmo modo, corresponde o dever dos cristãos – de todos os cristãos: sacerdotes, religiosos e leigos – de anunciarem a Boa Nova.

Em terceiro lugar, focam-se os países secularizados. Estes necessitam de uma atenção especial para que novamente se encontrem com Jesus Cristo, redescubram a alegria da fé e voltem a integrar a comunidade cristã, onde celebrem e partilhem a mesma fé.

A nova evangelização diz respeito a toda a vida da Igreja e deve atingir todos os homens e mulheres em qualquer situação em que se encontrem.

Para além dos métodos tradicionais de pastoral, sempre válidos, realça ainda o Santo Padre, que a Igreja procura lançar mão de novos métodos, valendo-se também de novas linguagens, apropriadas às diversas culturas do mundo, para implementar um diálogo de simpatia e amizade que se fundamenta em Deus que é Amor. Em várias partes do mundo, a Igreja já encetou este caminho de criatividade pastoral para se aproximar das pessoas afastadas ou à procura do sentido da vida, da felicidade e, em última instância, de Deus.

Quando nos referirmos à evangelização deparamo-nos com a riqueza da Evangelii Nuntiandi que ao assunto que nos ocupa, a importância da celebração na evangelização, dedica sobretudo dois número.

O primeiro (nº 43) realça a relevância da liturgia da Palavra, nomeadamente a homilia que no dizer deste documento pode ser muito proveitosa para os fiéis que celebram o mistério pascal através da Eucaristia, desde que «seja simples, clara, directa, adaptada, profundamente aderente ao ensinamento evangélico e fiel ao Magistério da Igreja, animada por um ardor apostólico equilibrado que lhe advém do seu carácter próprio, cheia de esperança, nutriente para a fé e geradora de paz e de unidade».

O segundo (nº 47) sublinha o papel dos sacramentos na evangelização. Esta não se esgota no anúncio e na pregação. Como deve atingir a vida, natural e sobrenatural, exprime toda a sua riqueza na relação intima entre a Palavra Revelada e os Sacramentos. Estes verdadeiramente bem preparados e celebrados são autenticamente sacramentos da fé.

Neste percurso evangelizador, exige-se o anuncio kerigmático; a catequese propriamente dita que conduz à conversão e á adesão a Jesus Cristo, configura-nos a Jesus Cristo e torna-nos seus discípulos; a celebração dos mistérios da nossa fé; a construção da comunidade pela partilha fraterna e pelo testemunho cristão no meio do mundo em atitude de serviço à pessoa e à sociedade.

Conclusão

A terminar, diria que a formação integral da pessoa cristã exige a unidade entre as três áreas: anuncio, celebração e partilha fraterna. Se à partida o anúncio parece prioritário e é-o de verdade, porque sem o anúncio não se abre a porta da fé, também é verdade que numa celebração preparada e realizada adequadamente, bem vivida, se introduz a pessoa no ambiente da fé e da celebração, se purifica e se eleva a fé. Daí o cuidado que deve merecer a celebração litúrgica, sobretudo a Eucaristia, para que seja verdadeiramente a celebração da fé e que conduz à fé.

Num tempo de neo-paganismo, com muitos modelos religiosos fabricados pelo ser humano, exige-se uma vivência litúrgica que seja a celebração de Deus tal como se revelou em Jesus Cristo e aberta à acção do Espírito Santo. Daí a necessidade de saber centrar bem a liturgia cristã, no que toca à celebração da Eucaristia, dos demais sacramentos, à oração e à celebração da Palavra de Deus e, sobretudo, a consciência da realidade Trinitária na celebração.

Muitos dos nossos contemporâneos são atraídos ao transcendente pela via da beleza. Dizia-o o Santo Padre na bênção da Catedral da Sagrada Família de Barcelona, referindo-se à expressão de beleza que Antoni Gaudi espelhou naquele templo, referindo que «colaborou genialmente para a edificação da consciência humana ancorada no mundo, aberta a Deus, iluminada e santificada por Cristo. E realizou algo que é uma das tarefas mais importantes hoje: superar a ruptura entre consciência humana e consciência cristã, entre existência neste mundo temporal e abertura a uma vida eterna, entre beleza das coisas e Deus como Beleza». Fê-lo, não com palavras mas com pedras, traços, planos e cumes. «E a beleza é a grande necessidade do homem; constitui a raiz da qual brota o tronco da nossa paz e os frutos da nossa esperança. A beleza é também reveladora de Deus porque, como Ele, a obra bela é pura gratuidade, convida à liberdade e extirpa do egoísmo».

A celebração litúrgica deve primar pela harmonia e pela elevação espiritual de tal modo que quem nela participe se reconheça a experienciar o invisível, ou seja a beleza de Deus.

Por último diria que é importante que reconheçamos que a celebração da fé se integra no processo evangelizador. A Igreja tem o seu método para evangelizar ao qual se deve obedecer. Partindo do primeiro anúncio, passando pela catequese catecumenal ou de iniciação cristã, chegando á celebração dos mistérios da fé, culminando na Eucaristia, na opção cristã de vida, na partilha fraterna e no testemunho cristão no mundo.

