sábado, 30 de março de 2019



HOMILIA DO QUARTO DOMINGO DA QUARESMA
(Js 5,9-12; Sl 33; 2Cor 5,17-21; Lc 15,1-3.11-32)

A liturgia de hoje possui um tom de alegria. Por esse motivo, o quarto domingo da quaresma é chamado de “domingo da alegria”, porque, na travessia do deserto quaresmal, nos deparamos como que com um “oásis” e podemos vislumbrar as festas que se aproximam. É como rezamos na oração inicial da missa de hoje, pedindo a Deus que: “concedei ao povo cristão correr ao encontro das festas que se aproximam cheios de fervor e exultando de fé” (Oração da Coleta).

Mas poderíamos também chamar a celebração de hoje de: “domingo da reconciliação”, sim, porque os textos de hoje falam da misericórdia de Deus e da nossa reconciliação com ele. São Paulo na segunda leitura faz este apelo: “Deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,20). Penso que a palavra que define a liturgia de hoje é: perdão! Deus nos perdoa e nós também devemos aprender a perdoar os nossos irmãos. Não importa o que tenham feito, é importante que aprendamos a nos reconciliar uns com os outros. E a maior lição de que temos que nos perdoar é o fato de que fomos reconciliados com Deus por meio de Jesus Cristo. São Paulo diz isso: “Por Cristo, Deus reconciliou o mundo consigo” (2Cor 5,19).

No evangelho, Jesus fala do perdão em meio as críticas que ele recebe dos fariseus, porque ele se aproxima dos pecadores. Neste contexto, Jesus conta uma das mais lindas parábolas dos evangelhos. Alguns a chama de “Parábola do filho pródigo”, outros de “Parábola do pai misericordioso”. Talvez este último seja o melhor título, isto porque, em meio ao pecado, o que deve sobressair é a misericórdia. Embora o filho mais novo tenha levado uma vida desenfreada e de esbanjamento, o que importa é seu retorno para seu pai. E a atitude do pai é de festa com o seu retorno. Esta parábola mostra a atitude de Deus conosco. Ele faz festa com o nosso retorno,  com a nossa conversão. Num dos versículos omitidos no evangelho de hoje Jesus diz que: “Há alegria diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende” (Lc 15,10).

Nós temos um pouco de cada um dos personagens desta parábola: somo um pouco do filho mais novo, quando levamos uma vida de esbanjamento e desenfreada, longe de Deus; somo um pouco do filho mais velho, quando não somos capazes de ver e agir com misericórdia como agiu aquele pai; e também, somos um pouco do pai, quando superando nossas limitações  nos tornamos capazes de agir com misericórdia e nos alegrarmos em nos reconciliarmos com aqueles que tenham nos ofendido. Em nós deve sobressair as atitudes do pai, agindo com misericórdia e alegria.

O que isso tem a ver com nossa vida pessoal, com nossa vida comunitária...? Creio que tudo. Às vezes precisamos passar pelo sofrimento, pela dor, para descobrirmos e valorizarmos Deus em nossa vida. Quantos conhecemos que só se reaproximaram de Deus depois de um grande sofrimento ou dor? Deus estará sempre a nossa espera, ele é paciente.

Mas quando se trata de outra pessoa a coisa muda de figura. Se demorarmos demais para nos reconciliar, para pedir ou dar o perdão, pode não haver mais tempo. E se a pessoa em questão morrer, é pior ainda. Perdoe, dê o seu perdão, seja a quem for, enquanto existe tempo para isso. Depois, quando o outro morre, o que fica é o sentimento de culpa. E contra isso quase nada se pode fazer.

Somos como o filho mais velho quando nos relacionamos com Deus por se fosse um patrão, fazendo as coisas por obrigação, esperando receber dele uma recompensa. Pode-se até fazer as coisas bem, com perfeição, mas ficará sempre esperando ser recompensado. São pessoas que cumprem as regras da Igreja, participam das missas, pagam dízimo, porém, faz tudo por obrigação, às vezes sem amor, e não consegue aceitar que alguém que tenha cometido algum erro possa ser readmitido na comunidade, no grupo, na pastoral... São pessoas que, embora façam as coisas bem feitas, não conseguem perdoar os outros.

Porém, todos nós precisamos ser mais como o pai misericordioso, que espera o retorno do filho, que perdoa e faz festa, se alegra. Somos um pouco desse pai quando nos alegramos com a volta de alguém que se afastou da comunidade, quando não ficamos olhando para seus pecados, mas o que eles têm de bom, quando enxergamos com misericórdia.

Para terminar, como dizia Machado de Assis: “Nunca levante a espada sobre a cabeça de quem te pediu perdão.” Em outras palavras, seja misericordioso. Não negue seu perdão a quem te pedir. Não seja orgulhoso. Negar o perdão nunca trouxe nada de bom para quem o nega. E como Vinícius de Moraes diz numa de suas canções: “Quem não pede perdão, não é nunca perdoado.” Seja humilde para reconhecer que errou e pedir perdão de suas faltas.

Paz no coração de todos!
Pe. Cristiano Marmelo Pinto




OBRAS DE MISERICÓRDIA CORPORAIS

Pe. Cristiano Marmelo Pinto

Foi-me proposto conversar sobre as obras de misericórdia corporais. O Papa Francisco nos convida para nos tornarmos uma Igreja da misericórdia. A proposta para a reflexão é bem simples, de modo que, veremos quais são as obras de misericórdia corporais e quais suas implicações na vida concreta, seja pessoal e comunitária, ou seja, como cada um de nós devemos praticá-las e como a comunidade também deve colocá-las em prática na sua vivência pastoral.

Quais são as obras de misericórdia corporais?
1ª) Dar de comer a quem tem fome;
2ª) Dar de beber a quem tem sede;
3ª) Vesti o nu;
4ª) Acolher o forasteiro;
5ª) Assistir os enfermos;
6ª) Visitar os presos;
7ª) Enterrar os mortos.

Antes de falarmos de cada uma destas obras acho oportuno entendermos o que quer dizer “misericórdia”, e por que das “obras de misericórdia”?

Misericórdia tem a ver comportamento. Ela diz respeito ao comportamento de quem é altruísta, sensível e preocupado com a condição de miséria do outro, e se compromete em buscar soluções. Poderíamos dizer que a misericórdia é tudo que humaniza. Como o próprio significado da palavra diz: “Ir ao encontro das misérias do coração do outro, para ajudá-lo a se libertar!”  Misere (miséria) / cordis (coração). O coração misericordioso é cordial, benevolente, compassivo, não olha para trás, mas para frente, em busca de novos caminhos, novos horizontes. Quem olha para trás não vê o caminho que se abre à frente. Isto é muito comum em pessoas rancorosas. Não conseguem se libertar do passado, e por isso a vida para em torno do que aconteceu. Daí gera-se sentimentos de vingança, ódio, falta de esperança e de perdão.

1ª obra de misericórdia corporal
“Dar de comer a quem tem fome”

Jesus ao falar de sua volta e reunir a sua direita as ovelhas diz: “Eu estava com fome e me deste de comer” (Mt 25,35). Estamos tratando de uma das mais duras realidades humanas: a fome. Segundo dados do IBGE de 2014, cerca de 7,2 milhões de brasileiros passam fome. Segundo a ONU, dados de 2015, embora no mundo a fome tenha diminuído, ela ainda atinge cerca de 805 milhões de pessoas. É um número alarmante. Como se sabe, a fome é uma realidade que atinge particularmente os pobres. Quando Jesus opta por anunciar a Boa Notícia as pobres, ele está também denunciando estar triste realidade vivida por eles. É por isso que ele diz em Mateus 5,6: Felizes os que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados”. E ele mesmo apresenta-se como pão, como alimento descido do céu. É nosso dever como comunidade cristã empreender ações de combate à fome.

O papa emérito Bento XVI na Encíclica Caritas in veritate, diz que: “Dar de comer a quem tem fome é uma responsabilidade da Igreja, que deriva da ação de Jesus”. O papa Paulo VI diz que dar de comer aos famintos é um imperativo ético para toda a Igreja. É por isso que nós cristãos, temos que alimentar os pobres, temos que partir o “pão”, temos que assistir os famintos.