 

 

+ João Lavrador, Bispo Auxiliar do Porto

quinta-feira, 4 de abril de 2013


sexta-feira, 27 de julho de 2012

Assembléia Litúrgica
participação de um povo sacerdotal na liturgia
a partir da Constituição Sacrosanctum Concilium



Pe. Cristiano Marmelo Pinto


“Desde o próprio dia de Pentecostes, a Igreja nunca deixou de reunir-se para celebrar o mistério pascal:
lendo tudo o que se refere a ele em toda a Escritura (Lc 24,27), celebrando a Eucaristia, na qual voltam
a fazer-se presentes a vitória e o triunfo de sua morte e, ao mesmo tempo, agradecendo a Deus
pelo dom inefável (2Cor 9,15) em Cristo Jesus, para louvar sua glória (Ef 1,12) pela força do Espírito Santo” (SC 6).



1. Introdução

A questão da assembleia é fundamental no que diz respeito à participação litúrgica. Compreender o papel da assembleia na ação litúrgica, sua sacramentalidade e finalidade são imprescindíveis para que a liturgia, renovada pelo Concílio Vaticano II, possa atingir a tão desejada participação de todo o povo de Deus na liturgia. Toda a renovação promovida pelo Concílio e promulgada no documento conciliar sobre a liturgia Sacrosanctum Concilium visa resgatar esta participação de todos na celebração litúrgica.

A celebração litúrgica não é uma reunião qualquer, muito menos um aglomerado de massa ou grupo de indivíduos sem algo comum, mas possui uma finalidade específica e atinge um grupo característico. A assembleia litúrgica difere-se de outros tipos de assembleia, porque é formada pelo povo de Deus, povo de sacerdotes, que participa do Sacerdócio único de Cristo (cf. LG 10; 11).

Toda celebração requer a participação de um grupo, ou seja, é preciso que um grupo de pessoas se reúna para celebrar. “Não existe culto plenamente litúrgico a não ser que seja celebrado para e por um povo reunido” (GELINEAU, 1973, p. 40). De fato, como afirma a constituição Sacrosanctum Concilium “a Igreja nunca deixou de reunir-se para celebrar o mistério pascal” (SC 6). Mas esta reunião não é um simples encontro de pessoas. É preciso formar um corpo, uma assembleia. Esta assembleia que se reúne para celebrar o mistério pascal de Cristo é o que chamamos de assembleia litúrgica.

Na celebração dos 50 anos do Concílio Vaticano II e mais especificamente da Constituição sobre a liturgia Sacrosanctum Concilium, queremos refletir sobre a assembleia litúrgica como participação de um povo sacerdotal na celebração a partir deste documento que é o marco de toda uma mudança de atitude e mentalidade e, que visa principalmente o resgate participação do povo de Deus de modo ativo na liturgia. Queremos compreender o sujeito da celebração e suas vertentes no contexto celebrativo.

2. Mas o que é uma assembleia litúrgica?

Levando em conta a conotação profana do termo, assembleia indica um grupo qualquer de pessoas que se reúnem para um determinado objetivo. Considerando o contexto religioso “a assembleia litúrgica é um grupo humano que se reúne e, no âmbito dessa categoria, um grupo orientado para uma atividade religiosa” (SPERA; RUSSO, 2005, p. 111). Este grupo humano que se reúne em assembleia para uma atividade religiosa é o povo de Deus, e no nosso caso, o povo cristão, comunidade de fiéis unidos pela fé e pelo batismo que nos constitui povo de Deus.

A primeira vista, quando falamos de reunião, vem-nos a mente de que para reunir-se é preciso estar disperso. No entendimento de Argárate “reunião é voltar a unir-se. E se é voltar a unir-se, previamente é necessário uma certa des-união ou dispersão. Por sua vez, a partícula ‘re’ implica que antes da des-união havia uma sólida união. Desse modo, re-união leva-nos a voltar a uma unidade primeira” (ARGÁRATE, 1997, p. 57).

A comunidade-Igreja reúne-se para um fazer especial, marcadamente comunitário. Até podemos dizer que essa comunidade existe para esse fazer. A essência da comunidade é o reunir-se para o fazer litúrgico. A comunidade-Igreja ordena-se principalmente para o fazer da liturgia. A Igreja é a comunidade da liturgia, do fazer celebrativo do mistério do Senhor (ARGÁRATE, 1997, p. 58).

Desde cedo, usou-se o termo ekklesía para expressar a reunião dos cristãos. “A significação literal imediata do termo seria chamado, reunião, comunidade, igreja” (BERNAL, 2000, p. 111). Ekklesía transliterado para o latim Eclésia são versões da palavra hebraica qahal, que “designa a convocação para uma assembleia e o ato de reunir-se. A melhor maneira de traduzi-la seria por chamado” (COENEN, apud BERNAL, 2000, p. 111). Na sua concepção mais antiga e originária, ekklesía fazia referência à comunidade do povo de Deus convocada e reunida para celebrar a liturgia. Segundo Spera (2005, p. 112), “os autores mais antigos que descrevem a liturgia mais primitiva indicam como sua principal característica e seu começo o fato de reunir-se, de deslocar-se e de chegar a um mesmo lugar para encontrar-se e ficarem todos juntos”. Porém, a assembleia litúrgica não se reúne espontaneamente, mas sim, por um chamado, uma convocação que tem sua origem em Deus. “Assembleia, em compensação, é a reunião da Igreja, do povo de Deus, convocado pela Palavra do Senhor, em um lugar concreto e num momento preciso para celebrar os mistérios do culto” (BERNAL, 2000, p. 111). É por esse motivo que no início da celebração, após a saudação do presidente, a comunidade responde: Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo. É Deus quem nos convoca e reúne no amor de seu Filho Jesus. A comunidade dispersa, ao ouvir o chamado de Deus atende sua convocação e se reúne.

Os que se sentem unidos por diversos vínculos de conhecimentos, afeto, parentesco, amizade, relação profunda, mais que, na vida ordinária, se acham dispersos, separados, re-unen-se, isto é, voltam a unir-se, a exprimir a sua vinculação unitiva, de modo sensível, por meio de uma presença física de reciprocidade (MALDONADO, 1990, p. 163).

Para nós cristãos, o vínculo que nos faz reunir-se para celebrar é a fé em Jesus Cristo e o nosso batismo, que nos torna, todos, povo de Deus. Deste modo, manifesta-se a Igreja reunida para celebrar o mistério pascal de Cristo. “Essa Igreja mostra-se, assim, como a grande força unificante no mundo, o lugar onde todos os homens são um. E essa unidade se alcança não suprimindo as diferenças, mas conservando-as” (ARGÁRATE, 1997, p. 58). A liturgia manifesta a verdadeira natureza da Igreja (cf. SC 2).

Conforme Beckhäuser (2012, p. 17): A liturgia constitui a maior epifania ou manifestação da Igreja. Ela mostra a Igreja aos que estão fora dela, como estandarte erguido diante das nações, a fim de que se estabeleça a verdadeira união entre os cristãos e todos sejam congregados até que haja um só rebanho e um só pastor.

Cada membro da Igreja participa da assembleia litúrgica de modo diferente, segundo a diversidade de ministérios e funções (cf. SC 26; LG 11).

3. Assembleia litúrgica e participação de um povo sacerdotal

A celebração litúrgica é obra de Cristo sacerdote e de seu corpo, a Igreja, ou seja, do “Christus Totus” (Cristo total, cabeça e membros). Não encontramos nos Evangelhos nenhuma referência ao sacerdócio. No Novo Testamento, e mais precisamente em Paulo na Carta aos Hebreus, há somente um único sacerdócio, um único sacerdote e mediador: Jesus Cristo (cf. Hb 4,14.8,1. 10,19-21). É na Primeira Carta de Pedro que irá aparecer à participação do cristão no sacerdócio de Cristo (cf. 1Pd 2,4-5.9).

Sobre a presença e atuação de Cristo na liturgia, a constituição Sacrosanctum Concilium dedicou um artigo inteiro (cf. SC 7). Nele afirma-se que Cristo está sempre presente à sua Igreja, de modo especial nas ações litúrgicas. Cristo age unido à Igreja e por isso, a liturgia é o exercício do sacerdócio de Cristo. “Toda celebração litúrgica, pois, como obra de Cristo sacerdote e de seu corpo, a Igreja, é ação sagrada num sentido único” (SC 7). É toda a comunidade que, unida a Cristo, celebra a liturgia. “A assembleia reunida para celebrar a liturgia se apresenta como comunidade sacerdotal. Ela exerce e atualiza o sacerdócio eterno e único de Jesus Cristo” (BERNAL, 2000, p. 122). É neste sentido que a constituição irá afirmar que: “as ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, sacramento da unidade” (SC 26). Assim sendo, as ações litúrgicas já não são mais privativas dos ministérios ordenados, mas atos de toda a Igreja, e por isso deve-se preferir, na medida do possível, a celebração comunitária em que cada um deve desempenhar aquilo que lhe cabe (cf. SC 26; 27; 28).

A Igreja é uma comunidade de caráter sacerdotal (cf. SC 7). “A liturgia, exercício do sacerdócio de Cristo, torna-se visível na Igreja e por meio da Igreja” (SPERA; RUSSO, 2005, p. 113). A mediação sacerdotal de Cristo é visibilizada, prolongada e manifestada por meio da comunidade dos batizados. Como afirma a constituição Lumen Gentium: “os batizados consagram-se para serem edifício espiritual e sacerdócio santo, a fim de, por meio de toda a sua atividade cristã, oferecerem sacrifícios espirituais e proclamarem as grandezas daquele que das trevas nos chamou para a sua luz maravilhosa” (LG 10). O Concílio procurou recuperar a função sacerdotal de todo o povo de Deus na assembleia litúrgica.