Em muitas comunidades católicas existem grupos que atuam nesta realidade. Temos os vicentinos, a pastoral da caridade, existem os grupos que cuidam dos moradores de rua levando comida, o famoso “sopão”, e com certeza vocês aqui também tem algum grupo que assiste as famílias. Cabe a cada um da comunidade duas atitudes: primeira: dar comida a quem bate à sua porta e segunda: dar condições aos grupos ou pastorais da comunidade que cuidam dos famintos, trazendo na igreja alimentos para estas famílias. Sejam generosos com os irmãos famintos. Mesmo que a situação esteja difícil, não deixem de ajudar a quem tem fome.


2ª obra de misericórdia corporal

“Dar de beber a quem tem sede”

Ainda em Mateus 25,35, Jesus dirá: “Eu estava com sede, e me deram de beber”. Esta é outra
realidade de carência humana. A água é vital para a vida no planeta. Poucos anos atrás o Estado de São Paulo passou por uma profunda crise hídrica. Todos fomos afetados pela seca que diminuiu os nossos reservatórios, nos privando de um dos bens mais vitais para a vida como um todo. A falta de água atinge várias coisas: a sede, afeta a plantação de alimentos, e o próprio meio ambiente é afetado. A escassez de água afeta cerca de 40% da população mundial. Presume-se que em 2032 cerca de 5 bilhões de pessoas serão afetadas pela escassez de água. Cerca de 60% da água potável está em apenas nove países, o Brasil é um deles. Enquanto que, em 80 países há escassez. E poderíamos ir além com os dados. 


Diante da ameaça da falta d’água, e do que isso pode acarretar para a vida no planeta, é importante colocarmos em prática esta segunda obra de misericórdia corporal. Podemos dar de beber a quem tem sede de vários modos: não negando um copo d’água a quem nos pede; economizando a água que usamos em casa; colaborando com comunidades afetadas por catástrofes naturais, por exemplo, doando água, pois uma das primeiras necessidades é a água para beber.

3ª obra de misericórdia corporal
“Vesti o nú”

No evangelho Jesus diz: “Eu estava sem roupa, e me vestiram” (Mt 25,36). Conta-se que São Martinho de Tours no inverno de 337, ao encontrar perto da porta da cidade um homem com frio, rasgou-lhe o manto e deu a metade para aquele homem. Na noite seguinte, Jesus apareceu para ele vestido com a metade do mando dada, para lhe agradecer o gesto. Conta-se também que no grupo dos companheiros de São Francisco de Assis, havia um frei chamado Junípero, que todas as vezes em que ia na cidade, voltava nu, sem o hábito franciscano, porque o dava para alguém mais pobre do que ele. Um antigo frei dizia para nós no seminário franciscano que, as roupas guardadas em nosso guarda-roupas por mais de dois meses, já não nos pertence mais, e sim, aos pobres. Vestir o nu nos questiona duas posturas frequentes: a primeira é a necessidade ilusória de possuir e possuir mais roupas. Tem gente que falta espaço para tanta roupa. Por que isso se nos basta o necessário? A segunda coisa é o apego as roupas que não nos serve mais. Por que guardá-las? Tem gente que fica esperando emagrecer e nunca emagrece, e a roupa estraga guardada a espera de tal “milagre”. Se não nos serve, se não usamos mais, precisamos aprender a doar para os maltrapilhos. E como tem gente precisando de roupas.

4ª obra de misericórdia corporal
“Acolher o forasteiro (estrangeiro)”

No evangelho Jesus diz: “Eu era estrangeiro, e me receberam em sua casa” (Mt 25,35). Conheci
uma senhora em Curitiba, que quando íamos almoçar na casa dela, sempre havia um prato a mais na mesa. Certa vez resolvi perguntar por que daquele prato. Ela me respondeu que era para Jesus que poderia chegar a qualquer momento. São Bento na sua regra para os monges dizia que: “Todo hóspede deve ser acolhido como Cristo, porque Ele um dia nos dirá: ‘Era peregrino e me hospedastes’”. Acolher o estrangeiro tem a ver com a nossa hospitalidade. Devemos receber quem nos visita, como que recebendo o próprio Cristo que nos vem. Também cabe aqui a questão dos refugiados. Estamos vivendo uma crise de refugiados sem precedentes no mundo,
seja por causa das guerras, seja por causa da perseguição religiosa. E por outro lado, nos deparamos com atitudes de fechamento em recebê-los. Vejam a Europa. Mas também aqui no Brasil. Temos gente de todas as partes do mundo. Como são recebidos? Como vivem?

5ª obra de misericórdia corporal
“Assistir os doentes - enfermos”

Jesus diz: “Eu estava doente, e cuidaram de mim” (Mt 25,36). A doença e o sofrimento estão entre os problemas mais graves que afligem a vida humana. A saúde pública está em crise, principalmente em lugares mais pobres e menos atendidos. Além do sistema de saúde ineficiente também temos os doentes que estão em casa. Muitos deles vivem só. A obra de misericórdia: “assistir os doentes” começa na família quando se lida com doenças prolongadas e, às vezes irreversíveis. Seja em qualquer idade, e por qualquer problema de saúde que podem ser, entre tantos: o câncer, as paralisias, a anencefalia, e socorrer sem preconceito os portadores do HIV.

Trata-se também de um trabalho voluntário em hospitais, asilos, e casas de recuperação. Estende-se a uma pastoral que visite e acompanhe aqueles que, vivem a dor de sua enfermidade na solidão, e no esquecimento. Não deixe de visitar, de assistir alguém doente. Não deixe de visitar e de se reconciliar, seja um familiar, um amigo... Faz bem pra ele e faz bem pra gente também.

6ª obra de misericórdia corporal
“Visitar os presos – os encarcerados”

Ficará à direita de Deus, no grupo dos bem-aventurados, aquele que visitou os que estavam na
prisão (Mt 25, 36). Hoje o acesso nos presídios não é livre, há um certo rigor e triagem para visitas presidiários. Porém, nossas dioceses ainda são deficientes em se tratando de uma pastoral carcerária efetiva, e dinâmica. É claro que nem todo mundo tem jeito para estar num ambiente deste. Deus entende. Mais também, tem muitas outras ações que a comunidade pode realizar para ajudar os que estão presos. Por piores que tenham sido os crimes praticados, é nosso dever cuidar dos presos. As visitas normalmente são realizadas pela pastoral carcerária. Mais também, podem acompanhar a família. Assistindo em suas necessidades, combatendo o preconceito que essas famílias são submetidas...

7ª obra de misericórdia corporal
“Enterrar os mortos”

Crer na ressurreição da carne, na vida eterna, faz parte da oração pela qual professamos nossa fé. No Livro de Tobias encontramos o seguinte:  Tobias com uma solicitude toda particular, sepultava os defuntos e os que tinham sido mortos (Tb 1, 17ss). O Novo Catecismo da Igreja Católica, assim diz: “Os corpos dos defuntos devem ser tratados com respeito e caridade, na fé e na esperança da ressurreição. O enterro dos mortos é uma obra de misericórdia corporal que honra os filhos de Deus, templos do Espírito Santo” (CIC n. 2300). Cada pessoa é templo do Espírito Santo e mesmo depois de morta, seu corpo merece respeito. A Igreja permite a cremação do corpo, desde que não seja um ato que se faça numa manifestação de contrariedade à fé na ressurreição dos mortos (CIC n. 2301). A doação gratuita de órgãos não é um desrespeito ao corpo quando desejada pela própria pessoa, é uma pratica legitima, incentivada pela Igreja. É importante recuperarmos o respeito pelos mortos. Enterrá-los com dignidade e respeito.

Por fim, coloquemos em práticas as obras de misericórdia, pois, essa é a vontade de Deus.

terça-feira, 26 de março de 2019



ESSENCIALIZAR A VIDA

Essencial! Hoje é comum ouvirmos essa palavra sem ao menos aprofundarmos o que significa, ou na melhor das hipóteses, sem nos importarmos com o seu significado. É preciso buscar o essencial. Mas numa sociedade do supérfluo, como é possível buscar o essencial? Numa época em que vidas se gastam na procura desenfreada de acumular, falar de essencial parece até uma coisa ultrapassada.

Mas a grande verdade é que a vida se faz do essencial, e o supérfluo pode torná-la mais difícil, mais pesada. Embora precisamos do que é essencial em nossa vida, nem sempre damos prioridade para ele. O ar é essencial para a vida, assim como a água e o alimento, mas nem sempre eles são prioridades, basta ver o que a humanidade tem feito com o ar, com a água, por exemplo. Os valores são essenciais em nossa vida, mas nem sempre nos importamos tanto com os valores, do mesmo modo como nos importamos com sentimentos e coisas ruins que nos afetam. Por isso é importante essencializar a vida.