O Concílio faz então uma distinção entre, de um lado, o sacerdócio comum ou sacerdócio dos batizados e, de outro lado, o sacerdócio ministerial dos bispos e presbíteros. Não se trata de dois sacerdócios. Ambos são expressão e participação do mesmo e único sacerdócio, o de Jesus Cristo. O sacerdócio comum não deriva ou não está abaixo do sacerdócio ministerial (BUYST, 2012, p. 38).

O fundamento do sacerdócio é o batismo (cf. LG 14; 31, AA 3). Porém, Cristo está representado na Igreja, como cabeça de seu corpo, por meio do sacerdócio ministerial. Embora diferente do sacerdócio batismal de todos os fiéis em essência e grau, ordena-se para este. “O sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum dos fiéis, ambos expressão de uma Igreja povo sacerdotal, precisam um do outro e se completam reciprocamente para realizar o culto verdadeiro (MARTÍN, 1996, p. 207).

O sujeito integral da liturgia é sempre a Igreja, mas seu sujeito último e transcendente é Jesus Cristo, que fez da Igreja seu corpo sacerdotal. A assembleia litúrgica é portanto, a reunião da Igreja, povo sacerdotal de Cristo, para celebrar pelo vínculo da fé e do batismo, o mistério pascal de Cristo. Assim, como define Catecismo da Igreja, “na celebração dos sacramentos, a assembleia inteira é o litúrgo, cada um segundo a sua função, mas na unidade do Espírito, que age em todos” (CIC, 1144).
4. Características da assembleia litúrgica

O centro de toda assembleia litúrgica é a presença do Cristo ressuscitado no meio dela. De fato, foi o próprio Jesus Cristo quem prometeu que “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí no meio deles” (Mt 18,20). A essa presença de Jesus corresponde a fé confessada da comunidade reunida. A assembleia litúrgica é então, a reunião motivada pela fé em Jesus Cristo ressuscitado. “A assembleia litúrgica parte da fé, sendo ela própria uma confissão de fé no Senhor ressuscitado” (SPERA; RUSSO, 2005, p. 115).

A assembleia litúrgica, reunida na presença de Cristo, possui suas características. Vejamos algumas dessas características.

1ª) A assembleia litúrgica é um grupo ao mesmo tempo unitário e diversoa assembleia deve ser um fator de unidade de todos os que dela fazem parte. Ela deve ser um espaço de acolhida cordial de todos que chegam para celebrar o mistério do Senhor. A assembleia é composta de pessoas que possuem muito em comum, mas que também, tem suas diferenças. Por isso, mesmo que seja um ato eclesial, ninguém perde sua identidade particular.

A assembleia litúrgica deve ser aberta e, portanto, plural, heterogênea, matizada, sinal da universalidade do amor do Pai, da catolicidade do seu desígnio salvífico, da solidariedade ilimitada suscitada pela liberalidade da sua vontade libertadora. O único requisito para ser admitido a ela é a fé (MALDONADO, 1990, p. 167).

2ª) A assembleia litúrgica é carismática e hierárquica : significa que a assembleia litúrgica não é um amontoado de indivíduos anônimos, mas uma comunidade de fiéis que possui carismas e dons e é estruturada de maneira hierárquica. Essa característica é traduzida no plano prático através dos diversos ministérios e funções exercidas na celebração. Esses ministérios e funções devem ser desempenhados para o bem de todos.

Há, no entanto, na assembleia, um princípio de distinção entre as pessoas, que não deriva da consideração mundana, mas de sua natureza orgânica e de seu próprio mistério: sua estrutura hierárquica. Todavia, não deve essa estrutura abafar os carismas de seus membros.

Essa estrutura é somo que bipolar: de um lado, a presidência, sinal pessoal do Senhor, servo e sacerdote; do outro, o povo, sinal da Igreja, a exercer seu sacerdócio batismal. Em torno desses dois pólos, desenvolve-se certo número de serviços. Ao pólo da presidência estão antes ligados os serviços da Palavra, da oração e da mesa; ao lado do povo, os da acolhida, das ofertas e do canto (GELINEAU, 1973, p. 65).

3ª) A assembleia litúrgica é uma comunidade que supera as tensões: a assembleia litúrgica, por ser a reunião de indivíduos e grupos, possui suas tensões. Mas essas tensões devem ser superadas. “Há uma contínua tensão entre o indivíduo que vem à assembleia e a ação simbólica que lhe é proposta pela liturgia” (GELINEAU, 1973, p. 66-67). O fato de serem todos crentes não significa que concordam imediatamente com a celebração. Há dois aspectos nessa tensão: por um lado, refere-se à própria realidade da ação proposta, ou seja, deixar-se julgar e converter ela Palavra; morrer e ressuscitar com Cristo; comungar com Deus e com os irmãos. É o que Paulo fala a respeito da necessidade de revestir-se do homem novo (cf. Ef 4,24). Por outro lado, refere-se aos sinais nos quais esse mistério é proposto, ou seja, linguagem parcialmente desconhecida, pessoas com quem celebro, que não escolhi, que não são todas conhecidas, cantos e textos que não são minha escolha, mas propostos pela liturgia.