Mas o que significa “essencial”? Essencial significa indispensável, necessário, algo muito importante que não pode faltar. Do latim “essentiale”, refere-se à essência, ou seja, a substância, o que constitui a natureza íntima das pessoas ou coisas. Essência – “essentia” indica a natureza ou característica essencial de uma pessoa. Indica o que é fundamental, indispensável em uma pessoa.

O oposto do essencial é o supérfluo. Supérfluo, do latim “superfluus”, é aquilo que transcende o necessário, que é demais, demasiado, excedente e às vezes, desnecessário. Pode ser também algo ou alguém que apresenta caráter desnecessário, dispensável.

O problema é que na maioria das vezes damos mais importância ao supérfluo do que ao essencial. Quantos gastam seu tempo correndo atrás de coisas, de riquezas, de prazeres, e esquece-se de cultivar o que é essencial em sua vida. E quando essas coisas lhe faltam percebe-se vazio, descobre que sua vida não tem sentido. Há coisas na vida que são essenciais e que colocamos em segundo plano, e por outro lado, potencializamos situações, coisas e sentimentos supérfluos ou desnecessários. Pe. Flávio Sobreiro diz no livro “Amor sem fronteiras” que: “Acumulamos ódio, raiva, desejo de vingança, e muitas vezes nem temos noção de que estamos sobrecarregando nosso coração com um fardo pesado demais”. É verdade! As vezes nos importamos mais com os sentimentos ruins e nos esquecemos que também temos coisas boas em nós. Nos apegamos ao feio, ao ruim, e esquecemos da beleza que há em nós.

Temos medo de perder o que nos é supérfluo para viver do essencial. Clarice Lispector diz: “Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com as duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar”. Sua descoberta de que o supérfluo de uma “terceira perna” não lhe era mais essencial, porque, essencial é ter duas pernas, a assusta, porque normalmente temos medo de abandonar o que não é necessário em nossa vida.

Mário de Andrade diz que: “O essencial faz a vida valer a pena”. E Carlos Drummond de Andrade diz que: “O essencial é viver!” Nem sempre conseguimos ver o que é essencial porque temos dificuldade em colocar o que é supérfluo no seu devido lugar: o segundo plano. Antoine de Saint-Exupéry afirma que: “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos”. Daí a necessidade de começar a ver com o coração e descobrir o essencial. É preciso olhar para dentro de nós na busca do essencial, como nos aconselha Arthur Schopenhauer ao dizer que: “O que temos dentro de nós é o essencial para a felicidade humana”. Também Caio Fernando Abreu deduz isso de uma maneira formidável ao dizer: “Depois de todas as tempestades e naufrágios o que fica de mim e em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro”.

Quando fazemos esse trabalho de deixar o supérfluo e partir em busca do essencial em nós, quando deixamos de olhar com outros olhos e passamos a olhar com o coração, e olhamos para dentro de nós mesmos, vamos descobrir lá no fundo que para além de tantas outras coisas, Deus é o primeiro essencial em nossa vida. O ar é essencial, a água, o alimento, a liberdade, etc., mas Deus deve ocupar o primeiro plano em nossa vida. É por isso que Jesus diz: “Não andeis, pois, inquietos, dizendo: que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos? Porque todas estas coisas os gentios procuram. Decerto vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas; mas, buscai primeiro o Reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6,31-33). O conselho de Jesus é para que busquemos Deus primeiramente, o necessário virá como acréscimo. É preciso que o nosso coração esteja em Deus para que ele seja essencial em nossa vida. Acertadamente Jesus diz que: “Onde esta o seu tesouro, aí estará também o seu coração” (Mt 6,21).

Martha Medeiros diz que: “O que está em pauta é a busca, a causa incessante ao que nos é essencial”. Precisamos fazer esse caminho de busca do essencial. Não é fácil e às vezes acontece de forma sofrida e doida. O essencial é aquilo que, quando em nossa vida tudo cair, ele sobra. Quando as vaidades, quando o supérfluo cair, o que sobrar é essencial e essencial é que quando isso acontecer não nos vejamos vazios. Por isso é importante essencializar a vida, dar valor, importância ao que vale a pena, principalmente aquilo que passa a constituir o que nós somos, porque, sem o essencial não somos nada.

Paz!
Pe. Cristiano Marmelo Pinto


UMA IGREJA MENOS BUROCRÁTICA E MAIS EVANGÉLICA

Religião significa re-ligar. Isto mesmo. Por mais que os críticos de religião afirmam que a religião é um atraso na vida do povo, ela tem a função de religar a pessoa humana com o transcendente-Deus, consigo mesmo e com os outros. Jesus em toda a sua prática procurou reestabelecer a conexão entre Deus e seu povo, aproximando as pessoas de Deus e tornando Deus cada vez mais próximo de nossa vida. Não é por menos que ele iniciou seu ministério público entre aqueles que eram excluídos da religião, que na época era baseada num sistema que dividia as pessoas entre “puros” e “impuros”. É o antigo dilema quando se vive uma religião burocrática, apegada as normas, criando entre nós um sistema parecido com o do tempo de Jesus, dividindo as pessoas entre “os que podem” e “os que não podem”. E assim, criamos um incalculável grupo de pessoas que são privadas de se aproximar de Deus, isto porque não se enquadram no sistema das normas religiosas.

Ao estabelecer as normas para a escolha dos novos bispos, e isto vale também para nós padres e deve valer para todos os cristãos, o Papa Francisco disse querer mais pastores do que homens distantes do povo, ou seja, homens de “cúrias”. O papa pediu que os pastores tenham o “cheiro das ovelhas”. Isto significa se misturar, estar onde o povo estar. Certamente Jesus tinha o cheiro de suas ovelhas. Era muito criticado por andar entre os pecadores, as prostitutas e outras classes mal vistas em sua época. Mas isto não o impediu de levar seu projeto em frente. Acompanhamos todo esforço do Papa Francisco em reaproximar a Igreja do povo e o povo da Igreja, tornando-a menos burocrática e mais missionária, evangélica (no sentido exato da palavra). Ele deseja uma Igreja em saída, uma Igreja como um Hospital de Campanha.

Tudo isto também vale para nossos leigos, que muitas vezes preferem uma pastoral de manutenção, ou seja, permanecer na zona de conforto pastoral, e relutam em ir para fora, negando o mandato de Jesus para irmos ao mundo evangelizar. E evangelizar não significa despejar na cabeça das pessoas uma infinidade de regras, sendo que muitos não poderão seguir, mas de reaproximar, religar a conexão com Deus, com o outro e com o mundo. É surpreendente a coragem de nosso Papa em quebrar tabus. Vejam os temas propostos no último Sínodo dos Bispos sobre a família?! Temas que nunca imaginávamos ser pauta num Sínodo da Igreja, agora estão presentes: casais de segunda união, casais homoafetivos, entre outros.

Então, se o Papa demonstra esta extraordinária e evangélica coragem, por que nós permanecemos na covardia e no conforto de nossas normas? Por que continuarmos pregando uma religião que não cumpre seu papel de religar, reaproximar as pessoas de Deus e dos outros? Por que muitos ainda possuem uma postura moralista e nem um pouco pastoral? Para isto é preciso deixar nossa zona de conforto, abandonar os gabinetes curiais e ir se misturar com as ovelhas, mesmo que talvez o cheiro não seja tão bom.

Paz no coração!
Pe. Cristiano Marmelo Pinto



HOMILIA DA FESTA 
DA ANUNCIAÇÃO DO SENHOR
(Is 7,10-14;8,10; Sl 39; Hb 10,4-10; Lc 1,26-38)

Hoje nós celebramos a festa da anunciação do Senhor. A exatamente daqui a nove meses estaremos celebrando o nascimento de Jesus. Mas podemos também pensar esta festa como a festa do “Sim” de Maria. Pelo seu sim ela concebeu em seu seio por obra do Espírito Santo o Filho de Deus. Uma humilde jovem entra para a história da salvação de forma significativa e determinante por haver dado um sim ao chamado de Deus. A verdade é que a partir daí a história da humanidade começa a mudar, e o nascimento de seus Filho divide essa mesma história, iniciando uma nova etapa para a humanidade.

Mas, como provocação, gostaria de chamar a atenção para dois fatos presentes no evangelho, e, creio eu, ser esse o fator que determinou o sim de Maria.

Em primeiro lugar, o anjo aparece para Maria e faz uma saudação. Esta saudação é importante. O evangelho diz que o anjo entrou onde Maria estava e disse: “Alegra-te, cheia de graça” (Lc 1,28). Alegria é um estado de satisfação extrema, sentimento de contentamento ou de prazer excessivo.  O que deveria então causar em Maria essa alegria ou contentamento extremo? Um fato importante: “O Senhor está contigo!” (Lc 1,28). Penso que esta saudação do anjo liga o evangelho com a primeira leitura. Emanuel significa “Deus está conosco”. O evangelho diz que Maria ficou pensando sobre o significado daquela saudação. Eis ai, que o profeta Isaías responde: Maria e cada um de nós devemos nos alegrar porque o “Emanuel” – o “Deus conosco” chegou.

Para nós deve ser motivo de alegria o simples fato de sabermos que, não importa a situação em que estamos vivendo, Deus está conosco. Seja nos momentos bons ou ruins, Deus está sempre conosco.

O segundo fato que quero chamar a atenção é que da certeza de que Deus estava com ela, Maria se enche de coragem para assumir todos os riscos de se torna Mãe de Jesus e responde com o seu “Sim”. O evangelho narra que: “Maria, então disse: ‘Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). O “Sim” de Maria brotou da certeza de que Deus estava com ela. E como consequência, ela se fez serva, ou seja, colocou-se a serviço da Deus, cumprindo a sua vontade.

Todos nós somos chamados por Deus. Ele espera de cada um de nós um sim generoso como o de Maria. Mas não pode ser um sim como muitas vezes respondemos, do tipo: “Tá bom, eu faço”. Esse tipo de sim não é generoso. O que Deus espera de nós é um “Sim” maiúsculo como o de Maria, que se coloca a serviço, que corre, como Maria, apressadamente, as regiões montanhosas da vida, para servir os mais necessitados de nossa ajuda, de nossa solidariedade.

O nosso sim deve nos levar a servir as “Isabeis” e aos “Zacarias” de hoje. E são tantos as margens da vida, esquecidos pela nossa sociedade nas regiões montanhosas dessa vida. Nosso “Sim” deve nos levar lá onde eles estão.

E por fim, o evangelho mostra Maria perturbada com aquelas palavras do anjo e que questiona como aquilo iria acontecer. No processo de discernimento do chamado é comum ficar perturbado, questionar. Faz parte e não é nenhum pecado. Mesmo porque o chamado de Deus muda o rumo de nossa vida. E é comum quando se tem o rumo mudado ficar perturbado, desorientado. Mas, Deus vai esclarecendo tudo, nos mostrando o caminho, nos orientando. Que não tenhamos medo de discernir para que o nosso sim seja verdadeiro e seguro. Só assim, teremos a certeza de que Deus estará conosco para enfrentarmos todos os desafios do seu chamado.

Que assim seja.
Pe. Cristiano Marmelo Pinto

sábado, 23 de março de 2019



HOMILIA DO TERCEIRO DOMINGO DA QUARESMA – ANO C
(Ex 3,1-8a.13-15; Sl 102; 1Cor 10,1-6.10-12; Lc 13,1-9)

Como é bom olharmos para a Palavra de Deus e podermos ver que ela sempre tem uma palavra que nos ajuda a sermos melhores, a corrigir nossos erros, encontrar conforto nas horas de aflição, palavra que dá sentido para nossa vida, para podermos nos levantar e seguir em frente. Precisamos redescobrir a Palavra de Deus como fonte que nos alimenta. Como diz São Paulo na segunda leitura Deus dava a seu povo um alimento e uma bebida espiritual.

Às vezes nos alimentamos mal, comento e bebendo de ideologias, pensamentos e sentimentos contaminados. A Palavra de Deus é alimento puro, da melhor qualidade que podemos encontrar. E a quaresma nos brinda com textos que nos ajudam a repensar a nossa vida, nossas atitudes e modos de sentir as coisas e a nossa própria vida. Por isso, a quaresma é tempo de conversão, tempo de mudança de vida, tempo de corrigirmos nosso rumo. Vale o mesmo para a nossa caminhada de fé. É tempo de pensarmos na nossa fé e se ela tem produzido bons frutos na nossa vida e na nossa sociedade.

Creio que, para isso, a parábola da figueira é maravilhosa para provocar a nossa reflexão. Em primeiro lugar, no evangelho, as pessoas vêm contar desgraças para Jesus. E Jesus questiona se eles são melhores que os outros. Estamos vivendo num mundo que está se acostumando assustadoramente a conviver com tragédias. Poderíamos citar vários fatos recentes, mas não vem ao caso. O que importa é a nossa atitude diante de tais fatos. Jesus diz para os que foram falar das desgraças alheias que se eles não se convertessem, morreriam igual. E logo em seguida, conta a parábola da figueira.

Aquela figueira era estéril, não dava frutos. E na parábola ainda diz que havia três anos que o dono da vinha procurava frutos. Três é um número que indica totalidade. Poderíamos dizer que o dono sempre procurava frutos e não encontrava. O que isso tem a ver conosco?

Como é que podemos nos tornar uma figueira estéril, que não dá frutos? Penso que Jesus está falando da fé, de uma fé estéril, de uma fé que não produz frutos. Quantos entre nós são assim. Vivem dentro da Igreja, falam de Deus, mas não produz nenhum fruto. Vejam que não se trata nem de frutos bons ou ruins, simplesmente não produz nada. Isso tem a ver com a nossa insensibilidade diante de tantas tragédias, de tanto sofrimento que vemos acontecer nesse mundo. Tem pessoas que não se comove mais com o sofrimento dos outros e por isso não se envolve e não faz nada para ajudar os outros. A solidariedade está virando artigo de luxo.

O que nos salva são as nossas obras. Uma fé que não é transformada em obras, como diz São Tiago, é uma fé morta. E, como diz a parábola de hoje, podemos dizer que é uma fé estéril. Deus não precisa de gente com esse tipo de fé. Por isso, na parábola, o dono da vinha manda cortar aquela figueira. Será que nós queremos ser cortados e jogados foras como gente inútil para Deus? Que coisa horrível deve ser.

Mas, o vinhateiro intercede por aquela figueira, pedindo mais um ano para cuidar e ver se ela produzirá frutos. Aí está a lógica do tempo da quaresma. Mesmo não produzindo frutos, Deus nos dá a oportunidade de mudarmos, de deixarmos uma fé estéril para uma fé que produza frutos. Numa analogia entre a quaresma e a parábola, a quaresma é esse tempo que Deus nos oferece para cuidarmos da nossa vida, da nossa fé, para mudar e começar a produzir frutos.

Que frutos são esses? Frutos de mais amor, mais solidariedade, mais misericórdia e partilha. Não precisamos de gente que fique contado as tragédias que acontecem. A mídia faz isso a toda hora, aliás, vive disso. Mas, nós, não deveríamos viver de apontar tragédias, mas sim, de procurarmos ajudar os outros, de sermos solidários com o sofrimento alheio. Infelizmente, ainda temos gente estéril na Igreja, que não ajuda o próximo...

Mudemos isso, senão, seremos cortados e jogados fora. Pense nisso. Seja mais solidário com os outros. Tragédias, tem muitas acontecendo. Precisamos é de gente para ajudar.

Paz no coração!
Pe. Cristiano Marmelo Pinto



HOMILIA DO SEGUNDO DOMINGO DA QUARESMA – ANO C
(Gn 15,5-12.17-18; Sl 26; Fl 3,17-4,1; Lc 9,28b-36)

Entramos na segunda semana da quaresma. E este segundo domingo da quaresma traz o tema da transfiguração de Jesus e como ela acontece em nossa vida. Quaresma é tempo de conversão, de mudança de vida, de rumo... Os textos bíblicos deste domingo quer nos ajudar a pensar nas coisas que precisamos mudar em nossa vida.

Quando pensamos em mudança imaginamos n’algo novo, diferente. Mas na perspectiva da transfiguração não é bem assim, mas mudança no sentido de revelar nossa essência. Segundo o dicionário, transfiguração significa ação de alterar radicalmente o aspecto, alteração na maneira de pensar, de agir e sentir. Creio que aí encontramos o sentido quaresmal da nossa transfiguração. Somos convidados a transfigurar nosso modo de pensar, agir e sentir, para deixar vir à tona nossa essência de filhos e filhas de Deus, feitos a sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26).