A assembleia é uma comunidade que supera as tensões entre o indivíduo e o grupo, entre o subjetivo e o objetivo, entre o particular e o que é patrimônio comum, entre o que é somente local e o que é universal, etc. A assembleia não anula, integra; e isso não só no nível do eu e do tu no nós – abertura e encontro interpessoal, mas também no nível histórico e contingente com o transcendente e eterno, ou seja, com o mistério de salvação e a graça de Cristo, que autentica o encontro das pessoas nesse horizonte comunitário (MARTÍN, 1996, p. 209).

4ª) A assembleia litúrgica é polarizante: dizer que a assembleia litúrgica polariza significa que ela oferece um canal de expressão e de comunicação aos sentimentos dos que estão presentes na celebração. Significa dizer que a assembleia além de centrar os sentimentos de cada pessoa em torno de um determinado valor religioso, ela também concentra nele os sentimentos da comunidade inteira que partilha a mesma experiência de fé e de oração.

A assembleia polariza e proporciona meios de expressão e de comunicação aos sentimentos dos presentes, por mais contrastantes que possam mostrar-se (SPERA; RUSSO, 2005, p. 116).

5. A participação da assembleia na celebração litúrgica

O grande anseio da renovação litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II é resgatar principalmente a participação de toda a comunidade na celebração. Para isso empenhou-se em tornar o rito litúrgico mais claro, simples, sóbrio, conforme as características da liturgia celebrada no início da Igreja. Compreender o papel da assembleia litúrgica na celebração é fundamental para resgatar a sua participação e evitar certos equívocos ou até mesmo atitudes “populistas” de quem considera promover a participação da assembleia, confundindo os papéis de cada ministério e função na celebração. O documento conciliar diz que a Igreja procura fazer com que os fiéis estejam presentes na liturgia, não como estranhos espectadores, mas como participantes conscientes e ativos (cf. SC 48).

Há todo um jogo na expressão dos gestos e na linguagem da celebração litúrgica para indicar, por exemplo, que algumas vezes é a assembleia toda que atua, ou os membros individualmente, ou aquele que preside, fazendo o que lhe cabe em nome de todo o povo santo, ou dialogando com os fiéis (MARTÍN, 1996, p. 209).

Qual o significado da palavra “participar”? Participar vem do latim tardio (partem-capere, participare, participatio) e significa intervir, assistir, aderir, ter parte. Participare – participatio indicam, na linguagem litúrgica, uma relação com, ter algo em comum com, estar em comunhão. Participação expressa portanto, relação, comunicação, identificação, unidade. Esses termos são usados para referir-se à participação no mistério celebrado. Participação na liturgia significa ter parte na ação litúrgica, na vida liturgia. Não como “espectadores mudos” (SC 48), mas de modo consciente, ativo e frutuoso (cf. SC 11; 48; 114). “Participar da ação litúrgica significa ter parte no mistério que está sendo celebrado” (BUYST, 2002, p. 103).

A participação na liturgia envolve três aspectos:

1) A ação de participar, mediante atos humanos (gestos, ritos) e atitudes internas, suscetíveis a variar de intensidade ou de modalidade;

2) O objeto da participação, ou seja, aquilo de que se participa, que não é somente um ato, ritual e simbólico, mas também o conteúdo misterioso que se celebra ou se atualiza (o acontecimento salvífico);

3) As pessoas que tomam parte na celebração, isto é, ministros e fiéis, cada um segundo o grau próprio de sua função na liturgia.

Antes de qualquer tentativa de compreender como se dá a participação na liturgia, é preciso ter em mente que é toda a assembleia o sujeito da liturgia e não apenas os ministros ordenados (cf. SC 48). Sendo, pois, sujeito da celebração, todos dela devem participar. Significa que a participação da assembleia é parte integrante da ação litúrgica que tem sua origem e fundamento no sacerdócio batismal de todo cristão (cf. SC 14; LG 10-11). A participação na liturgia é um direito e um dever de todos. Ela não é algo privativo, de apenas alguns, mas de todos. É o que diz o Concílio quando afirma que: “as ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é o sacramento da unidade, isto é, o povo santo, unido e ordenado sob a direção dos bispos” (SC 26). Por isso é preciso promover a participação de todos na liturgia.

A Igreja deseja ardentemente que todos os fiéis participem das celebrações de maneira consciente e ativa, de acordo com as exigências da própria liturgia e por direito e dever do povo cristão, em virtude do batismo, como “raça eleita, sacerdócio régio, nação santa e povo adquirido”. Procure-se, por todos os meios, restabelecer e favorecer a participação plena e ativa de todo o povo na liturgia. Ela é a fonte primeira e indispensável do espírito cristão (SC 14).