Na dinâmica de resgatar a nossa essência de filhos e filhas de Deus, creio que, na travessia do deserto quaresmal, ou mesmo, do deserto da vida, precisamos deixar vir à tona o que temos de melhor, nosso lado bom, que revela e testemunha que de fato somos gente de Deus. Ser mais fiel ao nosso compromisso com Deus, firmado em nosso batismo, de viver a sua Palavra, praticar o amor e ser solidário com todos.

Para isso, precisamos deixar que Jesus nos conduza com ele ao monte Tabor, para desencadear em nós, assim como fez com fez com os três discípulos, um processo de transfiguração de nossas vidas. Certamente os três discípulos: Pedro, João e André eram os que mais precisavam conhecer melhor a essência divina de Jesus. Para transfigurar nossa vida também precisamos conhecer Jesus, sua essência. Precisamos ter claro que temos em nós a imagem e semelhança com Deus. Precisamos transfigurar a nossa mentalidade, nosso modo de agir e sentir Deus na nossa vida, para podermos mudar a nossa vida por completo resgatando a nossa essência como pessoa humana e como filhos e filhas de Deus.

Nós vivemos num tempo de excessiva preocupação com a aparência. As pessoas se preocupam demais com o modo como os outros as veem. Se estamos bem vestidos, feios ou bonitos, sarados ou gordos, ou seja, a aparência é o que mais importa. Na era das redes sociais, por exemplo, posta-se fotos trabalhadas, para esconder aquilo que as pessoas realmente são na sua aparência física. Existem até aplicativos para melhorar o rosto, a barriga... A preocupação com a aparência leva a desfiguração. Desfigurar significa alterar o aspecto de modo a tornar alguém quase irreconhecível. Modificar os traços essenciais. O que acontece é que a preocupação desenfreada com a aparência, muitas vezes leva a desfiguração. Essa desfiguração pode ser externa, ou seja, uma desfiguração física, mas também pode ser interna, perdendo a sua essência, preocupando-se quase que exclusivamente com o exterior.

Tudo isso leva a uma questão importante: precisamos ir além das aparências se queremos conhecer de verdade o outro, se queremos nos conhecer. Aí entra a questão da liturgia de hoje: é preciso, assim como Jesus e seus discípulos, transfigurar-se, ou seja, revelar a nossa essência, recuperar a nossa essência como pessoa humana, como filhos e filhas de Deus, criados a sua imagem e semelhança.

A transfiguração de Jesus questiona nossa preocupação excessiva com a aparência, esquecendo-se da essência. Que esta quaresma nos ajuda a recuperarmos nossa essência cristã num processo contínuo de conversão, de transfiguração.

Paz no coração!
Pe. Cristiano Marmelo Pinto

sábado, 9 de março de 2019






A LITURGIA COMO FONTE DA CATEQUESE

Pe. Cristiano Marmelo Pinto
Mestre em Liturgia pela PUC-SP

1. INTRODUÇÃO

A constituição sobre a liturgia do Concílio Vaticano II, afirma que “a liturgia é o cume para o qual tende toda a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de que promana sua força” (SC 10). Desta afirmação conciliar pode-se concluir a relação existente entre a catequese e a liturgia. Ao se falar de catequese de iniciação à vida cristã, supõe-se que ela tenha como objetivo iniciar os catequizandos nos mistérios da fé, que tem seu auge na sua celebração. Portanto, a catequese como ação da Igreja, que busca iniciar os cristãos nos mistérios da fé, tem seu fim último na liturgia.

O Concílio tem claro que a liturgia não é a única ação da Igreja ao dizer que: “antes de ter acesso à liturgia é preciso ser conduzido à fé e se converter” (SC 9). Isto nos faz compreender o processo catequético como um caminho pedagógico que conduzindo à fé e a conversão, objetiva a experiência dessa fé na ação litúrgica.

Por outro lado, a liturgia também é fonte da catequese. Isto porque, tendo a Palavra de Deus como sua fonte primária, é na celebração litúrgica que a Palavra terá um destaque especial. Como afirma Julián L. Martín: a liturgia é lugar privilegiado em que a Palavra de Deus ressoa com eficácia particular e em que é constantemente proclamada, escutada, interiorizada e comentada”[1].

Porém, a relação entre liturgia e catequese nem sempre foi tão clara e, ainda hoje continua um tanto confusa para muitos, embora haja um esforço para reestabelecer esta relação. É comum ouvir de catequistas que as crianças só participam da celebração da eucaristia, ao longo do processo catequético, forçadamente. O mesmo acontece na catequese da crisma. E o que se vê, na maioria das vezes, é um parcial ou total abandono da comunidade após ter recebido o sacramento.

Tudo isto nos faz questionar o processo catequético, que por certo, mesmo que haja esforço, não está conseguindo iniciar adequadamente os catequizandos, tanto na vivência comunitária da fé como na sua celebração litúrgica. É neste intento que no Brasil nos últimos anos, dando continuidade no processo da catequese renovada[2], ou a renovação da catequese, a Igreja tem buscado fomentar uma catequese de inspiração catecumenal[3], que leve a uma verdadeira iniciação à vida cristã. A catequese segundo D. Sartore: “Preocupada com o anúncio e com a sua tradução para a vida concreta, parece por vezes menos sensível ao momento celebrativo, que se situa como ápice do anúncio e como fonte da existência cristã[4].

2. A RELAÇÃO ENTRE LITURGIA E CATEQUESE

São João Paulo II, na Exortação Apostólica “Catechesi Tradentae[5] afirma que: “A catequese está intrinsecamente ligada com a ação litúrgica e sacramental, porque é nos sacramentos, e sobretudo na eucaristia, que Cristo Jesus age em plenitude para a transformação dos homens” (nº 23). O Concílio Vaticano II ao considerar a liturgia como celebração do mistério pascal de Cristo, vê a necessidade de uma iniciação adequada dos que dela participam, para melhor celebrar e desse modo, penetrar no mistério de Deus que se atualiza na ação litúrgica. Se por um lado, na liturgia tomou-se consciência da necessidade de favorecer o ato de fé, por outro, a catequese abriu-se a experiência simbólico-ritual e à celebração.

O Concílio Vaticano II, na Declaração “Gravissimum Educationis”, sobre a educação cristã, diz que: “A formação catequética, que ilumina e fortalece a fé, nutre a vida segundo o espírito de Cristo, leva a uma participação consciente e ativa no mistério litúrgico e desperta para a vida apostólica” (GE 4). Segundo J. L. Martín: “A catequese conduz à liturgia e desemboca nela, não somente porque é ‘ápice e fonte’, mas pela mesma dinâmica do processo de evangelização e da catequese[6]. Se a liturgia é o cume para o qual se direciona toda a ação da Igreja (cf. SC 10), inclusive a catequese, vale dar atenção a Instrução “Inter Oecumenici” ao recomendar que:

Deve-se dar cuidadosa atenção para que todas as atividades pastorais estejam em correta conexão com a sagrada liturgia e, ao mesmo tempo, para que a pastoral litúrgica não se desenvolva de modo separado e independente, mas em íntima união com as outras atividades pastorais. Particularmente necessário é um estreito vínculo entre a liturgia e a catequese (n. 7).

O Diretório Nacional de Catequese diz que entre a fé, a celebração e a vida há uma íntima relação. Segundo o Diretório: “O mistério de Cristo anunciado na catequese é o mesmo que é celebrado na liturgia para ser vivido[7]. É neste sentido que o Documento 43 da CNBB no número 92 irá dizer que: “Pelos sacramentos a liturgia leva a fé e a celebração da fé a se inserirem nas situações concretas da vida[8]. Deste modo, pode-se dizer, conforme o Diretório Geral para a Catequese, da Congregação para o Clero que:

A catequese, além de favorecer o conhecimento do significado da liturgia e dos sacramentos, deve educar os discípulos de Jesus Cristo à oração, à gratidão, à penitência, à solicitação confiante, ao sentido comunitário, à linguagem simbólica, uma vez que tudo isso é necessário, a fim de que exista uma verdadeira vida litúrgica[9].

Embora seja claro que entre a catequese e a liturgia haja uma íntima relação, nem sempre foi assim. Se nos primórdios da Igreja esta relação era natural, ao longo do tempo vão se distanciando, ao ponto de ser necessário uma retomada dessa relação. Vejamos como se deu esse processo.

 3. A RELAÇÃO ENTRE LITURGIA E CATEQUESE 
     AO LONGO DA HISTÓRIA

3.1. Catequese e liturgia nos tempos de Jesus e na Patrística

Ao voltar para junto do Pai, Jesus ordenou a seus discípulos: “Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quando vos ordenei” (Mt 28,19). Comentando esta passagem, G. Lutz diz que: “alguém se torna discípulo de Jesus na Igreja através da ação litúrgica do batismo e através da catequese[10]. Percebe-se já nesta ordem de Jesus a ligação que há entre liturgia e catequese. Igualmente podemos encontrar esta ligação entre liturgia e catequese no relato da última ceia de Jesus com seus discípulos (cf. Mt 26, 17-29). Provavelmente Jesus agiu com seus discípulos conforme o costume judaico para a ocasião, quando o mais novo do grupo perguntava ao que presidia o motivo da reunião. O pai da família contava então toda a história da salvação e depois repartia o pão, o cálice e comiam. E Jesus disse: “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19).

Os primeiros cristãos fizeram conforme Jesus havia mandado. Pregaram e batizaram (cf. At 2,14-41), se reuniram para partir o pão (cf. At 20,7s). Eles se mostravam assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações (cf. At 2,42).
A relação entre liturgia e catequese era uma realidade desde o início da Igreja. Porém, verifica-se que no Novo Testamento a palavra catequese (katechein) geralmente é usada quando se trata de uma instrução que não se dá dentro da celebração litúrgica (cf. Lc 1,4; At 18,25; 21,21; Rm 2,18). Como afirma G. Lutz: “A palavra catequese ficou reservada para a instrução na fé fora da celebração do sacramento e, de modo particular, para a instrução dos catecúmenos[11].

O catecumenato era um tempo de catequese de pessoas adultas que se preparavam para receber os sacramentos da iniciação cristã. Ele tinha íntima relação com a celebração litúrgica que marcava as etapas de introdução na vida da comunidade, até chegar a celebração dos sacramentos. Este processo prosseguia depois da páscoa com o tempo chamado de mistagogia. Durante todo este tempo, o catecúmeno era acompanhado pelos catequistas.

Em toda a extensão do tempo de catecumenato, a liturgia e a catequese estavam intimamente ligadas entre si. Alguns exemplos encontramos na Tradição Apostólica[12] de Santo Hipólito, nas Catequeses pré-batismais e mistagógicas[13] de São Cirilo de Jerusalém e nos Tratados sobre os sacramentos e os mistérios[14] de Santo Ambrósio.

3.2. Da Idade Média ao nosso tempo

Quando as conversões de adultos já não eram tão frequentes e aumentou o número de batizados de crianças, o catecumenato conforme era exercido no início da Igreja, foi perdendo o sentido. A medida em que as crianças já nasciam de famílias cristãs, ela deveria receber a formação cristã inicial dentro da própria família. Na Igreja, mais tarde, era dada a catequese em vista da preparação para a confissão, a eucaristia e a crisma. A catequese já não era mais uma introdução na vida cristã, mas, uma preparação para a celebração dos sacramentos. Embora a catequese não estivesse desligada da liturgia, não havia mais aquela íntima relação que se observa nas origens.

Mais tarde, quando a frequência nas escolas torna-se obrigatória, o desligamento entre catequese e liturgia progride, visto que a catequese passa a ser dada na própria escola. Embora fosse possível uma catequese para os sacramentos também na comunidade, muitas vezes estes eram celebrados também nas escolas, fora da comunidade. Com o passar dos tempos, a catequese, já desligada da liturgia e da vida da comunidade, passa a receber outros nomes, tais como: “aula de religião” ou “cultura religiosa”. Com o tempo a catequese deixa também de atingir a pessoa na sua totalidade, e passa a visar a pessoa em partes, em particular a vida moral.

Hoje, observa-se uma volta as fontes originárias da catequese, principalmente no seu relacionamento com a liturgia. Ela procura atingir a pessoa humana como um todo, volta a ser realizada dentro da comunidade eclesial, com a participação da comunidade, pelo menos em alguns momentos. A partir do Concílio Vaticano II, procura-se novamente ligar catequese e liturgia, num esforço de destacar tanto a dimensão litúrgica da catequese, como também a dimensão catequética da liturgia. É neste sentido que o Decreto conciliar sobre a educação cristã “Gravissimum Educationis” irá dizer a respeito da formação catequética que ela “ilumina e fortifica a fé, nutre a vida segundo o espírito de Cristo, leva a uma participação consciente e ativa do mistério litúrgico” (GE 4). Por outro lado, a Constituição sobre a liturgia “Sacrosanctum Concilium” diz que: “embora vise principalmente ao culto da divina majestade, a liturgia contém muitos elementos de instrução para o povo” (SC 33).

4. A DIMENSÃO LITÚRGICA DA CATEQUESE 
    E A DIMENSÃO CATEQUÉTICA DA LITURGIA

4.1. A dimensão litúrgica da catequese

Todo encontro catequético deveria possuir momentos celebrativos. Existe por aí catequese que não se celebra nada. É o caso de catequistas que falam, falam, e nunca celebram em seus encontros. Celebração não é somente a Missa. Nem tão somente os demais sacramentos. Pode-se criar outras formas de celebrar como por exemplo: celebração da Palavra, novenas, etc.. Estes encontros celebrativos tem como objetivo fazer com que as crianças vão aprendendo liturgia e a celebrar. Para isso é necessário duas coisas: em primeiro lugar que as catequistas sejam interessadas pela liturgia, caso contrário não haverá motivação alguma. Em segundo lugar, para que os catequizandos possam aprender celebrar e se interessar devemos proporcionar com que eles possam preparar uma celebração, sob a orientação do catequistas: ambientação, escolha dos textos bíblicos, ornamentação, símbolos a serem usados, cânticos, etc.. Por este motivo, o catequista deve ter o mínimo de formação litúrgica. Precisa de uma formação litúrgica adequada.

4.2. A dimensão catequética da liturgia

A catequese é o melhor momento formativo para se aprender celebrar celebrando. A liturgia e a catequese deve andar juntas pois, “toda ação celebrativa tem elementos catequéticos em seu desenvolvimento e toda ação catequética deveria ter elementos celebrativos em seu processo pedagógico”[15]. A celebração litúrgica não é um momento para a formação catequética propriamente dita. Não é um momento de explicação. É sim, um momento de celebrar. Porém em todas as ações celebrativas existem elementos catequéticos, como por exemplo: gestos, símbolos, comentários, homilia, músicas, etc.. Estes elementos falam por si mesmo, tem a força de expressão própria. Eles não precisam de serem explicados. Levando em consideração todos estes elementos, a liturgia torna-se uma forte aliada no processo catequético de nossas crianças, jovens e adultos.

5. A RELAÇÃO LITURGIA E CATEQUESE 
    NOS DOCUMENTOS DA IGREJA

Embora já tendo citado ao longo de nossa reflexão alguns documentos da Igreja que estabelecem a relação entre liturgia e catequese, queremos aqui apresentar de forma sintética e sistemática os principais documentos onde esta relação aparece de maneira clara e objetiva.

5.1. Constituição “Sacrosanctum Concilium

A Constituição conciliar sobre a liturgia “Sacrosanctum Concilium” afirma que “a liturgia é o cume para o qual tende toda a ação da Igreja” (SC 10). A mesma constituição, ao reconhecer a liturgia como cume, também diz que “ela não esgota toda a ação da Igreja” (SC 9), pois ela não é a única ação da Igreja. É evidente que entre tantas outras ações da Igreja, inclui-se a ação catequética.

No que diz respeito à participação consciente e ativa na ação litúrgica, a Constituição orienta para que “mediante instrução devida, deve com empenho ser buscada pelos pastores de almas em toda ação pastoral” (SC 14). Para isso é necessário uma boa formação e vivência da própria liturgia.

Para a melhor participação consciente e ativa na ação celebrativa, o Concílio recomendou a reforma e ampliação de todos os rituais que, segundo D. Sartore: “além de introduzir formas celebrativas que tornam mais fáceis a compreensão e a participação dos fiéis, insistem muito na catequese preparatória[16].  O próprio Concílio dirá para que:

Seja também inculcada, por todos os modos, a catequese mais diretamente litúrgica; e nas próprias cerimônias sejam previstos, se necessário for, breves esclarecimentos, a serem proferidos pelo sacerdote ou pelo ministro competente, em momentos oportunos, com termos prefixados por escrito ou semelhantes (SC 35,3).