A Constituição Sacrosanctum Concilium apresenta o ideal da participação na liturgia. Vejamos:

a) Participação plena, consciente, ativa e proveitosa (SC 11; 14);

b) Participação interna e externa (SC 19; 110);

c) Participação em ato (SC 26);

d) Participação própria dos fiéis e comunitária (SC 114);

e) Participação em assembleia (SC 121);

f) Participação ordenada e harmoniosa (SC 18; 19).

A participação na liturgia é algo interno e externo (cf. SC 11), algo que envolve toda a pessoa, de forma que as atitudes interiores coincidam com o gesto ou a ação exterior. Deve ser consciente (cf. SC 14), além de ativa e plena. Quanto aos elementos da participação na liturgia exposto pelo Concilio Vaticano II, vejamos alguns deles.

a) Participação ativa: participar da celebração de forma ativa sugere ação de todos. Significa em primeiro lugar “querer encontrar-se com o Senhor, responder a seu convite” (BUYST, 2002, p. 104). Significa querer encontrar-se com os irmãos na fé, povo sacerdotal. Em segundo lugar significa participar ativamente de todas as ações litúrgicas, cada qual exercendo a sua função;

b) Participação interna e externa: a participação na liturgia tem dois aspectos, um interno e outro externo. O que realizamos externamente (gestos, palavras, canto, movimentos...) devem ter repercussão interior, ou seja, deve atingir nossa interioridade, nosso coração. É deixar-se mergulhar, através dos gestos e sinais, no mistério do Senhor;

c) Participação consciente: significa que nossa mente deve acompanhar nossas palavras e gestos. Como dizia São Bento: “que nossa mente concorde com o coração”. Participar conscientemente trata-se de que precisamos compreender cada gesto, palavra, símbolos da liturgia. É uma compreensão que vai além do puro raciocínio, é deixar-se tocar pelo mistério do Senhor, e poder ver em tudo que se realiza na liturgia a expressão desse mistério;

d) Participação plena: trata-se de participar de maneira integral, ou seja, se entregar por inteiro no que está sendo celebrado. Identificar-se com o mistério celebrado e deixar-se tomar por ele e se transformar. É o que diz São Paulo: “Já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim. E esta vida que agora vivo, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20);

e) Participação frutuosa: significa que a participação na celebração litúrgica deve produzir frutos na vida de quem dela participa. Ela deve ser traduzida em ações, em compromisso no dia-a-dia das pessoas. Em outras palavras, significa dizer que a liturgia deve produzir frutos de conversão e transformação em nossa vida, ter continuidade fora do momento celebrativo.

Em vista de uma melhor participação na liturgia, o Concílio procurou concretizar os meios possíveis para que a participação da assembleia aconteça. Para isso é necessário:

a) Formação litúrgica (SC 14-19);

b) Catequese litúrgica e de admoestações oportunas no desenvolver dos ritos (SC 35,3);

c) Ritos simplificados (SC 34);

d) Fomento dos cantos e das respostas, dos gestos e das posturas corporais, assim como do silêncio na celebração (SC 30);

e) Introdução da língua vernácula (SC 36,2);

f) Inculturação da liturgia (SC 37-40);

g) Ampliação das leituras da Palavra de Deus na liturgia (Sc 24);

h) Homilia (Sc 35,2);

i) Revisão dos testos e dos livros litúrgicos (SC 21; 25).

7. Concluindo...

A liturgia é a celebração de todo o povo de Deus, Corpo de Cristo (Cabeça e membros). A assembleia que celebra a liturgia é manifestação da Igreja e sujeito da liturgia. Na liturgia, a Igreja se manifesta como povo sacerdotal, que celebra o mistério da fé. Esse povo sacerdotal é constituído pelo batismo, que nos faz todos participantes do único sacerdócio de Jesus Cristo. Embora diferentes em grau e essência, o sacerdócio batismal e o sacerdócio ministerial está um ordenado para o outro.

A assembleia litúrgica é a reunião da Igreja, povo sacerdotal de Cristo, para celebrar pelo vínculo da fé e do batismo, o mistério pascal de Cristo. Desse modo, podemos concluir que a participação da assembleia na liturgia consiste em, deixar-se tomar pelo mistério celebrado e dele participar de modo ativo e consciente. Se compreendermos bem o papel da assembleia na liturgia, seus ministérios e funções, poderemos promover então o que deseja o Concílio Vaticano II, na Constituição sobre a liturgia Sacrosanctum Concilium: uma participação ativa, interior e exterior, consciente, piedosa, plena e frutuosa.

Ainda nos falta muito por fazer. Precisamos arregaçar as mangas e ajudar o nosso povo a celebrar cada vez melhor. A promoção da participação da assembleia na liturgia cabe tanto aos pastores (bispos e presbíteros), como também aos membros da pastoral litúrgica. Então, mãos a obra!


Referências bibliográficas:


CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a sagrada liturgia. (Coleção: A voz do papa 26). São Paulo: Paulinas, 2002.

ARGÁRATE, Pablo. A Igreja celebra Jesus Cristo: introdução à celebração litúrgica. São Paulo: Paulinas, 1997.

BERNAL, José Manuel. Celebrar, un reto apasionante: bases para una comprensión de la liturgia. Salamenca/Madrid: San Esteban/Edibesa, 2000.

BUYST, Ione. Participar da liturgia. São Paulo: Paulinas, 2012.

BUYST, Ione; SILVA, José Ariovaldo da. O mistério celebrado: memória e compromisso I. Valencia: Siquem, 2002.

GELINEAU, Joseph. Em vossas assembleias 1: teologia pastoral da missa. São Paulo: Paulinas, 1973.

MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: fenomenologia e teologia da celebração. In: BOROGIO, Dionísio (org.). A celebração na Igreja 1: liturgia e sacramentologia fundamental. São Paulo: Loyola, 1990, p. 161-175.
MARTÍN, Julián López. No espírito e na verdade: introdução teológica à liturgia. Petrópolis: Vozes, 1996.

SPERA, Juan Carlos; RUSSO, Roberto. A assembleia celebrante. In: CELAM. Manual de liturgia: a celebração do mistério pascal – fundamentos teológicos e elementos constitutivos. São Paulo: Paulus, 2005, p. 111-141.









segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012


O termo liturgia

O termo "liturgia", hoje utilizado quase que exclusivamente para descrever o ato de culto, não nasceu em ambiente religioso e nem mesmo é oriundo do mundo do Antigo Testamento, mas vai aparecer por primeiro na Grécia antiga, pertencendo pois à língua grega clássica, como palavra composta por duas raízes: leit (de laós = povo) e érgon (= ação, empresa, obra). A palavra assim composta significava naquele ambiente em que nasceu: “ação, obra, empresa para o povo ou pública”. Por «Liturgia» se entendia um serviço público feito para o povo por alguém de posses. Este realizava tal serviço ou de forma livre ou porque se sentia como que obrigado a fazê-lo, por ocupar elevada posição social e econômica. Neste sentido eram "Liturgias" a promoção de festas populares, dos jogos olímpicos ou o custeio de um destacamento militar ou de uma nave de guerra em momentos de conflitos.

Na época helênica a palavra conhece uma evolução no seu sentido e começa a designar seja um trabalho obrigatório realizado por um determinado grupo, como castigo por alguma desobediência ou como reconhecimento por honras recebidas, seja o serviço do servo para com seu senhor ou o favorzinho de um amigo para com o outro. E aqui vemos o termo perder aquele caráter de serviço público, para a coletividade, que é, como vimos, um seu componente essencial.

Todavia, nesta mesma época helênica, começamos a ver o termo "Liturgia" sendo usado ao mesmo tempo e cada vez mais em sentido religioso-cultual, para indicar o serviço que algumas pessoas previamente escolhidas prestavam aos deuses. E é precisamente neste sentido que ele vai entrar no Antigo Testamento e, tempos mais tarde, será acolhido no mundo cristão.

De fato, no texto da Bíblia traduzida para o grego e chamada tradução dos LXX, «Liturgia» aparece cerca de 170 vezes, designando sempre o culto prestado a Javé, não por qualquer pessoa, mas apenas pelos Sacerdotes e pelos Levitas no Templo. Já quando os textos se referem ao culto prestado a Javé pelo povo, a palavra utilizada pelos LXX não é jamais "Liturgia", mas latría ou doulía. Isso por si só já nos indica que os tradutores dos LXX fizeram uma escolha consciente deste termo «Liturgia», dando-lhe um sentido técnico preciso para indicar de forma absoluta o culto oficial hebraico devido a Javé e realizado por uma categoria toda particular de pessoas especialmente destinadas a isso.

No Novo Testamento o termo vai aparecer apenas 15 vezes, mas uma só vez em sentido de culto ritual cristão (cf. At 13,2). E a razão de um tal desprezo dele pelo NT parece dever-se exatamente ao fato de «Liturgia» recordar de maneira muito clara e direta os sacrifícios realizados no Templo e que foram tantas vezes e de tantos modos duramente criticados pelos profetas de Israel, por não serem verdadeira expressão de amor e agradecimento a Deus pelos benefícios recebidos ou sinal de conversão dos pecados. Nestes sacrifícios, em geral, não aparecia o coração do homem; e este tipo de culto Deus não pode aceitar (cf. Sl 39,7-9; 49,14.23; 50,18-19; 68,31-32; 140,2; Is 1,10-20; Jr 7,3-11; Os 6,6; 8,11-13; Am 5,21-25).

No cristianismo primitivo o termo também resiste a aparecer. Os cristãos da origem adotando o «espiritualismo cultual», isto é, aquele tipo de culto realizado em “espírito e verdade”, não mais ligado às instituições do sacerdócio ou do templo, seja o de Jerusalém ou de Garizim (Jo 4,19-26), não sentem a necessidade de utilizar uma palavra que havia servido para identificar explicitamente um culto oficial, feito segundo regras precisas, tal qual era o sacrifício hebraico, vazio de espírito e rico de exterioridade. Mas já na Igreja pós-apostólica, "Liturgia" vai perdendo parte de seu aspecto negativo e começa a distinguir os ritos do culto cristão, como se vê em documentos como a Didaché (+- 80-90) e na I Carta de Clemente romano aos Coríntios (+- 96).