5.2. A Instrução “Inter Oecumenici

A Instrução “Inter Oecumenici” deixa ainda mais claro a relação entre catequese e liturgia ao afirmar que todas as atividades pastorais devem estar em conexão com a liturgia e, ao mesmo tempo, que a pastoral litúrgica não se desenvolva isoladamente das demais, mas em íntima relação, principalmente entre catequese e liturgia (cf. n. 7).

5.3. O Diretório Catequético Geral de 1971

Este Diretório Catequético ao apresentar as diversas formas e tarefas da catequese, afirma que ela deve promover a participação na liturgia, ao dizer que:

A catequese deve promover uma participação ativa, consciente, autêntica na liturgia da Igreja, não só explicando o significado dos ritos, mas educando os fiéis para a oração, a ação de graças, a penitência, a súplica confiante, o sentido comunitário, a linguagem simbólica, todas estas coisas necessárias para uma verdadeira vida litúrgica (n. 25).

Ele ainda recorda que a catequese deve levar os fiéis ao conhecimento dos mistérios de Deus, através de uma catequese dos sinais (cf. n. 57), e que seu conteúdo deve ser celebrado na liturgia (cf. n. 45).

5.4. A Exortação Apostólica “Evangelii Nunciandi” de Paulo VI

O beato papa Paulo VI, na Exortação “Evangelii Nunciandi” de 1975, mostra que a finalidade da catequese litúrgica está no horizonte da evangelização. O documento ressalta a importância de uma sólida catequese sacramental ao afirmar:

A evangelização revela toda a sua riqueza quando realiza o vínculo íntimo, e, melhor ainda, uma intercomunicação ininterrupta entre a Palavra e os sacramentos. Em certo sentido, está errado opor, como por vezes se faz, a evangelização à sacramentalização. É verdade que certo modo de conferir os sacramentos, sem sólido apoio da catequese sobre estes mesmos sacramentos e de uma catequese global, acabaria por privá-los em grande parte de sua eficácia. A tarefa da evangelização é precisamente a de educar na fé de modo tal que ela conduza cada cristão a viver os sacramentos como verdadeiros sacramentos da fé, e não a recebê-los passivamente, ou a simplesmente suportá-los (n. 47).

5.5. Exortação Apostólica “Catechesi Tradendae” de João Paulo II

São João Paulo II na Exortação “Catechesi Tradendae” faz eco a relação entre liturgia e catequese ao dizer que: “A catequese está intrinsecamente ligada com toda a ação litúrgica e sacramental, porque é nos sacramentos, e sobretudo na eucaristia, que Cristo Jesus age em plenitude para a transformação dos homens” (n. 23). E observa esta relação ao afirmar que a catequese tem sempre uma referência aos sacramentos, e ao mesmo tempo, leva a eles.

A catequese conserva sempre uma referência aos sacramentos, e toda a catequese leva necessariamente aos sacramentos da fé. Por outro lado, uma autêntica prática dos sacramentos tem forçosamente um aspecto catequético. Por outras palavras, a vida sacramental se empobrece e bem depressa se torna um ritualismo oco, se ela não estiver fundada num conhecimento sério do que significam os sacramentos. E a catequese intelectualiza-se, se não for haurir vida numa prática sacramental (n. 23).

Ainda a respeito dos diferentes lugares e momentos da vida cristã, tais como: peregrinações, missões, círculos bíblicos, comunidades de base, agrupamento de jovens, onde se pode haver uma catequese, a Exortação chama a atenção para três dimensões: palavra, memória e testemunho, que no âmbito catequético se apresenta como doutrina, celebração e compromisso (cf. n. 47).

Segundo o documento, estas observações tornam-se ainda mais válidas quando a catequese é realizada dentro do contexto litúrgico, em particular na assembleia eucarística. Ao referir-se a homilia, o documento afirma que: “a homilia retoma o itinerário de fé proposto pela catequese” (n. 48) e por este motivo a pedagogia da fé tem sua fonte e complemento na eucaristia. Ainda segundo o documento: “a pregação, centrada nos textos bíblicos, deverá então, à sua maneira, dar ocasião a que os fiéis se familiarizem com o conjunto dos mistérios da fé e das normas da vida cristã” (n. 48).

Em todos estes documentos podemos destacar três dimensões da relação entre liturgia e catequese:

1ª) A catequese como iniciação à vida litúrgica;
2ª) A liturgia como catequese em ação;
3ª) A liturgia como fonte da catequese.

6. A LITURGIA COMO FONTE DA CATEQUESE

É importante lembrar que a catequese tem como fonte a Palavra de Deus. O Diretório Nacional de Catequese afirma que: “a fonte na qual a catequese busca a sua mensagem é a Palavra de Deus[17]. Já a Exortação “Catechesi Tradendae” diz que: “a catequese há de haurir sempre o seu conteúdo na fonte viva da Palavra de Deus” (n. 27). A Palavra de Deus é compreendida e vivida pelo senso de fé, celebrada na liturgia e vivida pelo cristão no seu dia-a-dia. O Diretório Geral para a Catequese estabelece fortemente o nexo entre Palavra de Deus e liturgia, que reconhece a própria liturgia como fonte da catequese, pois na liturgia, ela é proclamada, ouvida, interiorizada e comentada (cf. n. 95). Para André Philippe, a liturgia é colocada como centro da catequese, e até ousa dizer que a Bíblia é mais Palavra de Deus na liturgia, pois nela, a Palavra de Deus é proclamada na assembleia e realizada no mistério litúrgico[18]. Para Gregório Lutz: “Além de ser proclamado pelas leituras o mistério de Cristo se torna presente pela celebração ritual e sacramental. Neste duplo sentido, como lugar de leitura da Bíblia e como lugar de comemoração ritual, a liturgia é fonte de catequese[19].

A liturgia é o lugar privilegiado de educação de fé. Na liturgia a proclamação da Palavra torna-se a primeira e fundamental escola da fé[20]. A Palavra de Deus na liturgia possui um caráter sacramental, pois, na sua proclamação, Cristo se torna presente (cf. SC 7). A liturgia da Palavra não é vista mais como uma preparação, mais sim, como o próprio Deus que fala para seu povo. Na liturgia a Palavra de Deus não é apresentada algo a aprender, mas como revelação a ser acolhida.

Podemos dizer que a relação entre liturgia e catequese tem um fundamento bíblico. É preciso que a Palavra proclamada na liturgia, comente e esclareça os sinais litúrgicos. Disso, pode-se concluir que há uma relação orgânica entre liturgia e catequese, pois no centro a ação litúrgica há lugar para uma catequese bíblica.

Por outro lado, a liturgia em todas as suas dimensões e recursos, torna-se fonte constante e inesgotável para a catequese. Por certo, uma catequese que não se impregne de oração e não desemboque na celebração litúrgica, afasta-se de sua autêntica fonte, e corre o risco de se reduzir a mera transmissão intelectual. E uma liturgia que não valoriza sua dimensão catequética, pode cair no ritualismo[21].

A liturgia é uma fonte inesgotável de elementos simbólicos que introduzem cada um dos aspectos do mistério de Cristo e da Igreja. Com efeito, encontramos no Estudo 42 da CNBB a afirmação de que: “a catequese deve tender para liturgias vivas em que a fé se nutra da Palavra de Deus convenientemente proclamada e comentada; da prece da Igreja; de cantos apropriados; num conjunto de ritos e gestos desempenhados com veracidade e beleza[22].

A liturgia deve ser fonte de catequese, capaz de nutrir a fé e chamar à conversão e propor um caminho de compromisso eclesial e social. A liturgia é fonte onde a catequese pode buscar material como ponto de referência para relacionar a vida ao mistério de Cristo e da Igreja. D. Sartore sugere que não existe nenhum símbolo, palavra e ação na liturgia, dos quais a catequese não possa beneficiar-se para alimentar a fé e convidar a conversão e a construção da comunidade cristã[23]. Os textos litúrgicos, os ritos, os gestos, os símbolos, o ano litúrgico e todos os demais sinais da liturgia possuem um grande valor para a catequese. A catequese deve introduzir no significado e na participação ativa, interna, externa, consciente, plena e frutuosa dos mistérios de Cristo na liturgia.