No Oriente grego, o termo esteve sempre em uso para designar a ação ritual, muito embora hoje em dia indique sobretudo a celebração da Eucaristia segundo um determinado rito, como por exemplo, a “Liturgia de são João Crisóstomo”, a “Liturgia de são Tiago” etc. No ocidente latino, porém, o termo «Liturgia» será completamente ignorado e só vai aparecer no séc. XVI, por causa dos contatos criados entre o Renascimento e as antigas fontes gregas. Mas devemos aguardar a primeira metade do séc. XIX para vê-lo utilizado no linguajar eclesiástico oficial latino com Gregório XVI, o que continua com Pio IX e sobretudo com Pio X. Por ocasião do Movimento Litúrgico do início deste século este termo será usado com grande força, sendo que o Concílio Vaticano II o consagrará nos seus diversos documentos, em especial na Constituição sobre a Liturgia Sacrosanctum Concilium, entendendo sempre por «Liturgia» “o exercício do sacerdócio de Jesus Cristo” (SC 7), ou o “cume em direção ao qual se dirige toda a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte da qual sai toda a sua força” (SC 10).


Pe. JOSÉ RAIMUNDO DE MELO
doutor em liturgia


sábado, 21 de janeiro de 2012

Missa não é opereta

Pe. Zezinho, scj


Opera é um teatro todo cantado. Opereta, um teatro declamado, falado e cantado. Pode haver danças no meio. É mais ou menos isso! Os detalhes eu deixo para os especialistas em artes cênicas. Missa é culto católico, com séculos de história, que não depende de lugar para acontecer, mas, em geral, acontece num templo. Não é nem nunca foi ópera ou opereta. Quem dela participa não é ator e nem o presidente da assembléia nem os cantores podem ser sua principal atração.

Mas são! E o são por conta de um fato: a maioria não estudou ou não respeita as orientações dos especialistas de uma ciência chamada "liturgia". Liturgia deve ser o que impede que o altar vire palco, e o lado direito ou esquerdo dele vire coxia! Regula o culto de maneira que transpareça a catequese e a teologia daquele momento. Na hora em que o presidente daquele culto, ofuscado pelas luzes e pela fama local ou nacional, e algum cantor ou cantora deslumbrado com a sua chance de mostrar seu talento roubam a cena, temos mais uma exibição de opereta, num templo católico. Gestos, corridinhas, roupas lindas, música que estoura os ouvidos, o padre onipresente, inserções aqui e ali no script do que tratam como peça de arte, vinte músicas para uma missa, as canções duram 50 minutos e as palavras da missa 12 ou 15, o sermão do padre 25... E o povo que não pagou para assistir, é convidado a deixar sua contribuição no ofertório. Na semana que vem haverá outra exibição... Isto, nos cultos em que o altar vira palco e o celebrante que poderia, sim, ser alegre, comunicativo, acolhedor, resolve se o ator principal com alguns coadjuvantes chamados banda católica.

Nos outros cultos chamados de eucaristia e tratados como eucaristia a coisa é bem outra! Tem decoro, tem lógica, obedece-se ao conteúdo e aos textos daquele dia, as canções são verdadeiramente litúrgicas, os leitores sabem ler e não engasgam, os microfones não estouram, ninguém toca nem fala para ensurdecer, músicos não entram em competição, nenhum solista canta demais, cantores apenas lideram o povo, ninguém fica dedilhando cançõezinhas durante a consagração, como fundo para Jesus que faz o seu debut, as canções são ensaiadas e escolhidas de acordo com o tema da missa daquele dia, não se canta na hora da saudação de paz porque ninguém diz bom dia, ou como vai cantando...Tais coisas só acontecem nas operetas...

Nas missas sérias e com unção ninguém fica passando à frente ou atrás do altar, ministro não fica mexendo no altar enquanto o padre prega, padre não exagera nas vestes, não berra, não grita, não dá show de presença, tudo é feito com muita seriedade e decoro. O padre até se destaca pela seriedade. Celebra-se, dentro das nuances permitidas, o mesmo ato teológico com implicações sociais que se celebra no mundo inteiro. Todos aparecem e ninguém se destaca.

Mas receio ser inútil escrever sobre estas coisas, porque pouquíssimas bandas e pouquíssimos sacerdotes admitem que isso acontece com eles...E ai de quem disser que acontece! Mandam consultar o ibope sobre as novas missas transformadas em operetas, nas quais se privilegia mais canção do que os textos do dia. Perguntem se, depois daquele "somzão" e daquelas inserções com exorcismo, oração em línguas e outros adendos não aumentou a freqüência aos templos! É! Pois é!



www.padrezezinhoscj.com