7. CONCLUSÃO

Chegando ao final de nossa reflexão, podemos apontar alguns pontos que merecem nossa atenção, tanto da parte dos agentes da liturgia como de catequistas, para que possamos reaproximar estas duas dimensões tão importantes da caminhada da Igreja, que são a liturgia e a catequese. Como diz Vanildo de Paiva: “É um grande desafio, para todos nós, resgatar a relação de interdependência entre a catequese e a liturgia[24]. Por isso é tão urgente desenvolver um processo de integração, colaboração e diálogo entre catequistas e agentes da pastoral litúrgica. A relação catequese e liturgia não é algo opcional, mas essencial no processo de iniciação à vida cristã. Por isso é de suma importância repensar algumas práticas e posturas. Apontamos pois, apenas alguns elementos para colaborar nesta revisão.

  • A liturgia e a catequese são duas dimensões que apontam para o mesmo mistério: o mistério pascal de Cristo;
  • A liturgia não se reduz à catequese, e nem muito menos a catequese se reduz à liturgia, porém, uma se encaminha para a outra;
  • É necessário buscar uma metodologia que facilite essa integração entre liturgia e catequese. Uma metodologia possível e que tem se buscado com constância é o estilo catecumenal;
  • É importante resgatar na catequese a vivência do ano litúrgico como meio pedagógico que nos faz entrar no mistério celebrado. Ele oferece um excelente conteúdo para o aprofundamento da fé;
  • É preciso resgatar o sentido originário dos sacramentos de iniciação cristã, para superar celebrações desconectadas com a vivência comunitária da fé. Repensar as celebrações de primeira eucaristia, de crisma e até mesmo do batismo;
  • A catequese precisa integrar em sua prática as devoções populares, tais como: terços, romarias, novenas, bênçãos, etc. Elas exercem um importante papel na sustentação da fé de muitos;
  • Tanto os catequistas como os agentes da pastoral litúrgica devem aprofundar sempre mais o conhecimento da liturgia e de seus ritos e símbolos, buscando uma vivência mais profunda dos mesmos, para poder iniciar os catequizandos nos mesmos mistérios. Não se inicia se antes não estiver iniciado os conduzem;
  • O catequista é visto como um mistagogo. Por isso, ou o catequista conduzirá o para dentro do mistério, ou simplesmente continuará transmitindo doutrinas e conhecimentos desconectados da vivência comunitária da fé, não ressoando no coração dos catequizandos o desejo de fazer parte da comunidade cristã, muito menos de suas celebrações;
  • É importante proporcionar aos catequizandos uma experiência constante da vivência simbólica, a fim de desenvolver neles uma sensibilidade para esta dimensão da liturgia;
  • Tanto os agentes da liturgia como da catequese precisam se libertar do formalismo e da rigidez em relação do ritual e ao simbólico. O rito deve estar a serviço da experiência de Deus e deve levar a uma fé comprometida com o mistério celebrado, integrando fé e vida;
  • É importante ter cuidado com a imagem de Deus que é passada aos catequizandos, que muitas vezes não coincide com o Deus revelado por Jesus Cristo, que é Amor. Há entre catequistas muitas concepções negativas de Deus como: policial, quebra-galho, vingativo, justiceiro, etc.;
  • É preciso revisar as concepções de pecado e como ele vem sendo apresentado para os catequizandos. Visões distorcidas podem levar a neuroses e experiências distorcidas de Deus;
  • A catequese deve ser criativa e possibilitar momentos e celebrações penitenciais ao longo do processo, para acostumar o catequizando a fazer silêncio, examinar a consciência, a pedir perdão e viver esse compromisso no dia-a-dia;
  • Deve-se tomar cuidado para não fazer “terrorismo” com os catequizandos, inculcando neles o que o catequista considera pecado ou não, e forçando eles a decorar fórmulas extensas e pouco compreensivas;
  • É importante que o catequista tenha uma vivência positiva do sacramento da penitência, para não levar os catequizandos a uma prática obrigatória, mas prazerosa da misericórdia de Deus;
E para finalizar, gostaria de apontar alguns elementos da formação litúrgica na catequese, para que, no processo de revisão, possam eles, ser levados em conta.

  • Recuperar a centralidade do mistério pascal de Cristo na catequese e na vida dos catequizandos;
  • Recuperar a liturgia como momento celebrativo da história da salvação;
  • Recuperar a liturgia como exercício do sacerdócio de Cristo e nosso;
  • Recuperar a dimensão celebrativa da liturgia, como ação ritual e simbólica;
  • Recuperar a dimensão comunitária da liturgia;
  • Recuperar a participação dominical na eucaristia como coração da vida cristã;
  • Aprofundar o conhecimento da Palavra de Deus na catequese;
  • Recuperar a espiritualidade pascal ao longo do ano litúrgico, como caminho pedagógico para o mistério celebrado;
  • Recuperar a espiritualidade penitencial por meio de celebrações dentro do processo catequético;
  • Recuperar o sentido originário dos sacramentos de iniciação à vida cristã, que leve de fato a uma vivência comunitária da fé;
  • Aprofundar a presença de Maria no mistério de Cristo, da Igreja, na liturgia e na vida dos cristãos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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JOÃO PAULO II. Exortação Apostólica Catechesi Tradendae. São Paulo: Paulinas, 1982.
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CNBB. Diretório Nacional de Catequese. Brasília: Edições CNBB, 2006.
CNBB. Catequese renovada: orientações e conteúdo. (Doc. 26). São Paulo: Paulinas, 1984.
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PAIVA, Vanildo de. Catequese e liturgia: duas faces do mesmo mistério. São Paulo: Paulus, 2008.


[1] MARTÍN, Julián Lopez. Liturgia e Catequese. In: PEDROSA, V. M., NAVARRO, M., LÁZARO, R., SASTRE, J. Dicionário de Catequética. São Paulo: Paulus, 2004, p. 697.
[2] Cf. CNBB. Catequese Renovada: orientações e conteúdo.  (Documentos da CNBB 26). São Paulo: Paulinas, 1984.
[3] Cf. CNBB. Iniciação à vida cristã: um processo de inspiração catecumenal. (Estudos da CNBB 97). Brasília: Edições CNBB, 2009.
[4] SARTORE, D. Catequese e liturgia. In: SARTORE, D. e TRIACCA, A. M. Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 175.
[5] JOÃO PAULO II. Exortação Apostólica Catechesi Tradendae. São Paulo: Paulinas, 1982.
[6] MARTÍN, Julián Lopez. Liturgia e Catequese... p. 695.
[7] CNBB. Diretório Nacional de Catequese. (n. 119). Brasília: Edições CNBB, 2006, p. 84.
[8] CNBB. Animação da vida litúrgica no Brasil. (Documentos da CNBB 43). São Paulo: Paulinas, 1990.
[9] CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório Geral para a Catequese. São Paulo: Paulinas, p. 92.
[10] LUTZ, Gregório. Liturgia ontem e hoje. São Paulo: Paulus, 1995, p. 72.
[11] LUTZ, Gregório. Liturgia ontem e hoje. p. 74.
[12] HIPÓLITO DE ROMA. Tradição Apostólica: liturgia e catequese em Roma no século III. Petrópolis: Vozes, 2004.
[13] SÃO CIRILO DE JERUSALÉM. Catequeses mistagógicas. Petrópolis: Vozes, 2004.
[14] AMBRÓSIO DE MILÃO. Explicação do símbolo, sobre os sacramentos, sobre os mistérios, sobre a penitência. (Coleção Patrística 5). São Paulo: Paulus, 1996.
[15] VALLE, Pe. Serginho. Pastoral Litúrgica: uma proposta, um caminho. São Paulo: Loyola, 1998, p. 79.
[16] SARTORE, D. Catequese e liturgia. p. 178.
[17] CNBB. Diretório Nacional de Catequese, n. 106.
[18] PHILIPPE, André. A liturgia no centro da catequese. In: ISPAC. Introdução à catequética. Petrópolis: Vozes, 1965, p. 47-66.
[19] LUTZ, Gregório. Liturgia ontem e hoje, p. 82.
[20] Cf. Diretório Nacional de Catequese, n. 118.
[21] Cf. JOÃO PAULO II. “Catechesi Tradendae”, n. 23.
[22] CNBB. Liturgia: 20 anos de caminhada pós-conciliar. São Paulo: Paulinas, 1986, p. 170.
[23] SARTORE, D. Catequese e liturgia. p. 181.
[24] PAIVA, Vanildo de. Catequese e liturgia: duas faces do mesmo mistério. São Paulo: Paulus, 2008, p. 50.